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O cronista detalha um sapato velho no Mercado da Madalena
22/03/2024 - ROMERO FALCÃO
Meu sapato velhinho não resistiu, abriu o solado. Gosto de sapato velho, ele nos conhece e reconhece como ninguém, adaptou-se à grosseira anatomia, à pisada tortuosa e ainda por cima absorve o impacto das monstruosas calçadas da cidade. Então, resolvi levá-lo ao doutor dos calçados. Lembrei dos italianos, irmãos Buffone, eita raça genial para restaurar o cabedal, trocar solado com a perfeição de um Leonardo da Vinci, mas isso faz muito tempo, nunca mais ouvi falar daqueles divinos artesãos do sapato. Daí me veio o Mercado da Madalena, sei que lá há um antigo box de consertar calçados. Também seria uma oportunidade de jogar o anzol--meu olhar-- no mar do cotidiano e preparar uma peixada de crônica.
Sítio dos Valença
Estacionei o carro na antiga praça dos passarinhos. Um flanelinha gentil ajudou na manobra, parece antigo ali, um prata da casa que conhecia os moradores da redondeza pelo nome, suponho. Assim que me viu sair do automóvel com o par de sapatos na mão foi logo dando o serviço: "o doutor vai levar para consertar? Já sabe, Sapataria Trovão". Antes de adentrar o mercado, corri os olhos pelos lados e pelo alto. Da Madalena de outrora resta quase nada: espigões de concreto e vidro escondem os últimos históricos casarios que ainda resistem. A praça viu com os olhos que os prédios não haverão de comer todas aquelas lindas construções serem soterradas, virarem metralha, poeira, e das suas sepulturas surgirem um novo Recife que cresce pra cima. É o preço do progresso, da modernidade. Antes de chegar à casa de reparos, provoco meu mercador de memórias: a estrada de paralelepípedo que cortava a praça, passava em frente ao Sítio dos Valença- mestres musicais- a desaguar na Avenida Caxangá. E a famosa feira dos passarinhos que se espalhava ao redor do mercado, onde meu padrinho era frequentador assíduo.
Sapataria Trovão
Por fim, atravesso a porta de entrada do Mercado da Madalena, lá dentro há uma atmosfera contrastando com o tempo veloz de fora, a pressa que aniquila o prazeroso senso de observação. Dentro do mercado há outro mundo: gente calmamente debulhando feijão verde, servindo pingado com pão quente, cuscuz com galinha, macaxeira com bode guisado. Há uma sensação interiorana, um magnetismo extraído da vida simples dos homens. Até que encosto minha barriga no balcão da sapataria Trovão. Exibo o doente, exponho a ferida. Um senhor examina com cuidado o paciente, recomenda o tratamento: "arrancar o solado, fazer a colagem, ir ao forno- uma máquina. E por fim a sutura- costurá-lo. Puxa o talão como quem abre o prontuário de paciente.
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