imagem noticia

Ensaio - Entre o Espelho e o Abismo: A Beleza como Arquitetura Ontológica do Ser

31/05/2025 -

imagem noticia
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

Epígrafes Autorais:

“Quem quebra o espelho, não destrói o reflexo — destrói a si. Porque o ser não suporta ser amputado da verdade, do bem e da beleza.”

A verdadeira beleza não está na superfície, nem tampouco no abismo — ela está na harmonia entre o visível e o invisível, entre o que se vê e o que se é."

Prólogo: Quando a Beleza Deixa de Ser Espelho e se Torna Abismo

Se o existencialismo de Sartre é o testamento metafísico de uma liberdade sem essência — de um homem que, ao romper o elo com a ordem do ser, converteu sua própria existência num abismo sem fundo —, este ensaio é o espelho que devolve a pergunta essencial:
que liberdade é essa, se não sabe mais o que é belo, o que é verdadeiro e o que é bom?

Porque não basta discutir o vazio ontológico e essencial que atinge o ser humano — é preciso compreender também seu reflexo sensível: a deformação da beleza, a corrupção do olhar, a morte do encantamento. Se a liberdade sem telos (propósito) gera o colapso do ser, a estética sem ética gera o colapso da alma. E, se a beleza foi rebaixada a ornamento, a simulacro, a vitrine da vaidade — resta perguntar: o que acontece com uma civilização quando ela perde o verdadeiro sentido do belo?

Este não é apenas um ensaio sobre estética. É um ensaio sobre destino.
Porque, como sempre ensinaram os sábios de todas as tradições — do Ocidente ao Oriente, de Atenas à Índia, de Jerusalém ao Tao —, a beleza não é um luxo tampouco um ornamento. Ela é uma necessidade ontológica. Uma arquitetura do ser. Uma ponte entre o visível e o invisível. Entre o Eu e o Tu. Entre o homem e Deus.

E quem rompe essa ponte, não cai apenas no vazio — cai em si mesmo. E descobre, talvez tarde demais, que o próprio Eu, isolado, despido de tudo que transcende e eleva o espírito, é o pior dos abismos.

1. Introdução: A Beleza não é um Acessório — É uma Arquitetura Ontológica

O senso comum deformado, herdeiro inconsciente do empobrecimento metafísico da modernidade, costuma tratar a beleza como um atributo superficial, acidental, periférico — um adorno estético descolado da substância da vida. Nada poderia estar mais distante da verdade. Porque, desde seus primórdios, a filosofia compreendeu que a beleza não é apenas ornamento — é princípio. Não é acessório — é arquitetura do real. A beleza não é algo que se acrescenta ao ser — ela é o próprio esplendor do ser manifestado.

Platão, no Banquete, revela que “o amor nasce do desejo pela beleza”, mas adverte que essa beleza visível é apenas a primeira escada de uma ascensão metafísica, que conduz da beleza sensível à beleza das almas, das leis, dos saberes, até a contemplação do Belo em si — fonte, origem e fim de toda realidade. Nesse itinerário, a beleza não é um luxo dos sentidos — é uma convocação da alma à sua própria elevação.

Aristóteles, em sua Metafísica, reforça esse princípio ao definir o belo como aquilo que possui ordem, proporção e clareza — marcas sensíveis de uma inteligência que estrutura o cosmos e reflete a harmonia da própria physis, que é a matéria essencial de qualquer coisa ou aquilo que é sua própria natureza. E Tomás de Aquino, herdeiro da síntese grega e cristã, leva esse entendimento ao seu ápice ao afirmar que “a beleza é o esplendor da verdade no ser” — (pulchritudo est splendor veritatis). A beleza, portanto, não é mero prazer estético — é revelação ontológica.

Mas é precisamente aqui que se impõe uma advertência: existe um erro recorrente — e filosoficamente grave — que consiste em confundir a beleza enquanto aparência sensível com a beleza enquanto expressão ontológica. Há pessoas belas que são profundamente maléficas, assim como há rostos disformes que ocultam almas luminosas. Quando julgamos a essência pelo invólucro, traímos o próprio espírito da filosofia. A associação automática entre feiura e maldade ou entre beleza e bondade revela uma leitura infantil dos arquétipos, que reduz o símbolo à sua casca, sem penetrar sua substância.

Essa confusão não é nova — mas tornou-se epidêmica numa cultura que perdeu o vínculo entre forma e essência. Ao separar o bem, o belo e o verdadeiro, a modernidade produziu uma idolatria da imagem e um desprezo pela alma. É o triunfo do simulacro: a estética que seduz sem elevar, que encanta sem iluminar, que fascina mas não transforma. Uma beleza que não conduz ao bem e à verdade não é beleza — é disfarce. Como ensinou Heráclito, “o mais belo dos macacos é feio comparado ao homem”, e o mais belo dos homens é feio quando comparado ao Logos. Porque a verdadeira beleza é sempre hierofânica — ela manifesta algo maior do que si mesma, um reflexo da ordem invisível que estrutura o ser.

