Entrevista — Operação policial no RJ contra traficantes mostra que país vive tragédia sem fim, diz Marcelo Tognozzi*
02/11/2025 -
Marcelo S. Tognozzi
O Poder — Como jornalista experiente, o senhor cobriu muitas reportagens sobre crimes e violência nas grandes cidades. Como vê o cenário hoje, depois dos episódios dos últimos dias no Rio de Janeiro?
Marcelo Tognozzi — Nestes últimos 40 anos, tudo mudou para pior. No início dos anos 1980 comecei a trabalhar no Globo como repórter. A gente fazia de tudo um pouco. A redação velha tinha as mesas com máquinas de escrever em filas de 3. Na minha, éramos Tim Lopes, Marcelo Beraba e eu. Repórter fazia de tudo um pouco. Fui apresentado ao mundo cão. Ou melhor: à vida como ela é, sem retoques ou maquiagem.
Ainda vivíamos na ditadura militar, governo Figueiredo, e mesmo com a “abertura lenta, gradual e segura”, a repressão era implacável. Fui perseguido pelo então secretário de Segurança general Waldir Muniz, porque entrei disfarçado no Manicômio Judiciário e entrevistei uma moça presa por tráfico de maconha e torturada pela polícia com uma cobra jiboia. Durante alguns anos cobri tragédias, como deslizamentos nos morros do Rio, chacinas, guerras de traficantes, assaltos, entrevistei bandidos famosos, bicheiros e fiz reportagens dentro de penitenciárias. Mais tarde, cobri a chacina de Vigário Geral e o assassinato de Daniela Peres. Vejo, hoje, que a pobreza como ativo político ficou cada vez mais feia.
O Poder — Em que sentido o senhor afirma isso?
MT — A pobreza ficou mais manipulada, vulnerável à criatividade dos querem eternizá-la, seduzida pela demagogia e seus paliativos, bilhões injetados todos os anos no social, para que nada mude. Me lembro de uma conversa com o então vice-governador do Rio, Darcy Ribeiro, no seu gabinete. Ele discorria sobre os CIEPs, os Centros Integrados e Educação Pública por ele criados e que tomaram vida a partir da prancheta de Oscar Niemeyer. “As pessoas precisam entender que até os 12, no máximo 14 anos, conseguimos resgatar os meninos, transformá-los em cidadãos ao invés de entregá-los para o crime. Depois desta idade fica muito difícil”, argumentou Darcy. Sempre achei admirável o fato de ele enxergar a pobreza como um mal a ser superado, nunca como ativo político.
Naquele tempo, ainda era possível solução na base do amor para a tragédia carioca, agora nacional. Era exatamente o que Darcy Ribeiro tinha em mente com suas escolas de tempo integral, com esporte, comida boa e assistência médica e dentária, onde os meninos ficariam o dia todo. Uma forma inteligente de esvaziar as ruas. Infelizmente a proposta de Darcy e Brizola não foi adiante. E a situação continuou piorando ano a ano.
O Poder — Essa situação, ao seu ver, não mostra que há um desequilíbrio de forças?
MT — Sim. O Rio de Janeiro e outros estados como Ceará, Amazonas e Bahia estão divididos entre o poder dos narcos e o poder público. E esse desequilíbrio de forças fica nítido como aconteceu na última operação policial do Rio, quando a bandidagem bombardeou a polícia com drones, igualzinho acontece na guerra da Ucrânia e no Oriente Médio.
Chegamos a um ponto terrível, porque não há volta. Quem mora no asfalto tem uma vaga ideia da realidade dos morros e das comunidades pobres do Rio. Não convivem com a tirania dos traficantes e milicianos que ali reinam. Nem são obrigados a seguir suas leis, servir de escudo humano e entregar seus filhos para as tropas do crime.
O Poder — Poderíamos chamar essa situação de guerra urbana?
Há um estado de guerra permanente nas favelas. Um narcoestado é um estado de terror. Sempre será. Subjuga tudo e todos para que seja feita sua vontade. Infelizmente chegamos a uma encruzilhada: ou a sociedade enfrenta o narcoestado ou será engolida por ele. Não se trata apenas de drogas, mas de tráfico de armas, de falsificação de combustível, bebidas, controle do gás de cozinha, da TV a cabo, do transporte público e até da construção de imóveis.
Thomas Sowell diz que o estado deve ser forte para reprimir a minoria que impede a maioria de estudar, trabalhar, progredir. Aqui ocorre o contrário. A fraqueza e a omissão esvaziaram a solução do amor. Não há mais como tratar a bandidagem na base do carinho, como se fossem pessoas normais. Não são. Nunca serão. Criminoso é alguém sem limites, sem escrúpulos morais ou arrependimento. A vida nada vale e quanto maior o poder deles, mais cedo a morte leva os meninos. Ou se joga duro ou se joga duro. Não há alternativa.
O Poder — O senhor citou o jornalista Tim Lopes (assassinado por traficantes do RJ há duas décadas) com quem trabalhou. Tem experiências sobre conversas com ele?
MT — No fim de maio de 2002, poucos dias antes do meu amigo Tim Lopes morrer assassinado, nós jantamos no Cervantes, em Copacabana. Ele me contou sobre a matéria que faria na Vila Cruzeiro, na Penha, mostrando o poderio do tráfico, disfarçado e com uma microcâmera. Pedi que esquecesse aquilo, argumentei que ele já estava velho (51 anos) para aquele tipo reportagem, o risco era grande demais. “Só eu faço este tipo de coisa na Globo”, respondeu encerrando o assunto. Sai daquele jantar com o coração apertado. Foi a última vez que vi o Tim, meu amigo de décadas. Quando ele sumiu, minha previsão virou realidade.
O Poder — Como o senhor avalia a realidade do Brasil do ponto de vista do apoio a esses grupos?
O Brasil tem 156 milhões de eleitores. Destes, 32,6% têm baixo ou baixíssimo nível de escolaridade e 44,82% passaram pelo ensino médio. Juntos são 77,4%. Apenas 10,7% têm curso superior. O grosso deste eleitorado tem entre 25 e 54 anos. Uma população com baixa renda, escolaridade sofrível e baixa capacidade cognitiva.
Poucos sabem ler e escrever corretamente e a maioria se informa pelas redes sociais. Será muito difícil mudar o país com um eleitorado como este, porque a pouca educação e os baixos salários levam as pessoas se preocupem muito mais com o curto prazo, querem tudo para ontem. Assim caminha o Brasil, perdendo a cidadania para os narcos e obrigando a pobreza a viver uma tragédia sem fim entre sangue e lágrimas, violência e tirania.
*Marcelo S. Tognozzi é jornalista e consultor. Uma das principais referências da imprensa brasileira contemporânea.

