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Cultura, Sobre a Diversidade de um Conceito - I - Cultura e Democracia por Paulo Rubem Santiago Ferreira*

02/06/2025 -

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A partir de 2021, sob o comando de novos prefeitos e prefeitas, o país reiniciará o desafio da construção de respostas às necessidades referentes às vidas locais de mais de 220 milhões de brasileiros e brasileiras. Os que venceram em 2020 terão pela frente orçamentos aprovados por seus antecessores, e ainda se guiarão, em 2021, pelo último ano de um Plano Plurianual Quadrienal, também elaborado pelos que deixam o cargo em 31 de dezembro de 2020. Aos novos governantes e à sociedade, portanto, não faltam perguntas. Que destaque o tema da cultura obteve nas campanhas eleitorais e nos programas de governo das candidaturas que disputaram o pleito de 2020? Que diagnósticos foram apresentados? Quais propostas foram debatidas nas redes sociais, no rádio e na televisão durante o processo eleitoral? Como foi tratado o orçamento da cultura nas cidades? O que propuseram e defenderam as candidaturas vencedoras?

Empossadas e empossados os eleitos em primeiro de janeiro de 2021, de que forma as novas administrações deverão agir com o tema da cultura? Cultura é direito? Cultura é cidadania? Há uma cadeira produtiva na cultura? Cultura é mercadoria? Que relações poderão ser estabelecidas entre cultura, educação, saúde e cidadania?
Há uma imensa incógnita acerca do que se colocará em prática na agenda da cultura nas cidades. Não ficou claro como ocorrerão a partir de 2021, com apoio do poder público municipal, os processos de formação cultural, seja para a profissionalização das pessoas na cultura, seja para assegurar sua plena fruição das distintas expressões da cultura. Como se darão o fomento à produção cultural e a democratização do acesso da população aos bens culturais? Como ocorrerão a elaboração e a gestão das políticas municipais de cultura? Que papel e que envergadura terá nos próximos quatro anos o orçamento de investimentos na cultura?

Com a aprovação da Emenda Constitucional 71, de 29 de novembro de 2012, iniciou-se no país a organização de seu Sistema Nacional de Cultura, o SNC, vinte e quatro anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e só longos 123 anos depois da Proclamação da República. Através de seu artigo 1o, a referida Emenda inseriu um novo artigo, o 216-A, no texto constitucional de 1988 dispondo-se, através do mesmo, que
o Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. (Brasil,2012).

A partir dos parágrafos primeiro e segundo do novo artigo, inserido no texto constitucional (216-A), ficou estabelecido que
§ 1º O Sistema Nacional de Cultura fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios:
I - diversidade das expressões culturais;
II - universalização do acesso aos bens e serviços culturais;
III - fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais;
IV - cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural;
V - integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas;
VI - complementaridade nos papéis dos agentes culturais;
VII - transversalidade das políticas culturais;
VIII - autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil;
IX - transparência e compartilhamento das informações;
X - democratização dos processos decisórios com participação e controle social;
XI - descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações;
XII - ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura.
§ 2º Constitui a estrutura do Sistema Nacional de Cultura, nas respectivas esferas da Federação:
I - órgãos gestores da cultura;
II - conselhos de política cultural;
III - conferências de cultura;
IV - comissões intergestores;
V - planos de cultura;
VI - sistemas de financiamento à cultura;
VII - sistemas de informações e indicadores culturais;
VIII - programas de formação na área da cultura; e
IX - sistemas setoriais de cultura.

Como Relator da proposição dessa emenda no Congresso Nacional alertamos que, enfim, chegara a oportunidade estratégica para desenvolvermos políticas públicas regulares de cultura, transcendendo o aspecto sazonal de seus eventos, opções marcadas pela volatilidade, sobretudo nos ciclos, como Carnaval e São João. Com o Sistema, poderíamos ir além das atividades relacionadas com as especificidades de cada município, seu perfil agrícola e econômico, como as festas da laranja, do milho, do peão boiadeiro, da banana, a festa do café, entre outras, eventos sempre lembrados pelos programas da televisão brasileira que trabalham o universo rural, em geral, aos domingos pela manhã. Com o Sistema Nacional de Cultura apresentavam-se, assim, as oportunidades para que a cultura acontecesse nos 12 meses do ano, de forma democrática, por meio da constituição específica de fundos públicos, conselhos e conferências, bem como da elaboração dos planos municipais, estaduais e do plano nacional de cultura.
Mais do que as marcas registradas de algumas cidades e regiões, cartões postais que as destacam no conjunto da nação, o Sistema proporciona a oportunidade de investirmos também na diversidade de suas expressões culturais (artigo 216-A, p. 1º). Ao mesmo tempo, após dura batalha com os gestores do Ministério da Cultura à época, inserimos e aprovamos no relatório da proposta para o Sistema Nacional de Cultura uma emenda que aponta para a expansão anual dos orçamentos públicos para o segmento (Inciso XII do parágrafo 1o do novo artigo 216-A).

