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É Findi - Confidências no Uber, por Maria Inês Machado*

07/06/2025 -

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Imaginem os acontecimentos provocados pela pandemia. Cruéis, imprevisíveis. Sabem o que significa o desemprego? Não me refiro à compra das roupas de fim de ano, dos presentes de Natal, dos quitutes da ceia, do carro novo ou da troca de lembranças entre familiares e amigos — tradição dessa época. Meu foco é outro. Mostrar-lhes a angústia, o medo, a desesperança em encontrar um novo trabalho.

Tiago, cinquenta anos, bom funcionário, mantinha um relacionamento cordial com a equipe da empresa. Todos o conheciam. Gentil, competente, sorriso largo, sabia cultivar amizades.

Carta de demissão.

A tarde foi longa. Dispensou o transporte coletivo. Queria organizar os pensamentos. Olhos tristes, passos lentos. O sol do fim da tarde iluminava os cabelos prateados. O suor parecia não o incomodar — eram as lágrimas do corpo marcando a camisa.

O bar do amigo Clóvis foi sua primeira parada.

— Amigo! Cerveja gelada é antídoto para a tristeza?
— Depende do motivo.

Conversa extensa. Desabafo. Possibilidade de trabalhar como motorista de Uber surgiu ali mesmo. Clóvis explicou o processo, os aplicativos, as estratégias. Na mente, Tiago via a dança desordenada dos papéis e dos compromissos financeiros. Aceitou.

Saiu mais animado. Em casa, o apoio incondicional da companheira Maria Helena.
Banho matinal. A camisa amarela contrastava com a pele morena. Novo olhar. O otimismo tomava forma. Pensava... As portas da esperança se abriram! Era preciso lubrificar as fechaduras com o óleo do otimismo!

Novo tempo. Nova vida. Meu primeiro dia.
Motorista de Uber. Fiat cinza, ano 2012.

Primeiro chamado. Uma jovem acomoda-se no banco traseiro. Reclamou de imediato.

— Mais velocidade, senhor! Tenho pressa. Ih! Deviam ter me mandado um carro mais novo, mais veloz.
— O trânsito está intenso. Engarrafamento — respondeu com calma.
— Sim... Desculpe.

Os pensamentos de Marília fervilhavam. Conteve o grito da angústia, mas o alvoroço do trânsito suscitava reflexões.
— Senhor, há momentos em que a vida se assemelha ao trânsito. Congela tudo. Sonhos, alegrias, esperanças. Buscas sem respostas. Parece não ter sentido...

Abriu a bolsa, retirou um pequeno frasco, ingeriu o líquido.
— Assim consigo sobreviver. Tiago percebe um drama oculto.

Morena, jovem, cabelos encaracolados. Olhos negros, semelhantes a jabuticabas. Coração oprimido. Desesperança. Fuga de si mesma. A ânsia de desabafar era intensa. Pensava. Preciso abrir um pouco o meu coração. Este senhor parece ser confiável.
Falou das conquistas e das dores. Formou-se. Graduação e Pós em História. Pai alcoolista. A voz suaviza ao lembrar da mãe. Relatou abandono na infância, abusos — sexual e psicológico — e às trocas constantes de parceiros. Teve um relacionamento estável, que gerou uma pensão. Iniciou na maconha ainda jovem. Depois veio o álcool. Experimentou outras substâncias, mas não gostou.

Pelo retrovisor, Tiago observava a inquietação da passageira. As lágrimas escorriam abundantes. Pareciam pingos de chuva torrencial no deserto da alma.

— Escolhi viver. Esquecer tristezas, sofrimentos. Para isso, o álcool e a maconha são a solução.
— Podemos conversar? — perguntou Tiago.
— Sim. Você transmite confiança. Parece que sabe ler a alma humana.
— Talvez não seja leitura. A maturidade conduz a nova forma de ver a vida.
— Não quer substituir a garrafa por outro líquido? Uma água, talvez? Um refrigerante? Você acredita que o álcool e a maconha preenchem a vida? Já percebeu os danos que causam? Não sou profissional da área, não conheço todas as consequências, mas você acha que está vivendo de verdade?
— Você já pensou em alternativas?
— Não existem. Já tentei. Não consigo. Fico deprimida. Tudo piora.

Tiago contou sobre um parente dependente químico — álcool e outras substâncias — que estava em tratamento psiquiátrico e psicológico. Falou dos avanços. Do quanto a medicação, o apoio, a escuta dos profissionais fizeram a diferença.

Marília demonstrou interesse. Agradeceu a disponibilidade do motorista. A escuta sem julgamentos.

A escuta livre de preconceitos motivou a jovem. Relatou situações dolorosas.

Sentindo-se acolhida, perguntou com hesitação.
— Podemos nos encontrar? Meu apartamento é acolhedor.
— Pode ser... Mas compromissos diurnos e noturnos, me deixam com pouca disponibilidade.

Marília, desapontada, silenciou. Guardou na bolsa o endereço da clínica. O pensamento voou e, pela primeira vez em muito tempo acalentou o coração. Pelo menos fui acolhida neste momento. Sinto-me mais aliviada! Quem sabe ainda nos encontraremos. A vida é semelhante a um livro, feita de capítulos. Um novo capítulo pode surgir. Tempo ao tempo...

Final do percurso. O motorista despediu-se com palavras suaves e encorajadoras. Ela agradeceu com um olhar significativo.

Ele percebe. mas a realidade o convida a um salto recheado de bom senso e responsabilidade. Tiago continuou. Carro em movimento. Nova chamada.

Outros passageiros vieram, sem registros importantes.

Ao final do dia retornou ao lar. O abraço de Maria Helena aliviou o estresse. Na varanda, a palmeira como testemunha. Uma mesinha com duas taças de cristal. O vinho preferido.

A porta do trabalho se fechou. Novo momento! Vivenciar as delícias do diálogo, dos carinhos perfumados com Maria Helena.


*Maria Inês Machado é psicóloga, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental e em Intervenção Psicossocial à família. Possui formação em contação de histórias pela FAFIRE e pelo Espaço Zumbaiar. Gosta de escrever contos que retratam os recortes da vida. Autora do livro infantojuvenil 'A Cidade das Flores'.

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