Esforço repetitivo

Depois dos sessenta anos, é frequente a pane na máquina. Aproveito o dom da pena. No meu caso, dores na retaguarda.Feito a ressonância magnética, descubro a magnífica tendinite do glúteo. Tendinite é esforço repetitivo, um amigo tira onda maliciosa: que tipo de esforço sofre teu glúteo? A fisioterapeuta arrefece o machismo que brilha, pula, feito peixe na rede. A tal inflamação pode ser causada ,também, pelo enfraquecimento do músculo.

Conto ou crônica?

O médico prescreve sessões de fisioterapia. Inicio o tratamento. Já deitado na maca, escuto as falas das senhoras ao meu redor, cada qual com seu lamento, drama, achaques da velhice. Atento, espicho as orelhas. Penso em engendrar alguma coisa, conto ou crônica? Disse Mário de Andrade: "Conto é aquilo que chamo de conto, crônica é aquilo que chamo de crônica". Como não sou estrela brilhante do modernismo, não digo nada.

Prefiro aguardar o filme

Continuo divagando: descrevo minuciosamente o cenário, as divisórias, o madeiramento, o lustre, o Manet na parede, a maçaneta das portas, os aparelhos, o perfil físico das tais senhoras? Não, não, isso cansaria o leitor, é bom não esquecer de que escrevo para jornal digital, e há uma máxima dos internautas: Depois do terceiro parágrafo, prefiro aguardar o filme.

Captando o papo alheio

Embora economize narrativas que cairiam bem num livro, já passei do terceiro parágrafo. Mas há esperança, o dedo internético deslizar a tela do celular pra cima. De volta aos meus ouvidos captando o papo alheio. Uma das criaturas movimenta os braços segurando um círculo, se olha no espelho, exclama: Meu Deus, olha minha barriga! Na outra maca, quantos anos você tem? Tenho 63. A vizinha: ainda é nova, e se tiver dinheiro tira barriga, papada, bota bunda, peito, tira ruga, gordura, estica o rosto. Fica bonita. Em ordem. Não, não tenho grana pra isso. Por falar nisso, tenho um colega que pede todos os dias pra Deus levá-lo, pois não aguenta a cara de espantalho. A fisioterapeuta interrompe a prosa feliz.



Estrebucho de dor

Anoto tudo na cabeça, concluo mentalmente o texto. Ouço o apito do equipamento cujos fios dão uma espécie de choque - o nome técnico é Tens - no meu bumbum esquerdo. O som indica o término da terapêutica. A moça de branco tenta tirar as fitas adesivas, as quais seguram a fiação. Estrebucho de dor, são os diabos dos cabelos agarrados, não querem largar por nada. A moça avisa, aguente firme, senhor. Trinco os dentes. Toma, besta humana, quem mandou xeretar a vida dos outros. O castigo veio a galope. Bem feito.

*Romero Falcão, é um cronista que se arrisca a fazer poema torto, autor do livro: Asas das Horas, com prefácio do Prof. José Nivaldo.