
É Findi - A Máquina de Costura – Crônica, por Maria José Morais*
19/07/2025 -
Antes de ler essa crônica, olhe para a peça de roupa que está vestindo e imagine quantas mãos não passaram por essa mesma roupa. Assim, penso, que costurar é um legado. E portanto, narro aqui sobre a minha mãe, que se tornou costureira ainda muito jovem e por mais de 60 anos foi uma exímia “artesã” da costura, uma autodidata. Foi através da arte da costura que ela conseguiu ajudar no sustento da família. Dias e noites sem descanso para dar conta das encomendas.
D. Dora
A minha mãe, Doralice, mais conhecida como a dona Dora, tinha uma máquina de costura antiga, na cor preta com letras douradas, com pedal e correia, da marca Singer. Lembro quando ela chamava alguma filha com boa visão, para colocar a linha no buraco da agulha, ajudando-a em alguma coisa. As irmãs mais velhas ficavam encarregadas dos acabamentos das roupas, cortavam pontas de linhas, pregavam botões ou colchetes. Quem quisesse saber se o trabalho estava bem feito, bastava olhar o avesso, uma perfeição!
Zig-zag
A tal máquina de costura não tinha o ponto de zig-zag e por isso, era necessário chulear as roupas à mão para que as mesmas não desfiassem. Eu já demonstrava interesse em costurar e de vez em quando, aproveitava a ausência da minha mãe, para aventurar-me na máquina. Fazia roupas para as bonecas com os retalhos de tecidos. Costurava à mão e à máquina. E ficavam lindas porque eu as enfeitava com os adornos que existiam em casa, principalmente aqueles que tinham rendas e fios cheios de brilho. As outras irmãs também desenvolviam a habilidade de costurar. Algumas serviam de manequim para provar as roupas e fazer os ajustes necessários.
Vai-e-vem
E a modernidade foi chegando e uma nova máquina foi comprada. Dessa vez, mais sofisticada, com múltiplas funções (casear, zig-zag, bordados e pontos diversos), da marca Elgin. A nossa casa era um vai-e-vem de clientes, muitas vezes em horários “impróprios” (durante as refeições) porque a dona Dora fazia de tudo para agradar à clientela. Conhecia os melhores tecidos: algodão, viscose, linho, tricoline, cambraia, fustão, fustãozinho, oxford, popeline, musselina, flanela, gorgorão. E havia, ainda, os tecidos de luxo, próprios para as festas, bailes, formaturas e casamentos.
Bordadeira e cozinheira
A dona Dora costurava as nossas roupas. Chegavam as festas da época e tínhamos os vestidos impecáveis, copiados das revistas ou das vitrines das lojas. Muitas vezes, feitos às pressas, pois como eram muitas filhas (oito!), só ficavam prontos faltando uns 40 minutos para a ceia do Natal, por exemplo. Orgulhava-me da minha Mãe, que também bordava à mão e à máquina (lembro bem das belíssimas toalhas de mesa feitas em bordado Richelieu), bordava com pedrarias e miçangas, os famosos vestidos de casamento, bordava tapeçarias, ponto cruz e fazia crochê divinamente… Ah… quanto talento essa mulher possuía!
E somem-se a todas essas tarefas, as suas idas à cozinha para preparar pratos deliciosos - o inesquecível pirão de carne, a lasanha preferida do meu pai, as inúmeras pamonhas e travessas de canjica de milho verde.
Que saudade de tudo isso! Parece um filme na minha memória!
Herdei dela a máquina preta antiga, mas depois a minha mãe quis fazer doação e a devolvi. Ela teve muitas outras máquinas, mas sempre doava as anteriores. A dona Dora teve também uma máquina “overlock”, mas com essa, nunca me aventurei. Passei uns tempos com uma máquina portátil, emprestada por uma irmã, que não sabia costurar. Costurei muito nessa! Fazia barras de calças, muitos calções para crianças carentes; fazia lençóis de bebê para a campanha dos enxovais, costurava minhas roupas e as da minha filha.
Em Portugal
Morando em Portugal há alguns anos, adquiri uma máquina de costura portátil, modelo alemão, Silver Crest, na cor branca. E voltaram à memória todos esses momentos felizes da minha vida, nos quais a máquina de costura era peça de suma importância, tal qual é um frigorífico (geladeira) para uma cozinha. Faço da costura uma terapia. Corto, costuro, desmancho. Tenho várias caixas com carretéis de linha de todas as cores e tons, aviamentos (bicos, rendas, botões), tesouras de diversos tamanhos, alfinetes e agulhas às dezenas… Na pandemia costurei muitas máscaras em tecidos e em TNT (“tecido não tecido”).
Alzheimer chegou
Como acontece na maioria dos casos, a doença de Alzheimer chegou sem grande alarde para a minha mãe, levantando, a princípio, a falsa suspeita de que os lapsos ocasionais de memória poderiam ser consequência das oito décadas de vida. Hoje, infelizmente, o Alzheimer não permite que a dona Dora possa orientar-me em alguma dúvida de costura.
Agradeço à minha mãe Doralice
Tenho a máquina de costura como um objeto que simboliza todos os dias vivenciados com a minha mãe, sua criatividade, seu dinamismo e sua determinação em tudo. É por isso que a máquina de costura faz parte da minha vida. Agradeço imensamente à minha mãe Doralice por todas as lições que nos ensinou.
Voltando ao princípio, olhe novamente para a roupa que veste. Será que quem a fez, não tem também uma história assim para contar?
*Maria José Morais, bióloga, professora, escritora e palestrante. É pernambucana e vive na cidade do Porto, em Portugal.