Plotino, nas Enéadas, aprofunda esse princípio ao afirmar: "A beleza é a presença sensível da unidade no múltiplo. Tudo é belo quando participa da unidade, e tudo se torna feio quando se afasta dela." Aqui se revela que a beleza não é mero atributo estético, mas o sinal visível de que algo está em conformidade com sua própria essência, com seu telos e com a ordem do ser. Onde há unidade, há harmonia. Onde há dispersão, desconexão e rompimento com o princípio, nasce o disforme — estética e ontologicamente.

Aqui reside o drama mais profundo da modernidade — e, com ela, da cultura que pariu tanto Sartre quanto Dorian Gray. O colapso civilizacional do nosso tempo não começa quando abandonamos Deus — começa quando separamos, no plano simbólico, aquilo que a tradição sapiencial sempre compreendeu como unidade indissolúvel: o bem, o belo e o verdadeiro. Rompido esse eixo, o que resta é uma estética sem ética, uma liberdade sem verdade e uma existência sem transcendência — um abismo travestido de autonomia.

É desse abismo que emerge a patologia contemporânea, a qual este ensaio se propõe a diagnosticar e enfrentar — não como exercício estético, nem como especulação acadêmica, mas como imperativo ontológico, ético e civilizacional. Porque restaurar a unidade do bem, do belo e do verdadeiro não é um capricho de filósofos — é uma questão de sobrevivência espiritual de cada ser humano e da própria humanidade.

Como advertiu Simone Weil, mística e filósofa: “O bem é uma necessidade tão vital quanto o alimento. O mal é a privação desse alimento.” E poderíamos dizer que o belo, assim como o bem, não é luxo — é pão da alma.

Para isso, convocamos primeiramente três arquétipos universais que encarnam, cada um à sua maneira, a tensão entre aparência e essência, entre forma e substância, entre beleza visível e beleza real: Sócrates, Sartre e Dorian Gray.

— Sócrates, o homem objetivamente feio, mas ontologicamente belo — cuja feiura física era apenas a casca de uma alma luminosa, que soube transfigurar sua aparência pela força da verdade, do bem e do amor à sabedoria.

— Sartre, cuja feiura estética — agravada pela condição de viver na capital mundial da beleza, Paris — parece ter se convertido numa ferida ontológica que transbordou na formulação de uma filosofia do desamparo, da recusa do ser, da negação da alteridade e da absolutização de um eu sem essência.

— E Dorian Gray, arquétipo literário do belo que se divorcia do bem e do verdadeiro — cuja juventude e perfeição estética, preservadas magicamente, ocultam uma degradação interior progressiva, provando que a beleza desconectada da virtude não apenas apodrece — mas assassina a própria alma.

Estes três nomes não são personagens isolados da história ou da literatura — são espelhos da condição humana em sua luta eterna entre luz e sombra, entre aparência e essência, entre o chamado à transcendência e a tentação do colapso ontológico.

Por isso, este ensaio não é apenas uma continuação da crítica ao existencialismo de Sartre. É um passo adiante — uma tentativa de restaurar, pela filosofia, pela lógica e pela espiritualidade, a ponte quebrada entre aquilo que somos e aquilo que fomos chamados a ser.

2. Sócrates: A Beleza Oculta na Feiura Aparente

Sócrates é, sem qualquer dúvida, o mais eloquente e definitivo paradoxo da história da filosofia. Mas não um paradoxo meramente estético — e sim ontológico, pois ele encarna a mais radical dissociação entre forma e essência já registrada no pensamento ocidental. Descrito pelos olhos de seus contemporâneos — sobretudo pela pena mordaz de Aristófanes e pela reverência poética de Platão — como um homem de feiura quase escandalosa, sua aparência parecia uma refutação viva dos próprios padrões estéticos da Grécia clássica. Olhos desproporcionadamente esbugalhados, olhar fixo e perturbador; nariz achatado, quase simiesco; lábios grossos, mandíbula desalinhada; barriga proeminente, tórax encurvado, pernas curtas, disformes. Um corpo que, nas praças de Atenas — onde o ideal de beleza era mais que um valor estético, era uma expressão do próprio cosmos — só poderia ser visto como dissonância, como desarmonia encarnada.

