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Sapateiros além das sandálias, por Natanael Sarmento*

19/07/2025 -

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Em sua “História Natural” Plínio registra célebre reprimenda do pintor Apeles: “não vá o sapateiro além das sandálias”. O sapateiro fez reparos cabíveis às sandálias pintadas. Daí prosseguiu suas críticas incabíveis a outros aspectos da tela. Foi repreendido. Há quem cite essa passagem como lição de limites. Para nos cingirmos a dar opiniões somente ao que conhecemos. No que tenha isso de verdade, tomo o lado do sapateiro. Para opinar sobre o que quiser e quando quiser. E destaco a forma ríspida e autoritária de Apeles. É típica dos poderosos. Revela todo preconceito e intolerância classista. Se fosse o famoso pintor Apeles recebesse um ríspido cale a boca por dar palpites indevidos no trabalho do sapateiro o episódio teria a mesma repercussão? Nem seria registrado por Plínio, o velho. Os teríamos a indignação ante o comportamento inadequado do sapateiro. A historiografia dominante é dos vencedores. E expressa a ideologia dos dominantes. O mais é fábula.

Olhe onde pisa

Dona Rosa - e muitas mães desse mundo afora - ampliou o valor de usou das sandálias. Educava e dava limites. Faz quase 60 anos da morte de Rosa e guardamos saudade até dos necessários ajustes psicopedagógicos das chinelas. Cronologia não é o mesmo que tempo histórico. Cronometramos o século XXI, falamos em “revolução virtual”. Uma criança, contrariada pela mãe, bateu-lhe no rosto, numa praça de alimentação de shopping. Não somos especialistas em educação infanto-juvenil. Tampouco nos cingimos e aceitamos a teoria de Apelas. Metemos o bedelho em tudo. A geração dos chinelos jamais levantaria a mão contra a mães, reverenciadas, respeitadas, sagradas. A geração dos chinelos tem traumas? Decerto. Mas nossas marcas traumatizantes não decorrem de sovas maternais. Decorrem da repressão da ditadura militar, dos chutes de coturnos. Da vileza da burguesia e militares capachos do imperialismo Norte Americano. Dos canalhas empoderados que não enxergavam e sequer olhavam onde pisavam. Dos torturadores sevandijas das “pianolas” máquina de choques elétricos, dos “telefones” e paus-de-arara. Ruggiero viveu clandestinamente no Canto Mangue. O filósofo aloprado em sua dialética de totalidade formulava sínteses: sapatos furados ensinam o dono a olhar o terreno antes de pisar.

Pé-rapado

“Pé rapado” é expressão em nosso dialeto que significa pobre. No Brasil colonial, negros escravizados, indígenas, colonos desterrados. “Tigres” carregavam toneis de fezes na cabeça. Sujavam os pés nos nas fazendas e minas, transporte das liteiras dos senhore(a)s. Ruas enlameadas. Nas igrejas coloniais – eternamente - colocavam vergalhões de ferro ou coluna de pedra destinados à raspada dos pés sujos.

Salto alto

Quanto a expressão “salto alto”, tão banalizada no futebol, indica soberba. Equipe ou jogador que subestima o adversários e a empáfia leva à derrota. Na moda feminina, é sinonímia de elegância. Nas cortes medievais, o tamanho do salto indicava a distinção da aristocracia. Cortesãos e Luís XIV usavam perucas e saltos altos no Palácio de Versalhes. Quando os tufões revolucionários de 1789 varreram a França e a guilhotina falou francês levou os saltos altos. A perucas se foram juntamente com as nobres cabeças. Mas esta outra história só contamos se o estimado(a) leitor(a) convidar e matar uma galinha gorda. Ou servir a “lagosta ao Termidor”, em reverência aos revolucionários franceses. Levamos a prosa, a cachaça e o vinho.

Os pés se vão e as alpercatas ficam

A frase poderia ser atribuída a cangaceiro que saqueia as alpercatas do defunto, por melhor estado. Tampouco seria original. É velho o ditado “vão-se os anéis, ficam os dedos”. Porque até os mentecaptos da Terra Plana percebem as mudanças econômicas, sociais, políticas, culturais, dos hábitos e costumes sociais. Menos perceptível é distinguir aparência de essência. Aristóteles tentou ajudar. Tanto na forma, quanto no conteúdo, as forças produtivas mudam, incessantemente. Mas o conteúdo explorador das relações de produção históricas: escravista, servil, proletário, não acompanham o ritmo dos progressos produtivos. Sutilezas apontadas pelo barbudo Marx. Já o Príncipe de Lampedusa, entendia a necessidade das mudanças conservadoras da revolução de unificação italiana: “algo é preciso mudar, para que tudo continue como está”. Aristóteles, a.C. lecionava: “repetir, repetir até ficar diferente”. O poeta Manoel de Barros em sua “grandeza do ínfimo” verseja diferente, repetindo Aristóteles. Com ou sem filosofias e poesias, o sapateiro é das profissões mais antigas. Do Oriente ao Ocidente, universalidade singularizada pelas culturas e tamanho dos pés. Há um sapato para cada cada pé. Com pedra, todo sapato incomoda. E só quem o calça sabe onde aperta.

