
Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito – 6 – Cultura e Aprendizagem Por Jorge Tarcísio da Rocha Falcão *
09/06/2025 -
1. Do que estamos falando?
Discorrer sobre o binômio conceitual que fornece o título para este capítulo, no contexto desse livro, é uma tarefa ao mesmo tempo inescapável e prazerosa. Os demais capítulos dialogam igualmente com “cultura”, de forma que, espera-se, o leitor que percorrer este livro terá, ao fim e ao cabo, elementos para avançar na elaboração de sua própria construção acerca da cultura. De nossa parte, não nos furtaremos a dar nossa contribuição, aqui, não somente em termos da dialogia ensejada pelo título, como também na circunscrição deste que é um dos conceitos centrais da psicologia, em várias de suas vertentes: o conceito de aprendizagem.
A psicologia é uma ciência (apesar de certo descrédito de muitos quanto à justeza dessa afirmação) que convive, em sua vertente acadêmica ou formal, com a chamada “psicologia do senso comum”, denominada por um dos psicólogos mais proeminentes do século 20, Jerome Bruner, de “folkpsychology” (em termos aproximados, “psicologia popular”, cf. Bruner,1997).
Para Bruner, essa psicologia do senso comum, ou popular, ou da ”mesa de bar”, ou das tias e avós, tem dialogado produtivamente com a Psicologia, desde seu nascedouro como ciência no laboratório alemão de Wilhelm Wundt, em Leipzig, no século XIX. A concretização desse diálogo pode ser rastreada no desenvolvimento de muitos conceitos da psicologia, que antes e depois de serem “científicos”, foram, são e serão conceitos do acervo social e cultural mais amplo, que vai desde o recôndito dos lares e as “mesas de bar” até a literatura, o teatro, o cinema, a política e a lista segue. Poderíamos mencionar uma pluralidade de conceitos para ilustrar esse dado da genealogia conceitual em psicologia, mas vamos nos ater a um único conceito, et pour cause: o conceito de aprendizagem.
Com isso, convidamos de imediato o leitor a uma breve digressão de natureza metateórica, para em seguida trazer subsídios acerca do papel constituinte e inescapável da cultura quando se fala de aprendizagem, e mais especificamente, da aprendizagem humana.
Além dessa permeabilidade de muitos dos conceitos científicos em relação ao conhecimento do senso comum, é preciso preliminarmente fazer face a alguns pontos de referência cruciais, pontos estes de natureza extra-científica, ou mais especificamente, de natureza filosófica: quando falamos sobre “gente”, sobre o fenômeno humano, estamos basicamente falando sobre um domínio de problematização assimilável à natureza, ou à cultura?
Famoso dilema
Esse famoso dilema, que pode ser pesquisado em motores de busca informatizados através do filtro “nature versus nurture”, perdura como questão de fundo para vários sistemas teóricos em várias ciências, aí incluídas a psicologia, as ciências da educação, a sociologia, e tantas outras. Abordar a questão da aprendizagem em diálogo com a cultura implica em necessariamente assumir posição nesse debate em aberto, seja de forma explícita ou implícita.
O leitor mais atento deve ter percebido a menção que foi feita, dois parágrafos acima, à aprendizagem humana. Ora, para muitas “vozes1” do debate pluriparadigmático 2 voltado para a questão da aprendizagem, essa especificação seria desnecessária, na medida em que os fundamentos da aprendizagem seriam semelhantes para a espécie humana e para as demais espécies – notadamente mamíferos (mas não apenas). Não foi por outra razão que muitos pesquisadores e propositores de teorias acerca de aprendizagem usaram roedores, aves (galinhas e pombos), cães, cavalos e outras espécies para pesquisar processos de aprendizagem extensíveis aos humanos 3.
Recordo-me de debate transdisciplinar de que participei há cerca de dois anos atrás, voltado justamente para a questão da aprendizagem, em que um colega pesquisador especializado em processos de aprendizagens nas baleias e golfinhos me questionou acerca da minha insistência em falar especificamente em processos de aprendizagem humanos. No auge do calor de nossos debates, ele me inquiriu nos seguintes termos: “Que aspectos básicos dos processos de aprendizagem nos humanos não estariam contemplados em baleias, e vice-versa?” Eis aqui uma excelente questão!