E, no entanto — ou, precisamente, por isso —, Sócrates se ergue, aos olhos da história, como o mais belo dos homens. Não pela geometria do rosto, não pela simetria da carne, mas pela sublime simetria da alma. Não pela harmonia da forma, mas pela harmonia do ser. Sócrates não foi belo apesar da sua feiura — foi belo através dela, por tê-la convertido em símbolo pedagógico daquilo que verdadeiramente importa: o trabalho da alma sobre si mesma, a transfiguração do eu pela fidelidade ao Logos.

A célebre descrição de Alcibíades, no Banquete de Platão, sela essa verdade com a força de uma sentença ontológica: “Sócrates é como os Silenos: feio por fora, mas, quando se abre, revela estátuas de deuses em seu interior.” E acrescenta: “Ninguém escapa ao seu encantamento. Nem os mais belos. Nem os mais soberbos. Sua palavra penetra como dardo na alma e, uma vez ferido por ela, não há retorno — é impossível não desejar tornar-se melhor.” Esse testemunho não é mera admiração — é confissão filosófica: a beleza verdadeira não seduz, ela eleva.

Aqui se revela, com uma clareza que nenhuma filosofia posterior conseguiu obscurecer, uma das mais altas lições civilizacionais: a verdadeira beleza não é atributo da matéria, mas expressão da alma alinhada ao cosmos. A beleza não é um acidente da carne — é a epifania visível de uma ordem invisível, de uma harmonia entre o homem e o ser, entre o finito e o eterno, entre o logos e a vida.

Sócrates — aquele que, fisicamente, seria descartado pelos critérios de qualquer estética superficial — é, na verdade, a encarnação de um princípio que o mundo moderno esqueceu e que a cultura sartriana violentamente renegou: não há beleza sem ordenação ao bem. Não há encanto sem enraizamento no logos. Não há harmonia sem adesão consciente à verdade. É o paradoxo da santidade encarnada em corpo vulgar — um corpo que se recusava a servir ao narcisismo, para tornar-se instrumento da luz.

Na lógica socrática, a feiura não é sentença ontológica, nem maldição estética — é desafio pedagógico, é oportunidade espiritual, é convite à transfiguração. A matéria, por mais desajustada, não tem poder de impedir o esplendor da alma quando esta escolhe alinhar-se ao bem, submeter-se à verdade e consagrar-se ao amor pelo logos. O corpo, assim compreendido, não é um fim — é um meio, uma alegoria viva da luta entre aparência e essência. Sócrates venceu essa luta por dentro, como quem planta beleza no deserto.

Por isso, Sócrates é o anti-Sartre por excelência. Onde Sartre faz de sua feiura uma ferida ontológica que se converte em ressentimento metafísico e, dali, em doutrina — Sócrates faz de sua própria feiura uma pedagogia do espírito. Enquanto Sartre amaldiçoa o espelho, recusa o outro e declara o inferno como a presença do Tu, Sócrates ergue-se como aquele cuja beleza transcende o espelho, redime o olhar do outro e convoca cada homem, não à fuga, mas ao encontro. Ao encontro consigo, com o outro, com o cosmos, com o divino.

Porque, na ética socrática, não há feiura que resista à luz da verdade. Não há desarmonia que não possa ser convertida em música pelo trabalho da alma sobre si mesma. A beleza, aqui, não é um dom — é uma conquista. Não é um privilégio — é um chamado.

É exatamente aqui que Santo Agostinho se une a Sócrates ao declarar, nas suas Confissões: “A beleza invisível é infinitamente superior à beleza visível. Porque a primeira jamais se corrompe, enquanto a segunda é sombra que passa." Ambos, cada qual a seu modo, proclamam que a beleza é uma função da verdade e uma consequência do amor — e que a alma que busca o bem com sinceridade jamais será desprovida de esplendor.

E aqui se inscreve, com tinta indelével no mármore da história, a mais poderosa das respostas à filosofia do desespero: a beleza verdadeira não é aquilo que os olhos captam, mas aquilo que a alma revela quando se submete amorosamente à ordem do ser.

3. Sartre: A Feiura Elevada a Doutrina Ontológica - Ressentimento e o Abismo como Morada

Se Sócrates converte sua feiura em escola de virtude, em forja de sabedoria e em testemunho luminoso da possibilidade de transfiguração do ser, Sartre faz exatamente o oposto: transforma sua condição estética — e, mais ainda, sua condição ontológica — numa revolta metafísica contra o próprio tecido da realidade.

Fisicamente marcado por uma feiura desconcertante — estrabismo severo, rosto profundamente assimétrico, mandíbula desalinhada, corpo pequeno, desproporcional, postura encurvada, presença desconfortável — Sartre não buscou, como Sócrates, elevar-se acima dessa condição pela via da alma. Ao contrário: fez dela não apenas uma identidade biográfica, mas o alicerce invisível — e não confessado — de toda a sua ontologia. Seu corpo deformado converte-se, simbolicamente, na matriz emocional de sua filosofia deformada.

