Por Zé da Flauta*
Ninguém sabe ao certo quando ele chegou. Uns dizem que foi de madrugada, outros juram que o viram descendo da carroceria de um caminhão que nem parou. O que todo mundo concorda é que ele trazia uma caixa de madeira escura, presa ao peito por um cordão grosso, como quem carrega o próprio coração do lado de fora.
Chamavam-no apenas de O Guardador.
Era um homem magro, de rosto comprido, olhos fundos e uma calma tão grande que parecia ouvir coisas que ninguém mais escutava.
Ele falava baixo.
Mas não era por timidez, era por respeito ao que carregava.
A caixa tinha uma tampa pesada, com pequenos símbolos riscados à faca. Ninguém entendia o significado, mas todos sentiam que ali dentro havia algo vivo, antigo e perigoso.
Foi Dona Filó, a quituteira, quem perguntou primeiro:
— O que é que o senhor guarda aí, moço?
Ele respondeu com a naturalidade de quem diz o preço do milho:
— Silêncios.
A resposta espalhou-se pela cidade feito vento de mudança.
Silêncios?
Silêncios de quê?
De quem?
Para quê?
O povo, que já era acostumado às maluquices de Cacimba, ficou mais desconfiado ainda. Cacimba, por sua vez, observava o homem de longe, com um sorriso leve, como quem reconhece um parente distante.
Na tarde do segundo dia, o Guardador armou um pequeno banco no meio da praça. Sentou-se com a caixa no colo e chamou:
— Quem quiser ouvir o próprio silêncio, chegue mais.
A primeira foi uma menina, Clarinha, que vivia falando pelos cotovelos. Assim que o homem abriu a tampa, bem devagar, uma onda de silêncio saiu, girou ao redor dela e entrou por seus ouvidos como vento manso.
E Clarinha chorou.
Chorou um choro quieto, profundo, como se tivesse lembrado de algo que nunca viveu.
Depois vieram os velhos. Vieram os homens cansados. Vieram as mulheres com dores guardadas. E cada um recebia um silêncio diferente. Um silêncio só seu.
— Os silêncios sabem o caminho, explicava o Guardador.
Cacimba se aproximou apenas no fim da tarde.
Os macaquinhos, inquietos, puxavam seu chapéu, como quem diz: “não confia, não”.
— O que traz aí dentro? perguntou Cacimba.
O homem abriu a caixa sem hesitar.
De lá saiu um silêncio pesado, quase azul, que vibrou no ar como nota de pife distante.
Cacimba fechou os olhos — e viu coisas.
Viu o dia em que a mãe dele calou um soluço para não assustá-lo.
Viu a tristeza escondida que o pai nunca falou.
Viu os silêncios que ficaram presos nas paredes de casa quando ele saiu pelo mundo.
Quando o Guardador fechou a caixa, Cacimba estava com o olhar cheio d’água.
— Esse aí é seu — disse o homem. — Guarde ou devolva, como quiser.
Mas naquela noite, algo estranho sacudiu a cidade:
os silêncios começaram a escapar.
Saíam como pequenas sombras transparentes, flutuando pelas ruas, entrando nas casas, mexendo em memórias. A cidade amanheceu assustada. Havia gente sonhando com coisas antigas, ouvindo conversas que nunca foram ditas, sentindo saudades de quem ainda não conhecia.
O Guardador, desesperado, procurou Cacimba:
— Eles fugiram. Quando o silêncio se solta, ele procura quem está pronto para ouvi-lo.
Cacimba, com a calma de um louco sábio, respondeu:
— Deixa. O povo precisava escutar o que esconde.
Mas o homem tremia:
— Não posso ir embora enquanto a caixa não estiver completa.
Então Cacimba tocou o pife.
Um toque baixo, quase mudo, tão lento que parecia feito de poeira.
E os silêncios, um por um, começaram a seguir o som, voltando para a caixa como pássaros obedientes.
Quando o último silêncio entrou, o Guardador fechou a tampa e caiu de joelhos.
— Como você fez isso?
Cacimba sorriu.
— Silêncio reconhece silêncio.
E eu carrego o meu desde menino.
O Guardador agradeceu, levantou-se, colocou a caixa no peito e partiu sem dizer adeus.
Dizem que foi visto dias depois em outra cidade, ajudando outro povo.
E desde então, quando alguém emudece de repente na vila, o povo comenta:
— O Guardador passou por aqui.
Ou talvez…
— Cacimba deixou cair um silêncio.
E ninguém duvida.
*Zé da Flauta é músico, compositor, filósofo e escritor.