Partimos aqui do pressuposto que o indivíduo humano é, sobretudo, um ser de cultura e história, sem prejuízo da materialidade biológica, da corporeidade inerente a cada um de nós. Esse não é um texto que tenha pretensões com o estabelecimento de uma verdade, em busca de adesão pela fé.
Trata-se antes de um exercício reflexivo que parte e conduz a formulações necessariamente em (re)construção4. Trata-se, sobretudo, de uma discussão em aberto até hoje. No âmbito restrito do presente capítulo, vamos nos restringir a pouco mais que apresentar aqui algumas “vozes” teórico-epistemológicas que aludem ao pressuposto acima: dois “gigantes” da psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento se notabilizaram pelo debate/embate de ideias envolvendo a perspectiva de aprendizagem humana baseada em processos de adaptação biológica (como foi o caso do “gigante” Jean Piaget5), e a perspectiva de aprendizagem como processo de aquisição de amplificadores culturais e construção de significados inserida em contexto sócio-histórico-cultural (como foi o caso do outro “gigante”, Lev Vigotski6).
O leitor é aqui vivamente encorajado a percorrer o artigo escrito por Jerome Bruner, por ocasião de evento comemorativo ao centenário de nascimento dos dois gigantes. supracitados (ambos nascidos em 1896), com o provocativo título de “Celebrando a divergência: Piaget e Vygotsky” (Celebratingdivergence: Piaget and Vygotsky) – cfBruner, 1997b). Nesse artigo, aliás, Jerome Bruner nos adverte, citando o físico Niels Böhr, para o fato de que “os opostos a grandes verdades podem igualmente ser verdadeiros; apenas os opostos a pequenas verdades é que são [necessariamente] falsos” (Bruner, 1997b, pg. 64, tradução nossa).
É com esse espírito que voltamos a ressaltar que não propomos aqui a verdade definitiva sobre os processos de aprendizagem, mas haveremos, inevitavelmente, de assumir postura teórico-filosófica nesse debate mais amplo, sem o qual nada de muito interesse, nesse debate acerca da interação entre aprendizagem e cultura, poderia ser acrescentado. Então retomemos a provocação do colega estudioso da aprendizagem das baleias, no que diz respeito ao desafio de contribuir sobre a aprendizagem humana.
2. De que aprendizagem nós estamos falando?
Uma cena frequentemente vivenciada nas famílias que têm crianças pequenas, na faixa etária de mais ou menos doze meses de vida, é aquela em que alguém alegremente observa, em meio a gritos de alegria: “Olha só, Fulaninho(a) aprendeu a andar!” Trata-se ainda de um andar incipiente, aos trambolhões, mas os poucos passinhos desajeitados não passam despercebidos de pais, tios e tias, avós, enfim... Não muito tempo depois, os comentários familiares entusiásticos voltarão a se repetir, dando conta de que nosso(a) Fulaninho(a), agora, está aprendendo a falar...
Dados empíricos acumulados pela psicologia, medicina pediátrica, neurofisiologia, ciências da educação e outros domínios costumam ser unânimes em termos de dois aspectos comuns a muitos estudos: em primeiro lugar, crianças “aprendem” a andar e a falar praticamente num mesmo momento de seu percurso de vida, independentemente de serem europeias, africanas, orientais ou esquimós; em segundo lugar, não é usual que, nesses processos de “aprendizagem”, essas crianças disponham de “professores” ou instrutores mais ou menos sistemáticos – contam no máximo com a “torcida”, com os incentivos, aqui e ali, para seus progressos de marcha ou de fala. Esse tipo de constatação classicamente tem motivado a distinção, no âmbito do campo conceitual da aprendizagem, de aspectos relacionados ao desenvolvimento.
Em outras palavras, aspectos relacionados ao que, grosso modo, poderia ser chamado de maturação, dependente, por sua vez, da integridade de certo aparato neuromotor individual. Se pensamos então, de forma genérica, em processos de ampliação de competências e habilidades humanas, alguns desses processos tenderão para o polo da maturação (como nos casos da aquisição de fala e marcha mencionados acima), enquanto outros processos tenderão para o polo da instrução assistida, que alguns chamarão de aprendizagem propriamente dita.
