
Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito – 7 - Cultura popular e educação popular na América Latina: um olhar muitos anos depois por Carlos Rodrigues Brandão
10/06/2025 -
Por que recordar? Algumas palavras introdutórias
No começo dos anos sessenta uma nova proposta a respeito da cultura popular surge no Brasil e se difunde por uma vasta parte da América Latina. Ela pretende ser, ao seu tempo, um corpo de idéias e práticas renovadoras e questionadoras em vários planos. Nos seus primeiros documentos, ela se apresenta como uma alternativa pedagógica de trabalho político que parte da cultura e se realiza através da cultura, especialmente da cultura popular.
Como uma decorrência desta nova proposta, bastante associada a projetos do que veio a ser mais tarde a educação popular, foram criados os primeiros movimentos de cultura popular, em várias regiões do Brasil. A maioria deles não subsistiu ao golpe militar de 1964, mas a relevância de suas idéias de origem permanece visível em várias experiências atuais de educação popular na América Latina.
Usando a mesma expressão corrente na Europa desde pelo menos o século XIX, a proposta dos Movimentos de Cultura Popular (MCPs) dos cinco primeiros anos da década de 60 subverte de uma maneira muito politicamente motivada o seu sentido. Cultura popular deixa de ser simplesmente um conceito científico herdado pelos cientistas sociais dos folcloristas e, herdado por estes dos anti dualistas dos séculos XVII e XVIII, para tornar-se a palavra-chave de um projeto político de transformação social a partir das próprias culturas dos trabalhadores e outros atores sociais e populares.
Os projetos dos MCPs pretendiam ir mais além de uma simples democratização da cultura ou de uma ilustração das camadas populares através de programas especiais de educação de adultos ou de desenvolvimento da comunidade. Tendo como uma distante inspiração experiências como a de Peuple et culture na França, assim como alguns trabalhos culturais desenvolvidos nos países socialistas, o propósito de um “trabalho de cultura popular” foi uma das expressões mais radicais de associação entre profissionais e intelectuais saídos dos universitários e pessoas das classes trabalhadoras. Aproveito, nesta breve resenha de “memória dos anos 60”, um máximo de trechos de documentos da época, para que a própria linguagem sugira o teor das idéias de uma cultura popular como um trabalho de arte e educação cujas teorias e cujas práticas, 3o anos depois, merecem ser revisitadas1.
A cultura e a crítica social das culturas
No começo dos anos 60, no Brasil e, mais tarde, em vários outros países da América Latina, os Movimentos de cultura popular pensaram uma Filosofia da História ali onde outras organizações devotadas à educação e à mudança social pensaram uma Sociologia do Desenvolvimento. A leitura comparada de projetos, informativos e artigos do período, revelaria uma compreensão bastante desigual sobre os fundamentos do trabalho do educador e do agente de mudanças sociais.
O que caracteriza o homem é ser ele o produtor da cultura que o reproduz como homem. Ela abarca tudo o que o homem e o trabalho humano realizam, ao transformar a natureza e atribuir significados ao que fazem e ao próprio ato criador de fazer. O processo social de criação de cultura é o que atribui ao homem a possibilidade de afirmar-se como um ser de consciência. Como um sujeito que habita de modo singular a sociedade e por sua vez, a história. Vejamos como isto foi escrito em alguns documentos mais importantes daqueles tempos. Em todos eles e nos que virão a seguir o leitor observará um tipo de linguagem bastante característico de educadores como Paulo Freire e de todos os Movimentos de Cultura Popular do período.
O homem estando no mundo estabelece relação com a natureza, a compreende e desenvolve um trabalho de transformação desse mundo. Nesse sentido é que ele cria outro mundo, o mundo da cultura, do qual por sua posição de criador ele é sujeito e é como sujeito que ele deve participar do mundo da cultura da natureza2.
Cultura é tudo o que o homem agrega à natureza; tudo o que não está inscrito no determinismo da natureza e que nela é incluído pela ação humana. Distinguem-se na cultura seus produtos: instrumentos, linguagem, ciência, a vida em sociedade e os modos de agir e pensar comuns a uma determinada sociedade, que tornam possível a essa sociedade a criação da cultura3.