Ribeira dos cangulos

Por cangulos, peixes de segunda, se denominavam os moradores pobres da Ribeira, em Natal. Para os cangulos sapatos eram artigos de luxo. Os salários e rendas dos pais não acompanhavam o crescimento dos pés da meninada. Salomão e Rosa adotavam a pratica generalizada de calçar os filhos com números maiores que os pés. Nossos sapatos concluíam o curso primário. Obviamente, reformados – recebiam solas, tinturas e biqueiras novas. O sapateiro “Seu Zé”, magro, alto, cego de um olho, cópia entalhada do “Cavaleiro de Triste Figura” de Cervantes, deixava os pisantes novinhos. Sua banca ficava na calçada da rua Tavares de Lyra. No “exame de admissão ao ginásio”, ritual de passagem, a tensão era grande, da cabeça aos pés. Trocamos de “status” colegial e de sapatos. Os velhos amigos abandonados, nada perderam no ginásio. Um péssimo estudante. Desatento, relapso. As equações matemáticas, faziam calos! Encontrar o abstrato valor de “x” doía mais que um “toco” desleal do zagueiro. A vida bela corria, alegremente, nos gramados de futebol. Com a camisa da equipe e chuteiras, nos sentíamos Luís XIV! Zé sapateiro ajustou as travas, retirou três camadas de sola. Do fracasso da carreira futebolista abortada, podemos dizer que “penduramos as chuteiras” sem calçá-las profissionalmente. Se fosse deputado, estaria recebendo salários, mesmo assim. Sem querer repetir a fábula da raposa e das uvas, ganhamos ambos: o quase jogador e o futebol. Precisava fazer muito mais para merecer vestir a camisa do ABC, o maior time de futebol do mundo, ao lado do Sport do Recife, obviamente.

De pé no chão

Djalma Maranhão foi o melhor prefeito de Natal, amava o povo pobre. Foi exilado e morreu, acusado de comunista. O “Gordo Maranhão” combateu o analfabetismo nas áreas periféricas. Implantou barracões de palha e taipa nos bairros proletários sem prédios escolares, Rocas, Quintas, Areal, memorável campanha educacional. O lema: “De Pé no Chão Também Se Aprende a Ler” é autoexplicativo. Abraçado por educadores, professores, estudantes e intelectuais. Muitos cangulos tiraram os pés do chão graças ao programa de educação popular do “Gordo Maranão”. Os algozes golpistas estão na cloaca da história. Djalma Maranhão sobrevive, eternamente, nos corações do povo potiguar. Ave, Gordo Maranhão! Os que vivem e lutam te saúdam!

De volta aos gramados

As chuteiras antigamente eram confeccionadas por sapateiros. Esses artesãos modelavam, escolhiam o couro, tiravam as medidas, cortavam e costuravam. Matéria publicada por neto de sapateiro me emocionou. O Aristides Pereira foi funcionário do Bangu, melhor fazedor de chuteiras do Brasil. Tanto que levou a CBF a contratá-lo para calçar os craques das Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1966. O Pelé, cujas declarações públicas não costumam reproduzir as belezas do gênio futebolístico em campo, neste caso, foi grato e reconheceu – (entrevista em 1967): - "Fiz muitos gols com as chuteiras do teu avô, o velho Aristides, o martelinho de ouro".

Sapateiro governador

Natal não conheceu fazedor de chuteiras como o Aristides do Bangu. Em compensação conheceu sapateiro governador.
Em 1935, o sapateiro José Praxedes, da Aliança Nacional Libertadora marcou o gol de placa. Os revolucionários tomaram o poder das oligarquias do Paquiderme. Durante três dias o sapateiro governou o RN. Havia discussões e ninguém se entendia nas linhas defensivas das oligarquias potiguares. A crise econômica e política se aprofundava e o Getúlio dava passos largos rumo à ditadura fascista do Estado Novo. Colocou a ANL na ilegalidade. Mas a grande frente antifascista sob as lideranças do Partido Comunista parou de difundir o programa progressista e nacionalista da revolução. Ganhou milhares de corações e mentes de Norte a Sul do Brasil. A conjuntura específica de crise no Paquiderme divisão oligárquica possibilitou a deflagração do movimento revolucionário no Rio Grande do Norte. Os revolucionários conquistaram a Capital, depuseram o governador Rafael Fernandes, conquistaram 2/3 dos municípios o Estado. A Junta Governativa Popular Revolucionária foi aclamada em Praça. Zé Praxedes, preto, sapateiro e comunista foi o comissário governador. O nome do sapateiro não consta da lista de ex-governadores do Paquiderme. Mais uma prova do registro e/ou ocultação histórica dos vencedores.

*Natanael Sarmento é professor e escritor. Do Diretório Nacional do Partido Unidade Popular Pelo Socialismo.

NR - Os textos assinados refletem a opinião dos seus autores.

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