O polo maturacional se associa à palavra-chave prontidão: ter atingido determinado grau de maturação que torna o indivíduo “pronto” para aprender; o polo instrucional, por sua vez, se associa à palavra-chave aquisição: ao aprendiz são oferecidos informações, procedimentos, algoritmos dos quais ele precisa se apropriar, inicialmente através de acumulação mnemônica, posteriormente em termos de ressignificação.
Aprendizagem e desenvolvimento, com seus polos instrucionais e maturacionais,são conceitos que têm uma clara interseção na trajetória biográfica de cada indivíduo, mas têm igualmente suas especificidades 7. Cabe aqui, então, arriscar a proposição de definição conceitual para aprendizagem, apesar das dificuldades que isso acarreta. Propomos que a aprendizagem humana diz respeito a um processo de aquisição ou ampliação de competências e conhecimentos. Trata-se de conceito complexo, que de fato envolve um campo conceitual que, dentre outros aspectos, contemplará a cultura, a história, um dinamismo de trocas sociais que irão desde as trocas no âmbito da díade mãe-bebê, até os contextos de aquisição de habilidades sociais complexas (como é o caso do contexto de trabalho, passando inescapavelmente pela escola 8).
A proposição conceitual proposta acima para a aprendizagem tem cinco pontos derivados a explicitar:
1. A aprendizagem humana se diferencia da aprendizagem dos demais animais na medida em que o indivíduo humano, ele próprio, se desgarra de todas as outras espécies, como ser provido de consciência de si e do outro (Buber, 1974; Damasio, 2000; Rommetveit, 2003), como ser dotado de mente que o conecta semioticamente à realidade circunjacente e aos demais humanos, graças ao funcionamento simbólico 10 fundado na linguagem (Vygotsky, 2014; Bakhtine/Volochinov, 1997; Marx, 1975). Há entre humanos e as demais espécies um abismo intransponível, não obstante a corporeidade inelutável que conecta mente, cérebro e corporeidade (Damásio, 1996).
2. A aprendizagem humana, resguardada sua especificidade e irredutibilidade, tem pontos de contato com a aprendizagem das demais espécies, como proposto já no início do século XX por Edward Thorndike, ao propor a Lei do Efeito para as aquisições de aprendizagem (lei que serviria de base para as formulações comportamentalistas que se seguiriam): O princípio da lei do efeito desenvolvida por Edward Thorndike sugere que “(...) as respostas seguidas de perto pela satisfação ficarão firmemente ligadas à situação e, portanto, mais propensas a voltar a ocorrer quando a situação se repete. Por outro lado, se a situação é seguida por desconforto, as ligações com a situação serão mais fracas, e o comportamento de resposta é menos provável de ocorrer quando a situação é repetida”(https://psicoativo.com/2016/08/lei-do-efeito-de-thorndike-importancia-psicologia.html; Thorndike, 1932).
Trocando em miúdos, nós todos, humanos, elefantes de circo, baleias, cães, ratos de laboratório (ou não), temos nossa aprendizagem estabelecida em função de recompensas prazerosas ou puniçõesdesprazerosas que recebemos nos diversos contextos de funcionamento social (contexto escolar inclusive). Tomando de empréstimo o título do maravilhoso romance de Steinbeck11, isso é válido para “ratos e homens”, mas não esgota o campo de problematização relacionado à aprendizagem, e isso por uma razão, aqui, apenas enunciada: a unidade de análise da psicologia não se limita ao comportamento, que deve necessariamente ser abarcado no bojo das funções mentais superiores 12.
3. O processo de aprendizagem de um indivíduo humano apresenta aspectos comuns em relação a todos os outros demais indivíduos, na medida em que compartilhamos a mesma filogênese, a mesma corporeidade, os mesmos determinantes relacionados à espécie (no sentido biológico-taxonômico) em que nos inserimos.
4. O processo de aprendizagem de um indivíduo humano apresenta aspectos comuns em relação a determinado sub-grupo de indivíduos. Isso guarda relação com aspectos de etnia, língua, cultura e história (com suas diversas sub-culturas, como a escolar, a religiosa, a política, os contextos de trabalho, e assim por diante 13), com a patologia (tendo em vista o compartilhamento decorrente da imersão em vivências de doenças e adoecimento), com restrições funcionais associadas a patologias ou endógenas, como restrições sensoriais (cegueira, surdez...), restrições cognitivo-afetivas (como nos quadros de síndromes de Down ou Autismo), dentre outras.