A distinção entre dois mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua sociedade e com sua realidade. O sentido de mediação que tem a natureza para com as relações e comunicações dos homens. A cultura como agregação que o homem faz a um mundo que não foi construído por ele. A cultura como resultado de seu esforço criador e recriador4.
O trabalho de transformar e significar o mundo é o mesmo que transforma e significa o homem; é uma prática coletiva. É uma ação socialmente necessária e motivada e a própria sociedade em que o homem se converte para ser humano é parte da cultura, no sentido mais amplo que é possível atribuir a esta palavra.
Também a consciência do homem, aquilo que permite a ele não apenas conhecer, como os animais, mas conhecer-se conhecendo, o que lhe faculta transcender simbolicamente o mundo da natureza de que é parte e sobre o qual age, é uma construção social que acompanha na história o trabalho humano de agir sobre o mundo e sobre si mesmo. A construção social da consciência realiza-se através do trabalho, que, por sua vez, resulta da possibilidade de comunicação entre as consciências, ao ser realizado coletivamente e ao ser coletivamente significado.
A própria consciência humana
Assim, a própria consciência humana, produto do trabalho, é também construída no processo da história e, como um pensar coletivo sobre o mundo através do trabalho, é um pensar social na e sobre a história: produto e palco do trabalho e da cultura.
As transações entre a pessoa humana e a natureza e entre as pessoas umas com as outras mediatizadas pela natureza através da cultura, não são somente sociais, categoria que parecia esgotar o limite do possível nos projetos de educação anteriores. São históricas por uma dupla razão: porque se constróem na história, no interior de seu processo; porque constróem a própria história, que não é mais que o trabalho humano de fazer cultura. Ao transcender o mundo dado pela natureza e construir material e significativamente um mundo de cultura, o homem se afirma, por sua vez, como criador de suas próprias condições de existência e como sujeito da história5.
Criando e recriando, integrando-se às condições do seu contexto, respondendo a seus desafios, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo o da história e o da Cultura.
Ser o sujeito da história e ser o agente criador da cultura não são adjetivos qualificadores do homem.
São o seu substantivo. Mas não são igualmente a sua essência e, sim, um momento do seu próprio processo dialético de humanização. No espaço de tensão entre a necessidade (as suas limitações como ser da natureza) e a liberdade (o seu poder de transcender ao mundo por atos conscientes de reflexão) o homem realiza um trabalho único que, criando o mundo de cultura e fazendo a história humana, cria a própria trajetória de humanização do homem.
Este trabalho coletivo existe no tempo. Existe ao longo de sucessões de tempos concretos e é, portanto, conjuntural. Existe determinado entre condições da natureza e condições da vida social, ambas parte do processo de história. Assim, a cultura que existe em princípio como o anúncio da liberdade do homem sobre o mundo, na prática histórica de sua produção pode existir como contingência da perda da liberdade de homens concretos, no interior de mundos sociais determinados, sob o domínio de outros homens. Portanto, há condições estruturais de legitimidade da cultura. De sua “autenticidade”, como os documentos da época preferem falar.
A cultura é histórica. A iniciativa humana que cria a história é precisamente a cultura. A história não é mais que o desenvolvimento do processo pelo qual se opera a mudança dialética da Natureza em Cultura, vale dizer, de mundo natural a mundo humano. Logo, uma cultura a-histórica é um contra-senso.
Em verdade, sendo o sujeito da história por ser o criador da cultura, as formas históricas das criações culturais devem situar-se na linha das exigências de realização do homem. Existem valores essenciais que a cultura deve encarnar em situações históricas infinitamente variáveis, justamente por serem valores constitutivos do ser-homem (sem estes a cultura é desumanizante e alienante).
Uma determinada cultura histórica é autêntica quando permite que tais valores se tornem carne e, por eles, a construção de-um-mundo-para-o-homem. Nesse caso, a cultura se torna expressão autêntica da real consciência histórica do homem (do grupo, da nação, da época)6.
Da metade em diante, a citação anterior aborda a questão da qualidade histórica da cultura da qual, mais adiante, derivará o duplo sentido da cultura popular. Entre os seres conscientes, a relação fundamental da cultura é dada na e pela comunicação: primeiro entre o homem e a natureza, no mundo; logo, entre os homens, no mundo humano: a sociedade. Sendo produto do trabalho humano, a cultura é o campo das mediações entre os homens.
