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Entrevista - Campos de concentração no Brasil, mancha que a história esconde, com José Paulo Cavalcanti Filho

01/11/2025 -

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Ele é advogado, três vezes imortal - na Academia Pernambucana de Letras, na Academia Brasileira de Letras e na Academia de Portugal, sediada em Lisboa. Autor de aclamada "quase autobiografia" de Fernando Pessoa. Ex-ministro da Justiça. Humanista. José Paulo Cavalcanti Filho escreve regularmente artigos que sempre repercutem. Levanta temas polêmicos,com propriedade. Recentemente, abordou um assunto não inédito mas cuidadosamente condenado ao esquecimento pela historiografia oficial: os campos de concentração existentes no Brasil, que antecedem e vão muito além dos casos aqui acolá discretamente citados, ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial. O Poder foi conversar com ele sobre o tema, no Brasil e no mundo.

O Poder - O Senhor faz uma correlação entre os prisioneiros no badernaço de 8 de janeiro de 2023 e os antigos campos de concentração. Poderia explicar?

JPCF - Ao ver milhares de brasileiros na Esplanada dos Ministérios, tangidos como bois para as prisões, velhos e mulheres entre eles, como se fossem um rebanho, a imagem me remeteu aos campos de concentração. Que assim eram recolhidos, naqueles tempos, opositores do governo. Depois o Supremo ainda os distinguiria com penas superiores a 17 anos, num julgamento sem paralelo no Brasil, um horror, mas essa é outra história.

O Poder - Onde entra o amigo Mickel Sava Nicoloff na sua narrativa?

JPCF - Conto essa história a partir de um amigo querido, que de alguma forma fez parte dela, Mickel Sava Nicoloff. Em 'O Recife e a II Guerra Mundial', Rostand Paraiso diz que “grupo de tripulantes de um corsário alemão, afundado em nossas costas… teria sido enviado para um campo de concentração existente, ninguém sabia onde, no Nordeste”.

O Poder - Grande Mestre Rostand...

JPCF - Rostand teve, mais tarde, “a confirmação de que aquele campo havia, realmente, existido; funcionando, de novembro de 1942 a maio de 1945, em terras da Fábrica de Tecidos Paulista, de propriedade dos Lundgren”. Mas o que liga Mickel a esse campo de concentração?, eis a questão. Para responder, é preciso voltar no tempo. A trajetória do eminente advogado Mickel Sava Nicoloff resulta quase inacreditável. Seu avô, por exemplo, era ajudante de ordens do marechal Hindenburg na Primeira Guerra.

Finda essa guerra, o filho do tal general Sava von Nicoloff, batizado Mickel, decidiu viajar pelo mundo inteiro. Acabou batendo em Caruaru, Pernambuco, onde se apaixonou por Maria das Graças, morena bem Pernambucana.



O Poder - E o Mickel filho?

JPCF - O amigo Mickel nasceu em Berlim, numa Alemanha que já se preparava para a (Segunda) Guerra.
Ante a proximidade da guerra e com uma criança para criar, decidiram seus pais que melhor seria voltar ao Brasil. Aqui, viveram bom tempo sem problemas. Até o dia em que policiais bateram na porta da casa em que moravam.

E pediram que o pai de Mickel, alemão de nascimento só para lembrar, os acompanhasse. A mãe levou o marido até a porta e lhe deu um derradeiro beijo. Seria o último nas suas vidas. O pai de Mickel nunca mais voltou.

O Poder - O que aconteceu?

JPCF - Imagina-se que seu pai terá sido encaminhado a algum campo de concentração. Nunca se soube exatamente onde terá sido. Nesse ponto, e considerando o silêncio constrangedor de nossos livros de história sobre o tema, o leitor perguntará se terá mesmo havido algo assim, no Brasil.

O Poder - E terá?

JPCF - Trata-se de instituição bem mais comum do que se pensa. A primeira experiência em campos de concentração ocorreu com a Grâ-Bretanha, na Guerra dos Bôeres (que findou em 1902), quando os britânicos ainda ocupavam a África do Sul. Depois com alemães, numa colônia do Sudoeste Africano (atual Namíbia). O episódio é hoje conhecido como primeiro genocídio do século XX, contra rebeldes Hererós e Namaquas – entre 1904 e 1907.

E a França, em sequência, respondeu por 3,5 milhões de mortes em 25 campos africanos próximos das atuais fronteiras com Iraque, Síria e Turquia. Não só lá. União Soviética (entre 1923 e 1961, sobretudo nos tempos de Stalin), teve seus Gulags (Sibéria). China, com Laogais, até 1990 (no total, chegou a abrigar 50 milhões de chineses). Aqui mais próximo, na Argentina, durante a ditadura militar (de 1976 a 1983), os Centros Clandestinos de Detenção (CCD). E no Chile, durante a ditadura de Pinochet, o Estado Nacional e a Villa Grimaldi. Além de muitos outros lugares – Espanha, França, Itália, Japão, Portugal.



O Poder - Sem esquecer a Alemanha nazista...

JPCF - Certamente. Com os mais famosos deles, Auschwitz-Birkenau, Buchenvald, Treblinka, tantos mais. Em que se estima terem sido 8 milhões de pessoas encarceradas nesses espaços que eram sobretudo de extermínio.

O Poder - Existem filmes e documentos falando em campos de concentração também nos Estados Unidos...

JPCF - Quando estudei lá, em Harvard, um professor disse terem sido 17 os campos na Segunda Guerra. Entre esses um, no deserto da Califórnia. Em que os presos, estimulados a escapar, morriam de sede naquelas areias quentes. Um depoimento desacompanhado de provas.

O Poder - Existem campos ainda hoje. Só que o noticiário não trata como tal.

JCPF - Sim. Falta lembrar campos ainda hoje existentes: em Guantânamo (Cuba), sob responsabilidade dos Estados Unidos; e na Coreia do Norte (com mortalidade elevada), de um ditador, Kim Jong-un, do século XIX em pleno século XXI.



O Poder - E o seu balanço sobre o Brasil?

JPCF - Os números oficiais indicam que tivemos, na Segunda Guerra, 12 campos de concentração para manter presos cidadãos nascidos em Alemanha, Itália e Japão. Entre eles um famoso, no Pico da Bandeira. Sem outros detalhes. Só que, tudo sugere, foram mais. Segundo registros, o de Pernambuco ficava em local conhecido como Chã de Estevam – hoje, Araçoiaba. Talvez o pai de Mickel tenha ido para lá. Ou mesmo para o de Paulista, citado por Rostand. Junto da fábrica de tecidos da família. Onde aliás naquele tempo trabalhou o alemão Fritz Theodor Hemprich (tio do amigo Tota Faria), casado com Gracinha, irmã do dr. Agadir Faria.

O Poder - Então, havia extermínios nesses campos do Brasil?

JPCF - Seja como tenha sido, imagino que o pai de Sava morreu de morte natural. Segundo o mesmo Rostand, eram “campos mais de confinamento que de concentração”.

Registro saudades de Mickel Sava Nicoloff. E findo com um lamento pelos que perderam, ou estão perdendo, nas prisões, confinados como os de Brasília, pedaços inteiros de suas vidas. Deus tenha pena deles todos.
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