5. Finalmente, o processo de aprendizagem de um indivíduo humano é específico e singular para este indivíduo. Este ponto alude à subjetividade, à afetividade, ao acervo de vivências 14 de cada indivíduo.
Cinco pontos
Os cinco pontos a que acima aludimos poderiam sugerir opções de ênfases concorrentes entre si, mas não o são; de fato, são concomitantes. Aderimos aqui à perspectiva segundo a qual o fenômeno humano vai do universal ao particularíssimo, com pontos intermediários de especificação em relação ao universal, mas nenhum desses momentos descritivos pode pretender o monopólio da narrativa teórica acerca do ser gente.
Como, nessa ordem de ideias, entender e aceitar que o indivíduo humano seja de fato inexoravelmente atravessado pelo social, cultural, histórico e político, sem com isso admitirmos que estamos desconsiderando aspectos da universalidade biológica, aspectos ligados à corporeidade, à inexorabilidade do orgânico? Ou mesmo desconsideramos aspectos da “solidão existencial” de cada um em sua “torre de marfim”. De fato cabe a cada um se reinventar ao ressignificar o acervo que recebe do contexto social, histórico e cultural desde o nascimento. A aprendizagem tem papel crucial nesse processo, cuja discussão encerra essas breves considerações.
3. Aprendizagem e cultura
Aprendizagem é necessariamente um conceito que se flexiona transitivamente: aprende-se sempre alguma coisa, para determinado fim, em esforço que se faz no bojo de campo conceitual específico 15. Aprendem-se conceitos da matemática, das ciências, da linguagem, com seus desafios cognitivos específicos, no bojo de campos conceituais que cada um construirá como acervo seu (eventualmente a partir de campos conceituais formais de referência), e para fins diversos como obter a esperada aprovação escolar, ou funcionar em contexto de realidade extra-escolar.
Cabe, em relação a esse último ponto, comentário acerca do movimento de pesquisa e teorização conduzido pelo programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva da UFPE, Recife-PE, na década de 80 do século passado, movimento resumido por livro e artigos (em diversos idiomas) focados no tópico “na vida dez, na escola zero” (cfCarraher, Carraher e Schliemann, 1982; 1988).
O livro resume todo um acervo de pesquisas que poderiam ser resumidos nos termos seguintes: tarefas que aparentemente são isomórficas, em termos conceituais abstratos, como lidar com situações de composição aditiva, percentagens e sistemas de medidas, são resolvidas sem dificuldade por crianças em contexto de comércio de rua, as mesmas crianças que fracassam drasticamente quando as “mesmas” situações são abordadas em termos de tarefas escolares. Dados semelhantes foram coletados com cozinheiras às voltas com a gestão de repastos para grupos variáveis de comensais, marceneiros, pedreiros, trabalhadores nas culturas da cana de açúcar, dentre outros 16.
A proposta de uma “aprendizagem descontextualizada”, que eventualmente vem no bojo de algumas críticas à oferta pedagógica escolar, carece de sentido na medida em que o contexto escolar, lócus de contratos didáticos(cf. Schubauer-Leoni,1986) variados, é, ele próprio, um contexto específico. Nesse sentido, Yves Chevallard mostrou a dinâmica que preside todo o esforço sócio-cultural de adaptação dos conteúdos de saber em sua fonte acadêmico-formal (o “saber sábio”, ou “savoir-savant”) rumo ao saber “ensinável”, o saber dos livros didáticos e dos planos pedagógicos de ensino, o “saber destinado ao ensino” ou “savoirenseigné” (Cf.Chevallard, 1985).
Rigorosamente falando, situações “descontextualizadas” de aprendizagem são vistas aqui como uma espécie de paradoxo lógico, na medida em que, a não ser que pensemos em aprendizes-máquinas, conteúdos de aprendizagem vêm de algum lugar contextual, e se destinam a algum tipo de finalidade – mesmo que seja habitual ouvir de muitos aprendizes que o que frequentemente se lhes pede que aprendam “não serve para nada”…
Para alguma coisa, em algum contexto, há de servir: Jean Leave, EtienneWenger e pedsquisadores associados produziram várias observações e pesquisas evidenciando que aquilo que aprendemos se insere necessariamente em, comunidades de praticantes (“communitiesofpractice” – cf Lave &Rogoff, 1984; Lave, 1988; 1991; 1997; 2016; Lave, Smith &Buttler, 1988; ), que variam desde grupos de vigilantes do peso, contexto de comércio em feiras livres, contexto acadêmico de produção de conhecimento, e assim por diante. O conhecimento se insere em contextos específicos, e os processos de aprendizagem a eles relacionados, idem.
