É Findi – Cultura e Lazer – AJFontes e suas recordações familiares e de livros vermelhos e olivas
26/04/2024 -
Resta ainda um cheirinho do peru da festa. Os olhos embaçados acostumam devagar ao sol do feriado. A luz vaza a janela, corta as cobertas. Entre as camas, um brilho ofusca. Meu irmão esfrega os olhos: Ele chegou? Descemos das camas e nos aproximamos. Nossos olhos arregalados se encontram. Chegou! Elegemos a posse. Toco os punhos, o selim. É de verdade. Vou usar as rodinhas só até começar as aulas. No Externato Nossa Senhora Auxiliadora, reiniciei com as letras, palavras e números. Continuo a usar as rodinhas, por determinação de mamãe, mas quase não tocam no chão.
Viagens alucinantes
A casa alta se encostava no morro do Bom Jesus. No terraço, acho graça ver os carros na rua e as pessoas na calçada do outro lado. Todos pequeninos. Depois de estudar a lição posso descer a longa escada, ao lado do jardim, até o portão e chego à calçada alta. Início mais uma viagem alucinante, à toda velocidade. Desvio de árvores, cachorros, estudantes. Freio na ladeira, na entrada do sítio onde se escondem os favos do mel mais doce do mundo, guardados por abelhas ferozes. Adiante a praça onde o jacaré espera um desavisado cair no lago para abocanhar, calando um longo grito. Desço, faço a manobra, monto e retorno. Na passagem, ficam minha mãe, a vizinha, os amigos. Admiram minha destreza.
Estrada sem fim
Na solidão da calçada, estrada sem fim, chego ao outro lado. A ladeira interrompe minha história. Arfando, equilibro com os pés, apoio o queixo no guidom e observo as casas emparelhadas, no outro lado da rua. O pensamento mergulha na janela de tábuas amarelas: A mão enrugada afasta a cortina de chita esgarçada, pega o caderno de capa encardida, dentro da lata de biscoito enferrujada na prateleira mais alta. Os fios brancos, desgrenhados se aproximam das folhas com a pontas sujas e arrebitadas. Os olhos esbranquiçados vasculham as palavras a lápis e os perdigotos saltam dos lábios murchos quando repete frases mais antigas que ela.
Dono da bola
A bola de Pedro, amigo que mora duas casas depois da minha, faz os heróis solitários esquecerem as montarias em algum canto da calçada. Riscamos as marcas dos gols no chão. No intervalo das partidas, na intimidade dos círculos formados, segredos são revelados.
— Meu pai disse que agora, tudo vai melhorar. Eles, agora vão ver.
— Quem são eles?
— Sei lá!
— Se vai melhorar, por que todo mundo está triste?
Sérias, as pessoas passam por nós. Os carros se repetem verdes e abafam a alegria dos brancos, vermelhos e amarelos.
Meus livros
Pedalo e não consigo brincar porque as histórias não surgem. Como se alguém empurrasse a porta e não as deixasse sair da minha cabeça. Mais uma fila de carros verdes e um caminhão, entre eles. Param na frente da casa de paredes encarnadas. O chiado agonizante dos freios me perturba e quase caiu da calçada alta. Homens de botinas pretas e roupa verde pulam do caminhão. Outros, com fuzis, saem dos jipes e batem na porta. Batem com as armas, até que as bandas se abrem. Entram correndo. Nada mais, eu ouço. Um pássaro empoleira no poste defronte. Um baque surdo, o passarinho voa, abro a boca ao ver os homens que saem da casa com coisas nas mãos e jogam na carroceria. Apuro a vista.
Acalmo a respiração
Desço, faço a manobra, subo e pedalo rápido. Na frente de casa o suor escorrer na testa e o peito tamborila. Encontro o rosto de mamãe. Ela, debruçada no muro, desfaz as rugas na testa, sorri. Eu acalmo a respiração.
— São livros.
— Sim, meu filho.
— E os meus?
Ela sorri.
— Estão seguros.
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