Mais do que a certeza de que os recursos previstos nas leis orçamentárias anuais para a cultura , as LOAS, serão efetivamente ampliados ano após ano, a referida emenda visou abrir o debate dos orçamentos da cultura aos artistas, produtores culturais, pesquisadores da cultura e população interessada no acesso aos bens culturais de uma maneira geral.
Na verdade, além do estabelecido no artigo 215 da Constituição Federal de 1988, onde se dispõe que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”(BRASIL,1988), o acesso e a fruição dos bens culturais, como componente da promoção do lazer, estão integrados ao conceito de saúde, estabelecido no artigo 3º, da Lei 8080, de 19 de setembro de 1990, que dispôs “sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”.(BRASIL,1990).

A aprovação do Sistema Nacional de Cultura em 2012 nos legou ainda a referência político-administrativa para a sustentação das ações referentes ao Plano Nacional de Cultura, antes apresentado e aprovado ao Congresso Nacional. O Plano é um
conjunto de princípios, objetivos, diretrizes, estratégias, ações e metas que orientam o poder público na formulação de políticas culturais. Previsto no artigo 215 da Constituição Federal, o Plano foi criado pela Lei n° 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Seu objetivo é orientar o desenvolvimento de programas, projetos e ações culturais que garantam a valorização, o reconhecimento, a promoção e a preservação da diversidade cultural existente no Brasil. (BRASIL,2020).
Sancionado em 02 dezembro de 2010 e válido por dez anos, o atual Plano Nacional de Cultura se encerrou em 02 de dezembro de 2020, não havendo até a conclusão desse artigo nenhum registro de iniciativa para a retomada da discussão e da elaboração de novas proposições acerca da matéria, o que é extremamente preocupante para a produção cultural, a expansão dos equipamentos culturais e o acesso aos bens culturais no país. Essa condição no coloca na emblemática situação de termos um Sistema para conduzir a execução de um plano sem que tenhamos mais um plano para ser executado.

Entre os pesquisadores acadêmicos nacionais e internacionais e as instituições do estado, como IBGE e IPEA, a desigualdade brasileira chama a atenção não apenas por seu aspecto econômico, relativo à renda e riqueza, mas, sobretudo, por sua amplitude. Ao lado dos sem-teto, dos sem-emprego e dos sem-terra, há um multidão de sem-cinema, sem-bibliotecas, sem-acesso à leitura e sem acesso às artes. Há, também, ainda, aqueles que, vivendo as manifestações culturais desde sua infância, em seus territórios e comunidades (indígenas e quilombolas), se encontram frequentemente ameaçados, massacrados pela expansão do latifúndio, do agronegócio, sendo a cada dia maiores os riscos do desaparecimento de suas expressões culturais frente ao processo de expansão do capital em diversas partes do território nacional.

O Brasil vive, por outro lado, um acelerado processo de submissão da execução dos fundos públicos aos interesses do capital rentista, ancorado nas operações da dívida pública, pela qual “uma classe de credores do Estado adquire o dinheiro de retirar cada vez mais parcelas futuras dos fundos públicos constituídos pela tributação” (MARX,1985, p.548).
Além disso, o tamanho a que chegou a dívida como proporção da riqueza produzida no entre nós e o déficit público que a exigência do pagamento de seus encargos provoca em relação à arrecadação federal de impostos e contribuições no país são, na verdade, “as bases que têm sustentado e garantido a lucratividade e reprodução, em escala ampliada, do sistema capitalista, principalmente quando esse não consegue mais materializar, na órbita produtiva, seu objetivo de geração de lucros” (OLIVEIRA,2009, p.244).
Esses interesses vêm sendo impostos pelo menos desde 1988 já na Constituição Federal (artigo 166, p.3º, inciso II, alínea “b”), estão presentes na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000, artigo 9º), chegando a 2016 com a Emenda Constitucional 95/2016. Como se não bastassem essas “garantias legais”, estamos diante das ameaças trazidas por novas iniciativas de reformas constitucionais, como a que sugere a Proposta de Emenda Constitucional 188, de 5/11/2019 (a que torna a dívida pública a âncora fiscal do Estado), o que deixará às despesas primárias, entre essas as que se referem à execução de políticas culturais, parcela irrisória dos orçamentos públicos, em especial no orçamento geral da União, aprofundando, caso aprovada, o que veremos a seguir.
Em 2019 a União destinou para o pagamento de juros, encargos e amortizações da dívida pública um total de R$ 560,78 bilhões de reais, sendo R$ 285,09 bilhões de reais, referentes a juros e encargos da dívida pública e R$ 275,69 bilhões de reais, para amortizações referentes à dívida, o que não foi suficiente, contudo, para a quitação dos passivos referentes ao total da dívida pública vencida no ano passado. Por isso foi necessária ainda a realização de operações de crédito (novo endividamento através da emissão de títulos públicos) para garantir o refinanciamento de R$ 476, 77 bilhões de reais da dívida vencida e não paga pelo tesouro. (TESOURO,2019). Enquanto isso, de acordo com os relatórios resumidos da execução orçamentária, disponibilizados na página do Tesouro Nacional para o ano fiscal de 2019, as despesas na função “Cultura”, contidas no orçamento da União, tiveram autorizadas dotações orçamentárias de R$ 1,978 bilhão de reais, tendo sido efetivamente liquidadas as despesas equivalentes a R$ 771,49 milhões de reais. Isso representa, apenas, 0,27% do que se pagou de juros e encargos da dívida pública, ou irrisórios 0,13% do que foi gasto com juros, encargos e amortizações.
Vale aqui registrar que o orçamento da União, proposto anualmente até setembro pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, é analisado e votado por uma Comissão Mista, de Deputados e Senadores, e seus pareceres são, enfim, votados em sessão conjunta das duas casas legislativas, Câmara e Senado. Isso demonstra que a democracia formal eleitoral, rotina recuperada nas eleições para governadores de estados em 1982, a partir de 1985 para prefeituras de capitais e desde 1989 para a presidência da república, não tem gerado a democratização efetiva dos fundos públicos para a maioria da população (SANTIAGO,2020), especialmente para as ações em cultura, ainda que, na última década, o país tenha sido desafiado a implementar metas (53 no total) e estratégias do Plano Nacional de Cultura. Nos demais entes da federação estima-se que, a partir de 2012, com o SNC, tenham sido implantados sistemas locais de financiamento da cultura.