Para além da oferta de contextos de significação para a aprendizagem, a cultura fornece ferramentas associadas aos processos de aprendizagem – sejam ferramentas do tipo “próteses conceituais”, seja do tipo “metáforas conceituais”. Em sua pesquisa de doutoramento, Izabel Hazin mostrou um caminho de superação da dificuldade de crianças epilépticas em comporem operações aditivas (contas de somar) para as quais seria necessário por unidades sob unidades, dezenas sob dezenas, e centenas sob centenas, para a devida operação algorítmica; estas crianças, devido a graves comprometimentos de natureza neuropsicológica, tinham imensa dificuldade em fazer o ordenamento acima aludido, porém Hazin mostrou que a simples indicação das unidades, dezenas e centenas com cores diferentes era suficiente para prover os alunos com prótese cultural eficiente e suficiente para a superação da dificuldade decorrente da epilepsia! (cf. Hazin e cols., 2006).
Na linha das metáforas conceituais, o recurso ao ábaco nos sistemas escolares orientais provê os aprendizes de ferramenta representacional que apoia, concretamente, a construção do sistema de valor de lugar decimal que preside o sistema de contagem em base dez.
4. À guisa de conclusão
Na linha do que se discutiu até o presente ponto, aprender é um processo crucial para a construção do lugar social de cada indivíduo. Aprendem-se conteúdos escolares, o que constitui a face talvez mais corrente do que se costuma ser recoberto por “aprendizagem” (ou, de forma ainda mais corrente, “ensino-aprendizagem”), mas aprendem-se também habilidades e competências extra-escolares, dentre as quais aquelas relacionadas ao contexto de trabalho. Nesse sentido, especificamente, cabe reservar ênfase ao fenômeno complexo associado à capacidade de aprender a aprender.
Para muitos pesquisadores na área da psicologia do trabalho, a possibilidade de conseguir e/ou manter um posto de trabalho no século XXI, em termos mundiais, está diretamente relacionada à competência de cada indivíduo no sentido de aprender e reaprender continuadamente – sem prejuízo dos aspectos políticos, sociais e econômicos de consideração igualmente presente nesta discussão. Num contexto histórico e cultural em que sistemas informatizados vêm “aprendendo”, e “aprendendo a aprender”, os sistemas-aprendizes humanos vêm sendo desafiados a demonstrar e preservar especificidade e poder.
Aludimos, no início dessa discussão, à especificidade do processo de aprendizagem humana, face a outros animais não-humanos; cabe aqui, mesmo que de forma apenas alusiva, estender a discussão aos processos de aprendizagem assistidos por inteligência artificial em máquinas. Tais sistemas já existem e funcionam, no controle de tráfego aéreo, no atendimento médico e psicológico remoto, no monitoramento meteorológico, e segue.
Para além da discussão acerca da postura de aceitação ou recusa desses movimentos da contemporaneidade, cabe abordar as consequências desse debate para os processos de aprendizagem humanos. Os jangadeiros que conduzem suas jangadas de vela triangular no litoral do nordeste do Brasil lidam com situações de composição vetorial, para realizarem seu trabalho, sem que disponham de nenhuma ferramenta conceitual formal relacionada a vetores. Trata-as, aqui, do que Gérard Vergnaud denominou “competência-em-ação” (Vergnaud, 1990). Isso não é absolutamente possível no domínio da inteligência de máquinas, que não podem prescindir de algoritmos, regras e conhecimentos explícitos e pré-programados. Nesse sentido, o que sabem os que não sabem 17?
Sabem para além do conhecimento meramente informacional, factual, explícito, restrito a indivíduos – sabem de forma a complementar o que sabem com o que é sabido, comunitariamente, por outros. Sabem no contexto de uma cultura historicamente dinâmica, em que os procedimentos de produção de significado são necessariamente cogenéticos. Aprendizagem humana é, portanto, constitutivamente cultural e histórica.
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Jorge Tarcísio da Rocha Falcão é do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) falcao.jorge@gmail.com
