
O último ajuste da criação - A memória seletiva de Deus, conto por Zé da Flauta*
19/07/2025 -
Diz uma lenda antiga que, quando Deus criou o mundo, fez tudo com perfeição, o céu azul, as estrelas brilhantes, as águas cristalinas e os seres humanos cheios de sonhos. Mas quando terminou, percebeu que faltava algo. Os homens eram inteligentes, criativos, e tinham memória infalível. Eles lembravam de tudo, cada detalhe, cada palavra dita, cada dor sentida. E foi aí que começaram os problemas.
No início, as pessoas adoraram suas memórias impecáveis. Sabiam onde tinham deixado as chaves, o que haviam comido no café da manhã e até o nome de todas as pessoas que encontravam. Mas logo perceberam que lembrar de tudo tinha um preço alto. Eles não conseguiam esquecer as ofensas, os erros e as perdas. O mundo começou a se encher de ressentimentos.
Deus, lá de cima, observava.
- O que fiz de errado? pensou. - Criei a memória para que eles aprendessem e crescessem, mas agora estão presos a ela.
Depois de muito refletir, teve uma ideia. Chamou o esquecimento para uma conversa. O esquecimento, até então, vivia à margem da Criação, sem ser chamado para nada. Quando ouviu o convite de Deus, ficou emocionado.
- Esquecimento, disse Deus, - preciso de sua ajuda. Quero que vá até os homens e aliviá-los do peso de suas memórias. Quero que eles tenham espaço para o perdão, a renovação e o mistério.
O esquecimento, com humildade, respondeu:
- Senhor, será uma honra. Mas e se eles não gostarem de mim? E se acharem que sou uma falha?
Deus sorriu e disse:
- Eles podem resistir no começo, mas, com o tempo, vão perceber que você é um presente. Sem você, não há como recomeçar.
E assim, o Esquecimento desceu ao mundo. No início, os homens estranharam.
- Onde coloquei minhas sandálias? perguntavam.
- Por que esqueci o que ia dizer?
Mas com o tempo, perceberam algo curioso: esquecer fazia bem. As dores pareciam menos intensas, as brigas eram mais fáceis de superar, e a vida seguia com mais leveza.
Alguns começaram a filosofar sobre o esquecimento.
- Talvez Deus nos tenha dado isso para que não fiquemos presos ao passado, disse um homem sábio. - Ou talvez seja para que possamos redescobrir a beleza das coisas, como se fosse a primeira vez, completou outro.
Mas o esquecimento, às vezes, exagerava. Havia quem esquecesse o nome do próprio cachorro ou as datas importantes. Nessas horas, Deus ria lá do céu.
- Até o Esquecimento precisa de equilíbrio, dizia Ele.
E, por isso, criou a memória seletiva, um tipo de contrato entre a memória e o esquecimento, para que só ficassem as lembranças que realmente importavam.
Hoje, dizem que o Esquecimento continua andando entre nós, invisível, mas presente. É ele quem nos ajuda a abandonar o que não serve mais e a seguir em frente. E, se você já esqueceu algo importante e ficou irritado, lembre-se: o esquecimento é uma criação divina, e ele está aqui para te ensinar que nem tudo precisa ser carregado para sempre. A vida precisa de alívio e mistério para ser plenamente vivida.
*Zé da Flauta é músico, compositor e escritor.