Sua célebre sentença — “A existência precede a essência” — não é, como ingenuamente muitos supõem, apenas uma tese filosófica. É, antes, um grito psíquico, um clamor desesperado, uma recusa visceral do espelho, do outro, do cosmos e do próprio telos. É a tentativa de fundar uma metafísica sem metafísica — uma ontologia a partir do ressentimento. Onde Sócrates contempla o logos e se deixa plasmar por ele, Sartre olha para o abismo — e escolhe permanecer olhando, até que o abismo o habite, o molde e o constitua.

Ao negar que exista uma essência anterior à existência — ao proclamar que o homem está condenado à liberdade, forçado a inventar-se a partir do nada, sem Deus, sem telos, sem eixo e sem cosmos —, Sartre não apenas rompe com a filosofia clássica. Ele rompe com a própria inteligibilidade do ser. Sua filosofia não é ponte — é abismo. Não é caminho — é colapso. Não é emancipação — é exílio metafísico travestido de autonomia.

Aqui reside o ponto de inflexão que separa radicalmente Sartre de todos os grandes mestres da tradição. De Platão a Hegel, de Lao-Tsé a Confúcio, do Bhagavad Gita à Cabala, de Tomás de Aquino a Viktor Frankl, uma verdade permanece imutável: a liberdade não é a negação da estrutura — é a sua realização consciente. A liberdade não é ausência de essência — é fidelidade ativa à essência que nos chama a ser mais do que somos. Ser livre é ascender, não dissolver-se.

Nietzsche — que, com todas as suas contradições, compreendia muito melhor o risco do abismo — advertiu, com a gravidade de quem vislumbrou a catástrofe ontológica: “Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha de volta para você.” A diferença é que Nietzsche, ainda que seduzido pelo abismo, jamais o confundiu com morada. Sabia — e disse — que o vazio não redime. Que a morte de Deus não é libertação — é sentença. Que aquele que tenta ser absoluto sem telos, sem logos e sem transcendência, não se emancipa — implode.

Sartre, contudo, foi além: não apenas olhou para o abismo — ergueu nele sua morada, seu altar e sua doutrina. E ali, no ventre escuro do nada, coroou a si mesmo como único soberano de um reino sem súditos, sem amor, sem alteridade e sem verdade — o reino estéril do ego absoluto. Um ego sem espelho, sem espinha e sem horizonte.

Aqui ressoa a advertência brutal de Pascal: “O homem que se faz Deus descobre, tarde demais, que é apenas miséria sem remédio.” Porque a tentativa de erguer uma ontologia fundada no vazio é como construir um palácio sobre areia movediça — elegante na superfície, mas condenado a afundar no próprio nada que o sustenta.

Se Sócrates oferece ao mundo a estética da transfiguração — a beleza da alma que redime a feiura da carne —, Sartre oferece ao mundo a estética do ressentimento: a feiura da alma que transforma sua própria dor em dogma e seu desespero em evangelho. É a celebração do abismo como destino, da amputação do ser como liberdade, da cegueira voluntária como iluminação.

E aqui se inscreve a sentença civilizacional que este ensaio busca denunciar: quando o homem rompe o elo entre liberdade e essência, entre ser e logos, entre existência e transcendência, ele não encontra emancipação — encontra extravio. Aprende a chamar de lar aquilo que, na verdade, é o exílio do ser. E ali, no fundo desse labirinto existencial onde tudo é possível mas nada é verdadeiro, ele instala sua morada — ignorando que nenhum edifício sobrevive quando as fundações foram trocadas por negação.

4. Sade: A Beleza a Serviço do Inferno - A Sedução do Mal e a Ontologia da Perversão

Se Sartre representa o abismo da feiura que se recusa à transcendência, e Sócrates, o esplendor da alma que redime a matéria, o Marquês de Sade ocupa uma posição ainda mais perturbadora na cartografia ontológica do colapso: ele é a beleza estética — real, física, sedutora — colocada a serviço do mal absoluto.

Sade não é uma invenção literária. Ele não habita o domínio das metáforas — é um fato histórico. Um homem real, belo, sedutor, aristocrata, dotado de porte imponente, feições harmoniosas, olhar magnético e presença encantadora. E, no entanto, seu legado é uma das mais brutais expressões do colapso da alma humana quando a beleza, a inteligência e a liberdade se divorciam do bem, da verdade e do amor. Sade é o anti-Sócrates encarnado: onde o filósofo feio revela deuses em sua alma, o esteta sedutor invoca demônios com seu verbo.