Segundo o Portal do atual Ministério do Turismo, no espaço referente ao Sistema Nacional de Cultura, tais sistemas devem ter como características,
1. Orçamento Público: recursos de planejamento e execução das políticas públicas (PPA, LDO, LOA)
2. Incentivo Fiscal: renúncia fiscal, percentual estabelecido por lei (ISS/IPTU – ICMS/IPVA)
3. FICART: investimentos operados por instituições financeiras, capitalizados pela venda de cotas no mercado de valores mobiliários (CVM)
4. Fundos De Cultura: sua criação é por lei e necessita de uma regulamentação. Deve ter CNPJ próprio (matriz), vinculado ao órgão gestor e ter unidade orçamentária (Grifo do portal). (BRASIL,2020).

Entretanto, dada a lógica da austeridade fiscal em curso no país desde a Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000, fortalecida com a promulgação da Emenda Constitucional 95, de 2016, é pouco provável que, deixados à inércia da execução dos seus orçamentos, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios se afastem desses princípios e assumam a tarefa de destinar receitas expressivas e crescentes para o fortalecimento efetivo das relações entre a cultura e a democracia em seus territórios. A superação, portanto, dos limites financeiros que marcam as prioridades da execução orçamentária dos entes federados na cultura, submetida à austeridade fiscal, essa ideia perigosa (BLITH,2017), só acontecerá quando houver unidade de análise e ação entre artistas, artesãos e artesãs, produtores e produtoras culturais, pesquisadores da cultura e movimentos sociais atuantes no segmento.

Além disso, devem ser integrados a essa estratégia os demais trabalhadores que sofrem as mesmas restrições, impostas ao financiamento da educação, do sistema único de saúde, da seguridade social, enfim, ao conjunto das políticas públicas. Sem isso, não teremos o adequado combate à desigualdade em nosso país, a democratização da riqueza e da renda e o acesso às políticas sociais, tendo a cultura como bem público a ser universalizado, da produção à fruição, e como expressão da resistência ao racismo estrutural, ao machismo, ao patriarcalismo e a todas as formas de discriminação, preconceito e opressão vigentes em nossa sociedade.
Cultura e democracia, por isso, só avançarão como direitos e práticas de liberdade, simultaneamente, se articuladas dessa forma, em especial na perspectiva da superação do modo de produção capitalista e seu projeto neoliberal excludente.

*Paulo Rubem Santiago é professor da UFPE, Mestre e Doutorando em Educação (UFPE). Como Deputado Federal por Pernambuco (2003/2014) foi Relator do Sistema Nacional de Cultura, coautor do Projeto de Lei para o Plano Nacional de Cultura, e Relator da Lei 12.761/2012, da criação do Vale-Cultura.

NR - Com este texto, O Poder inicia a publicação diária, de 2a a 6a feira, dos 46 capítulos que formam o livro 'Cultura, Sobre a Diversidade de um Conceito, organizado por Flávio Brayner e publicado pela CEPE, edição esgotada.
Amanhã:
Relações e Impactos do Mundo Digital na Cultura, por
Décio Fonseca.

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