
É Findi - Quitéria - Conto, por AJ Fontes*
19/07/2025 -
Sentado, a bigorna apoiada no tamborete entre as pernas, espicha o couro com as mãos calejadas. Cada qual com o seu. Levanta o martelo. Nesse canto de feira ninguém se preocupa com os outros. Acerta a cabeça da brocha. O trabalho me dá o de comer, o de vestir e onde morar. Alisa com o dedo e rebate. Pra que ficar espiando o fazer dos outros? Espicha outra parte, tira outra brocha presa nos lábios. Feito Quitéria, de olho grudado em João? Outra martelada. Tá caçando as coisas dele. Lá se vai couro adentro.
Abelardo acomoda o sapato junto ao par na banqueta à frente, levanta-se, passa ao lado da estante que o pai construiu e usou, com prateleiras repletas de pares enfileirados. Passa o olho na banca do outro lado da rua.
— Escolha a alface, patroa. Tá novinha. Vai levar maxixe, quiabo? Tudo novinho.
Quitéria. Eita! Arrasta os chinelos no chão batido, coluna arqueada pelo tempo sentado, curvado, no tamborete herdado. Mulher, acho no night club. Espicha a coluna, torna a sentar. Apanha o frasco de tinta preta, bota um pouco do líquido na tampa da lata de graxa da mesma cor. Pego uma da minha escolha, faço, pago e pronto. Apanha um pé, acomoda na canhota e lambuza de tinta.
Quitéria apanha as cédulas, conta, retira uma carteira do bolso no avental, guarda o recebido, retira moedas e entrega a freguesa.
— Obrigado, freguesa. Volte sempre.
Vira para banca, bate palmas.
— Vamos aproveitar, tudo verdinho, chegado da roça.
Um jovem, carregando uma pasta, aproxima-se e a abraça.
— Benção, minha mãe.
O sorriso e o brilho nos olhos se instalam no rosto da feirante.
— Deus te abençoe, meu filho. Já acabou a aula?
— O professor da última saiu mais cedo. Vou pra casa.
Francisquinho atravessa a rua, em frente ao sapateiro.
— Boa tarde, Seu Abelardo.
Mal ouve um som parecido com um grunhido. A mãe acompanha, com o rabo do olho.
O velho escova o calçado, alisa com uma flanela e troca de pé. Essa danada não envelhece. Pincela a tinta e aguarda secar. Faltou pouco pra ela me segurar com uma arruela no dedo. O pensamento se perde nas escovadas que passa no couro.
— Olha a batata inglesa! Mais barato não vai achar!
O pensamento volta. Esse camarada não tem jeito. Tanto fez que arrumou a banca dele junto da dela. A escova deslisa como se flutuasse só. O som denunciava se já estava pronto o serviço. Manoel nunca que largou dela e ela dava trela.
O sol do meio-dia torrava o juízo e o corpo já havia consumido o café da manhã. Não se ouviam saltos e solados tocando o chão seco e sujo, tão pouco as súplicas dos vendedores. Todos buscavam um punhado de feijão, um pedaço de charque, um gole de água fresca.
Ficou um murmúrio, aqui e ali, de conversas. De olho em um ou outro que se aventurasse às compras naquela hora, mas quase não aparecia. Manoel costumava se chegar a Quitéria. Os dois sentados sobre sacos e caixotes olhavam um nos olhos do outro. Mulher, não lembro quantas vezes perguntei. A gente já está mais pra lá que pra cá. Ninguém faz mais nada que incomode o outro, já se conhece tão bem que só de olhar sabe se sim ou se não. Calou, esperando algo diferente vindo dos lábios da única mulher que casaria na vida. Mas, como ele disse: só de olhar pra ela, sabia a resposta. Suspirava, balançava a cabeça.
O martelo recomeçou. Era um calçado feminino. Bonito, mas sem trato. Cadê os dois? Não é de hoje, não é de hoje. As marteladas, por essas horas eram mais fortes. Chamam a atenção de quem tinha e de quem não tinha à ver com elas. Coincidia com o reinício do movimento na rua. Certamente o sangue voltava a circular depois de se concentrar no trato digestivo. A cantiga metálica dava tino a quem nem dormia, nem acordava. Cochilava.
Com um cigarro na mão, Quitéria levantava, olhava o martelador e demorava suficiente para assistir mais uma vez um filme antigo, cheio de risos, beijos e amores que se misturava aos gritos e socos dos homens e ao choro ao ouvir: Nunca mais. Acorda mulher! A vizinha alertava. Olha a freguesa. As cenas se perdiam entre os pedidos de maxixe, quiabo... feito ela, longe no tempo que saiu andando pelo mundo e só voltou com Francisquinho segurando sua mão, caminhando com os pezinhos pequeninos ainda. Mãe, tô com fome. Vamos parar, meu filho.
O reclame de frutas, verduras; de martelo, parou. Ela saiu daqui sem barriga. Mas, podia estar prenha, né? Arregalaram os olhos para um lado da rua, para o outro. Bem que ele parece com... Com quem?
*AJ Fontes, contista e cronista, engenheiro aposentado, e eterno estudante na arte da escrita, publicou o livro de contos: ‘Mantas e Lençóis’.