Seus contemporâneos o descrevem como fascinante. Suas amantes — e, tragicamente, também suas vítimas — atestaram o poder quase hipnótico de sua presença. Mas, por trás da simetria de seus traços e da elegância de sua figura, habitava um projeto filosófico sombrio: a negação da ordem natural, a celebração do caos moral, a glorificação da dor, da degradação e do prazer sem limites — convertido em instrumento de destruição do outro e, paradoxalmente, de autodegradação.

O Marquês de Sade não foi apenas um libertino. Foi um pensador do colapso. Suas obras — Justine, Os 120 Dias de Sodoma, Filosofia na Alcova — não são meros relatos de perversões privadas. São tratados filosóficos de uma ontologia invertida, onde o ser não é caminho de realização, mas de subjugação; onde o outro não é um espelho, mas um objeto; onde o amor não é via de transcendência, mas ferramenta de humilhação, dor e poder. É a razão a serviço da desrazão — um Iluminismo que implode em trevas.

Aqui se revela um aspecto ainda mais devastador do colapso civilizacional: quando a beleza — aquela mesma que deveria ser ponte entre o finito e o eterno — se converte em armadilha, em isca, em disfarce do mal. Em Sade, não é apenas o corpo que trai a alma. É a própria razão — seduzida pela liberdade sem telos — que se torna cúmplice da barbárie. É o logos pervertido — não negado como em Sartre, mas instrumentalizado. Uma perversão que não ignora a transcendência: prefere profaná-la.

Sua filosofia é a quintessência do narcisismo ontológico levado às últimas consequências. É a absolutização do desejo, a negação de qualquer limite, a glorificação do Eu amputado do Tu, do cosmos e de Deus. Se Sartre construiu uma ontologia do vazio, Sade construiu uma ontologia do gozo infernal — uma metafísica da transgressão como projeto de existência. Não é apenas uma estética do ressentimento: é uma ética do sadismo ontológico.

Aqui ressoa, mais uma vez, a advertência de Pascal: “O homem que se faz Deus descobre, tarde demais, que é apenas miséria sem remédio.” Mas em Sade, essa miséria não é apenas teórica — é encenada. Sua obra não é ficção, é ritual. Não é erotismo — é liturgia do colapso. A beleza, nele, não é vítima: é cúmplice. E isso o torna infinitamente mais perigoso do que o feio que se sabe feio — porque sua sedução precede sua destruição, e sua harmonia visual mascara a desordem moral.

Sade é, portanto, a prova histórica de que Dorian Gray não é uma metáfora excessiva — é uma metáfora necessária. Porque há algo mais terrível do que o feio que nega a transcendência: é o belo que seduz para o inferno.

5. Dorian Gray: A Beleza vomo Máscara da Degeneração - A Forma Sedutora da Morte Espiritual

Se Sartre encarna a feiura que se recusa à transcendência, Dorian Gray — arquétipo literário forjado pela genialidade cruel de Oscar Wilde — representa a outra face do mesmo colapso ontológico: a beleza divorciada da virtude. Se o primeiro simboliza o abismo do ser que rejeita o telos, o segundo encarna o abismo da forma que se desconecta da substância. Ambos são filhos legítimos da modernidade: um pela negação da essência; o outro, pela idolatria da aparência.

Dorian é, objetivamente, belo. Tão belo que sua presença fascina, hipnotiza, seduz e subjuga todos que o cercam. Seu rosto, sua juventude, sua simetria física tornam-se não apenas adorno, mas instrumento de poder, de influência e de manipulação. Mas sua beleza exterior não é espelho da ordem da alma — é uma superfície luminosa encobrindo um abismo que cresce em silêncio. O retrato — aquela obra-prima escondida, trancafiada, silenciada — torna-se o verdadeiro espelho ontológico: é ali que se inscrevem, linha após linha, mancha após mancha, as marcas de sua degeneração moral, de sua decadência espiritual, de sua corrosão existencial.

O Retrato de Dorian Gray não é apenas uma obra sobre vaidade ou narcisismo. É uma denúncia metafísica de proporções civilizacionais. Quando a beleza exterior não reflete a harmonia interior — quando a forma se emancipa do bem, da verdade e do amor —, ela deixa de ser ponte para o eterno e se converte em cárcere da própria consciência. Mais que cárcere: torna-se máscara. Mais que máscara: instrumento de sedução diabólica, de alienação do ser e de destruição invisível da alma.

Platão, com sua lucidez eterna, já advertia no Filebo: “O belo, separado do bem, degenera em armadilha para a alma.” E no Banquete, recorda-nos que a verdadeira função da beleza é ser caminho ascendente — da aparência sensível à contemplação do inteligível, do amor carnal ao amor das formas eternas, do corpo ao espírito, do transitório ao imortal. Quando desconectada dessa finalidade, a beleza não salva — condena.

