
É Findi - Seis Ponto Um - crônica, por Romero Falcão*
19/07/2025 -
Inexorável Tempo
Aos quatorze anos, compulsoriamente dentro de um cabaré, entrara pela primeira vez no corpo de uma mulher. A meretriz me olhou espantada. Meu Deus, como é novinho, nunca deitei com uma carinha dessa de menino, 14 na idade, 10 no aspecto. A tal carinha de menino iria me acompanhar por longos anos. Fiz 18 primaveras, e o povo me achando com carinha de menino. Aos trinta não foi diferente, o menino continuava desenhando meu rosto, brincando com o espírito. Lá vem os cinquenta. Começaram as especulações. Não é possível, nenhum fio branco, você pinta o cabelo.Não adiantava eu negar, explicar que jamais faria isso. Só quem pode usar tinta prateada no meu cabelo, é o tempo. Se as rugas me cravam os dentes ou me veem remoçado, não interfiro no processo. Só quem pode fazer plástica na minha carranca , é o tempo. Só quem pode fazer photoshop no meu retrato digital, é o tempo. Só quem pode ser chicote é o tempo, o inexorável tempo.

A Escrita é a Melhor Cicatrização
Bati a cara nos sessenta. Bati, literalmente. Nas minhas corridas matinais nem sequer um leve escorrego. Poucos dias depois de virar sexagenário, uma corridinha mixuruca me levou ao chão. Corte no rosto, rombo no joelho. Levantei sangrando. Em duas dúzias de passos, escrevi uma crônica no quengo, no calor do tombo. A escrita é a melhor cicatrização. Mas os meus cabelos continuavam os mesmos. E a face seguindo o riscado.Segundo as boas e as más línguas, guardando traços do menino. Genética boa? Sei lá. Só sei que o homem velho começou a surgir. Vivemos numa sociedade na qual falar de velhice é mais do que politicamente incorreto, é terrivelmente abominável. Todo mundo almeja atravessar os 60, 70, 80, feito jovem. Não, por favor, não venha com essa, não me fale de idade. Quem tem dinheiro não envelhece. Não só falo, como escrevo. Com dinheiro, sem dinheiro, envelheço, envelheço. Às vezes, por fora, a carcaça se apruma, fica em ordem, mas por dentro os órgãos são implacáveis na silenciosa corrosão. Há alguns dia inaugurei a nova cilindrada, 6.1. O homem velho amanheceu no meu espelho, a venta cresceu, alargou. Dizem que é desse jeito, depois do 6.0, orelhas e nariz se apaixonam por Pinóquio. Seis ponto um. Não é assim que se diz, não é? 6.1? Parece coisa de motor de carro, não parece? Ao invés de dizer 80 anos, dizer 8.0 ameniza o peso das oito décadas? Pois bem, o bloco do motor, o cabeçote, pistões e bielas rodaram altas quilometragens, por conseguinte aumentaram as revisões anuais.Também é nítido o estrago na lataria. As bochechas ganham aparência de caçoar. Meu saudoso pai dizia, meu filho, velho tem cara de caçoar. Era a maneira de dizer do homem do sítio sobre os efeitos da gravidade.Tudo despenca.Botox aqui não entra.

O Inseto Faz do Inseticida, Crônica
Até que enfim, queiram ou não queiram os juízes, um tufo de cabelo branco brilha nesta cabeça, se espalha igual a chuchu na serra. A metamorfose foi da noite pro dia. Ao invés da barata de Kafka, o inseto faz do inseticida, crônica. O 6.1 chegou chegando. A farmácia ficou contente: Venha para o clube, venha fazer a feira completa .No carrinho, novas criaturas. Na fila de idoso, todo orgulhoso. Colírio pra lubrificar olhos secos de tanta tela. Amaciante, perdão, hidratante pra camuflar a pele gasta. Peças precisando de graxa. O sol não quer conversa com ancião, então, tome vitamina D no virabrequim. No caixa, acho estranho a moça me chamar de senhor. Na rua, as mulheres não me paqueram feito antes. É a idade, é o motor fumaçando, seu babaca.Tomara que o politicamente correto não me veja um entusiasta do etarismo. Me vêm os versos de Caetano Veloso: "O homem velho é o rei dos animais. No abismo das esquinas. A brisa leve traz o olor fugaz do sexo das meninas." Eu vivia me gabando, faço corrida e o joelho permanece novo. Bastou me aproximar do 6.1, apareceu na ressonância magnética, a ferrugem na dobradiça direita. O quadril reagiu para não ficar por baixo, meteu na imagem uma artrose. O sangue, que não é besta, botou sua mola, um pré- requisito adocicado. Flertando com o pré-diabético. Ah, ingrata catarata, cata meus últimos tostões na compra do cristalino. O sono, por sua vez, faz pirraça. Outra vez, o meu velho. Meu filho, a partir dos 60, é acordar com as galinhas. Por enquanto, o joelho não necessita de faca. Chamei o sangue na grande, baixou a crista diante do regime disciplinado do soldado. Quanto à artrose, o ortopedista foi claro, direto. É a idade, a idade. Eu vos digo, é o motor, é o motor. A retífica me espera, ou quem sabe, bater biela sem aviso prévio. É a idade, a idade. É o motor cansando, cansando, sem caçar a pérola do rejuvenescimento. Jamais irei romantizar o envelhecimento. O envelhecimento grande, largo. O envelhecimento que inverte a nossa pirâmide etária- admirável Brasil velho. Se a natureza me permitir, serei um velhinho animado, pé no chão, consciente das limitações impostas - trocando a queixa, lamúria, pela irreverência, astúcia. E sempre atento, me cuidando, me apaziguando com o estalar dos ossos, a carne usada, frágil. Não, não tapo, não taparei as dificuldades da "boa idade" com o falso brilhante da juventude. Por falar em juventude, agora, as boas e as más línguas dizem. Olhem essa mecânica, um sessentão num cabeçote de 20 - palavra de motor.
*Romero Falcão, é um cronista que se arrisca a fazer poema torto, autor do livro: Asas das Horas, com prefácio do Prof. José Nivaldo.