Oscar Wilde, com sua ironia trágica e sua visão profética, ecoa esse princípio ao inverter a promessa da beleza: “Por trás de cada rosto encantador pode habitar uma alma apodrecida.” A beleza, então, deixa de ser sacramento do ser — e se converte em fachada do vazio.

Dorian Gray é o anti-Sócrates. Onde Sócrates, feio na carne, é belo na alma — Dorian, belo na aparência, é monstruoso na substância. Onde Sócrates oferece ao mundo a estética da transfiguração — o triunfo do espírito sobre a matéria —, Dorian oferece a estética da putrefação invisível: a vitória da forma desacoplada da ética, do telos e da transcendência.

Sua tragédia confirma uma sentença que atravessa todas as tradições sapienciais, do Ocidente ao Oriente: a beleza, quando divorciada do bem e da verdade, não eleva — corrompe. Não redime — destrói. Não conduz à plenitude — precipita no abismo.

Por isso, o retrato escondido não é apenas um artifício narrativo. É uma metáfora ontológica brutal: a decomposição invisível da alma quando a vida se converte em culto à forma sem substância, à estética sem ética, ao prazer sem amor, ao desejo sem responsabilidade e à existência sem essência.

Na modernidade líquida, esse retrato oculto foi digitalizado. Foi convertido em algoritmos, em filtros, em avatares, em performances cuidadosamente editadas. As redes sociais tornaram-se vitrines de uma estética descolada da verdade, onde cada perfil é um Dorian Gray coletivo — e cada feed, um retrato da alma que apodrece fora do alcance dos olhos. A estética do simulacro substituiu a estética da verdade. O culto à imagem substituiu o cultivo da alma.

A tragédia contemporânea é que o retrato não está mais trancado num sótão. Ele desfila em praça pública, é curtido, promovido, monetizado. E o que antes era corrupção escondida, hoje se exibe — paradoxalmente — como glamour, como sucesso, como identidade performática. A degeneração deixou de ser vergonha: virou estética.

Dorian Gray, como Sartre, não é apenas um personagem — é um espelho civilizacional. Um revela o que acontece quando a feiura se recusa ao espírito; o outro, quando a beleza se emancipa do bem. Ambos são, no fundo, expressões simétricas de uma mesma tragédia: o colapso do ser diante da sedução do eu.

6. A Arquitetura da Beleza: Uma Ontologia Integrada - Entre o Telos e o Espelho

Esses três arquétipos — Sócrates, Sartre e Dorian Gray — não são apenas figuras isoladas no teatro da história ou da literatura. São espelhos ontológicos. E, ao serem lidos em sequência, revelam uma verdade tão simples quanto devastadora: a beleza não é um capricho da sensibilidade, nem um mero acaso da matéria — ela é reflexo visível da ordem invisível do cosmos. Onde há harmonia, há beleza. Onde há ruptura com o logos, há feiura — física, moral ou espiritual.

Aristóteles sentencia, com a serenidade dos que compreendem a estrutura do real: “O que não tem finalidade é, por definição, um erro na natureza.” (Metafísica, II, 994b). A beleza, portanto, não é um acidente agradável — é teleológica por essência. É a expressão sensível da conformidade entre forma e finalidade. Quando a matéria se submete amorosamente ao telos, surge a beleza como epifania. Quando esse vínculo se rompe — na carne, na alma ou na cultura — irrompe o disforme, o grotesco, o abismo.

Tomás de Aquino, herdeiro e ápice da metafísica clássica, leva esse princípio à sua mais alta formulação: “O belo é aquilo cuja contemplação agrada, porque reflete ordem, proporção e claridade.” (Suma Teológica, I, q. 5, a. 4). O belo não é um luxo — é um sinal. Não há beleza fora do bem. Não há beleza sem verdade. O belo é, simultaneamente, o esplendor do verdadeiro e a encarnação sensível do bem. Quando desconectada do real, a beleza se torna ilusão. Quando desconectada do bem, torna-se sedução infernal — fascínio que conduz ao colapso e não à realização.

Do Oriente, ecoa a mesma advertência, com a delicadeza cortante dos mestres do Tao. Lao-Tsé revela, no Tao Te Ching:
“Quando o homem perde o Tao, surge a virtude; quando perde a virtude, nasce a moral; quando perde a moral, sobra apenas a aparência.”
E conclui: “A aparência é a casca vazia que antecede o colapso.”

A modernidade vive exatamente nesse estágio terminal: um tempo em que tanto a beleza quanto a feiura foram desconectadas do ser, da verdade e do bem. Restou-nos o império da superfície — onde o belo pode esconder podridão, e o feio pode ser descartado sem que se perceba que, às vezes, esconde uma alma em estado de luz.

A crise do nosso tempo — estética, moral, espiritual e civilizacional — não é um problema de gosto, de moda ou de estilo. É uma crise ontológica. O esquecimento do telos, a recusa do ser, a abdicação da transcendência e a substituição do amor pela arbitrariedade geraram um mundo onde a beleza se tornou farsa — e a feiura, ressentimento. Onde o simulacro se confunde com identidade, e o culto à imagem silencia o chamado da alma.

Sócrates, Sartre e Dorian não são apenas personagens. São sínteses encarnadas de três possibilidades do ser diante do espelho. São diagnósticos. E, talvez, advertências. Porque, na ordem profunda do real, não há beleza fora do bem. Não há liberdade fora do telos. Não há Eu fora do Tu. Não há vida fora do amor.

7. Conclusão: A Beleza Como Projeto Ontológico - Quando o Ser se Reconcilia Consigo Mesmo

O século XXI — herdeiro do niilismo sartriano, da estética narcísica e da dissolução dos vínculos metafísicos — precisa, com urgência vital, reconciliar-se com a beleza. Mas não com essa beleza superficial, sintética, plastificada, curvada aos algoritmos, às vitrines e às farsas publicitárias. É preciso reencontrar a beleza em sua definição originária e civilizacional: como manifestação sensível do bem e epifania visível da verdade. Não como performance, mas como presença. Não como vitrine, mas como vértice.

Santo Agostinho, em suas Confissões, ecoa essa necessidade espiritual com uma das declarações mais sublimes já proferidas pela filosofia do Ocidente:
“Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei. E eis que habitavas dentro de mim, e eu lá fora te procurava…”
Essa é a beleza que não se limita à aparência, mas que habita no âmago do ser, esperando ser reencontrada por aquele que, perdido no espelho do mundo, esqueceu-se de olhar para dentro — e, sobretudo, de olhar para o alto.

Sócrates nos ensina — com a serenidade dos que habitaram o centro do logos — que a feiura exterior não impede a beleza da alma, desde que o espírito se submeta à ordem, ao bem e à verdade. Sua vida é testemunho de que o corpo pode ser dissonante, mas a alma, quando afinada ao cosmos, canta a harmonia das esferas.

Sartre, inversamente, nos oferece — ainda que involuntariamente — a mais devastadora advertência: quando o Eu se recusa ao Tu, quando se fecha à transcendência, ao telos e ao amor, não encontra liberdade — encontra o abismo. Seu rosto deformado, tornado símbolo de sua metafísica, ecoa a condição de sua própria filosofia: a tentativa vã de ser absoluto sem ser inteiro, de ser livre sem ser verdadeiro, de existir sem amar.

Dorian Gray — arquétipo maior da modernidade estetizada e moralmente colapsada — sela o diagnóstico: a beleza desconectada da verdade não salva, não cura, não redime. Apenas adia a sentença. Vive do aplauso dos salões, do reflexo nas vitrines, do encantamento dos ingênuos — mas apodrece no silêncio da consciência.

A verdadeira beleza, então, não é cosmética. Não é ornamento. Não é vitrine.
É arquitetura ontológica.
É o esplendor do ser quando corpo, alma e espírito se alinham ao bem, ao verdadeiro e ao eterno. A beleza floresce quando forma e finalidade, matéria e espírito, o Eu e o Tu, o humano e o divino, se reconhecem, se reverenciam e se reconciliam.

O filósofo judeu Abraham Joshua Heschel, em sua sabedoria profética, sintetiza esse horizonte de redenção com palavras que soam como oração:

“A vida sem beleza não é vida. É apenas sobrevivência. E uma civilização que perde o senso do sagrado, do belo e do amor não perece apenas espiritualmente — ela implode na barbárie.”

Por isso, a sentença final — que nenhuma filosofia honesta pode evitar — é simples, é sublime e é inapelável:

Não há liberdade sem beleza.
Não há beleza sem verdade.
Não há verdade sem bem.
E não há bem sem amor.

Porque o amor — esse, sim — é a forma suprema da beleza,
a mais alta expressão do ser,
o fundamento invisível que sustenta o cosmos,
a alma,
e a própria possibilidade de reencontro com tudo o que é digno de eternidade.

8. Epílogo: O Retrato da Modernidade; Quando o Espelho se Torna Abismo - O que resta quando a imagem sobrevive ao ser

Se Sartre representa o colapso da liberdade sem essência, e Sade, o colapso da liberdade sem limites, Dorian Gray não é apenas um personagem — é uma profecia. Uma advertência ontológica. A metáfora mais perfeita e mais brutal da modernidade quando esta decide, deliberadamente, divorciar a forma da substância, o belo do bem, a estética da verdade.

Dorian não é um desvio literário. Não é um acaso ficcional. É o arquétipo inevitável de toda civilização que quebra o espelho da verdade e passa a se contemplar apenas na superfície polida da própria vaidade. O retrato que Oscar Wilde escondeu no sótão é, na verdade, o retrato da própria modernidade — imagem do que nos tornamos quando a aparência usurpa o lugar do ser.

Cada traço perfeito de Dorian — seu rosto simétrico, sua juventude preservada, sua presença hipnotizante — é a encarnação do triunfo da estética sobre a ética, da performance sobre a substância, do simulacro sobre a realidade. Mas é um triunfo trágico. Porque, enquanto o rosto encanta, o retrato apodrece. Enquanto a superfície reluz, a essência se desintegra. E essa decomposição não é metáfora moralista — é sentença ontológica.

O que ontem era um retrato trancafiado, hoje é um feed de Instagram. É um story, um avatar, um perfil cuidadosamente editado. O sótão virou nuvem. Cada imagem polida, cada filtro, cada curadoria de si é uma nova pincelada sobre o rosto falso que mostramos ao mundo — enquanto o verdadeiro retrato da alma, marcado por ansiedade, solidão e vazio, apodrece fora do alcance dos olhos — mas não fora do alcance do ser.

Se Sartre representa o exílio metafísico — o homem que rompeu com a essência — e Sade, o delírio do desejo sem freios — o homem que rompeu com o bem —, Dorian representa o colapso final: o homem que rompeu com a própria realidade. E ao romper, caiu — não em queda visível, mas em dissolução silenciosa. Num abismo travestido de espelho.

Platão advertiu: “O belo, separado do bem, torna-se armadilha para a alma.” Oscar Wilde confirmou: “Por trás de cada rosto encantador pode habitar uma alma apodrecida.” E a modernidade — sem perceber ou sem querer perceber — transformou esse aviso em roteiro. Não como advertência, mas como modo de vida.

O drama de Dorian é o drama do nosso tempo. Um tempo em que tudo é imagem, tudo é vitrine, tudo é espetáculo. Um tempo em que a superfície não reflete mais a profundidade — a oculta, a encobre, a substitui. E quem vive na superfície, cedo ou tarde, descobre que a superfície é apenas um abismo com moldura de espelho.

O que Oscar Wilde esculpiu em narrativa, o século XXI converteu em civilização.

Por isso, a pergunta que este epílogo lança — e da qual ninguém pode se furtar — é simples, mas definitiva:

O que há no seu retrato escondido?

E mais: até quando será possível mantê-lo escondido?

Porque o destino de Dorian Gray não é apenas literário — é profecia. É espelho. É retorno inevitável da verdade.

E quando essa verdade emergir, não haverá mais filtro, máscara ou performance que a contenha.

Ela não gritará. Não acusará.
Ela apenas olhará — como um espelho que, enfim, se recusa a mentir.

E fará uma única pergunta.
Não retórica.
Não moralista.
Mas ontológica.
Silenciosa.
E irrecusável:

Você é o que mostra…
…ou é o que esconde?

*O autor é advogado, procurador do estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.

imagem noticia unica




Deseja receber O PODER e artigos como esse no seu zap ? CLIQUE AQUI.

Confira mais notícias

a

Contato

facebook instagram

Telefone/Whatsappicone phone

Brasília

(61) 99667-4410

Recife

(81) 99967-9957
Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nosso site.
Ao utilizar nosso site e suas ferramentas, você concorda com a nossa Política de Privacidade.

Jornal O Poder - Política de Privacidade

Esta política estabelece como ocorre o tratamento dos dados pessoais dos visitantes dos sites dos projetos gerenciados pela Jornal O Poder.

As informações coletadas de usuários ao preencher formulários inclusos neste site serão utilizadas apenas para fins de comunicação de nossas ações.

O presente site utiliza a tecnologia de cookies, através dos quais não é possível identificar diretamente o usuário. Entretanto, a partir deles é possível saber informações mais generalizadas, como geolocalização, navegador utilizado e se o acesso é por desktop ou mobile, além de identificar outras informações sobre hábitos de navegação.

O usuário tem direito a obter, em relação aos dados tratados pelo nosso site, a qualquer momento, a confirmação do armazenamento desses dados.

O consentimento do usuário titular dos dados será fornecido através do próprio site e seus formulários preenchidos.

De acordo com os termos estabelecidos nesta política, a Jornal O Poder não divulgará dados pessoais.

Com o objetivo de garantir maior proteção das informações pessoais que estão no banco de dados, a Jornal O Poder implementa medidas contra ameaças físicas e técnicas, a fim de proteger todas as informações pessoais para evitar uso e divulgação não autorizados.

fechar