A comunicação das consciências é uma realização da cultura, porque é feita com seus símbolos e entre seus valores. Esta também é condição de existência da cultura como dado objetivo - algo que existe mais além da pura subjetividade individual, no interior da vida coletiva - por ser o que permite a existência de símbolos, valores e bens culturais, transmitidos e co-participados. Esta relação de comunicação entre consciências na história é subjacente a todas as outras e fundamenta a possibilidade de reprodução social do saber, logo, da própria educação.
Num mundo plenamente humano, as relações fundamentais de cultura e através da cultura, são de reconhecimento de sujeitos livres e igualmente produtores e beneficiários da totalidade da cultura, que emerge à história através de um trabalho que afirma, na história, a liberdade, ao negar a possibilidade de domínio de umas pessoas sobre as outras. No processo real da história humana, o reconhecimento entre as consciências é sistematicamente negado, e a dialética das relações entre o homem e a natureza, através da cultura, estabelece a dominação de categorias de alguns sujeitos e grupos sociais sobre outros.
A cultura
A cultura que deriva da desigualdade de condições humanas de produção de bens, poderes e símbolos de compreensão da vida social, é socialmente dividida e reflete relações antagônicas entre grupos no interior da sociedade. A oposição de culturas não é resultante de processos derivados da própria natureza do homem, nem tampouco é uma condição do modo como o homem se relaciona com seu mundo. É um fato histórico que nega a possibilidade de que a História se realize como afirmação da igualdade e liberdade entre todos os homens7.
A oposição estrutural entre modos sociais de participação na cultura é o que explica a cultura popular. No contexto das sociedades latino-americanas, por exemplo, esta é uma das caras da relação negada de universalização da cultura, e existe como valores e símbolos de sujeitos e grupos étnicos e sociais dominados no processo da história. É, simultaneamente, a cultura imposta às classes populares e também a cultura que elas criam, segundo a forma como participam na vida social em todas as suas dimensões. Frente a uma cultura dominante, a cultura popular é subalterna.
Entretanto, separadamente, tanto a primeira como a segunda são igualmente alienadas, no sentido de que não são capazes de afirmar e expressar relações universais e solidárias de reconhecimento entre os homens. A cultura se constitui, ela mesma, então, em um instrumento de dominação entre sujeitos e grupos humanos.
Sempre que um elemento da cultura passa a ser exclusivamente de um grupo humano ou de uma classe social, e que o internacionalismo universal da cultura é negado pelas condições concretas de sua apropriação pelo homem, a cultura é instrumento de poder e dominação de uns sobre outros. É uma cultura alienante , porque não é humanizante, já que nega o universal do homem. (Elementos de cultura são: as idéias explicitadoras e interpretadoras da realidade; os valores que se oferecem para a opção em liberdade; as técnicas de transformação efetiva da realidade, os bens materiais que dela resultam e que alimentam a vida do homem em níveis crescentes de bem-estar e segurança, etc.). Seu destino universal deve encarnar-se nas condições históricas concretas que permitem sua comunicação real aos homens pelos quais e para os quais se elabora: só assim a cultura é autêntica8.
Assim, em uma sociedade desigual, regida pela desigualdade em todos os setores da vida social, das relações de produção de bens materiais às relações simbólicas de criação e comunicação de significados e valores, as culturas das pessoas, grupos e classes subalternas são elas próprias, regidas por uma autonomia muito restrita. De acordo com os documentos dos MCPs dos anos 60, sob o poder simbólico de uma cultura dominante, a cultura que o povo cria - com o que lhe é culturalmente imposto e com o que ele consegue representar de seu - traduz a sua condição de objeto.
Como uma cultura dominada e alienada, ela não expressa para os subalternos a realidade social através dos valores de uma ideologia autônoma de classe. Ela é uma cultura do povo, sem chegar a ser uma cultura para o povo.
Ao lado do controle diretamente político (não raro policial e militar) com que as diversas instituições do poder exercem o domínio concreto da vida, existe um controle direto exercido pela cultura dominante sobre a cultura dominada. De muitos modos e através de muitos artifícios de comunicação e de inculcação de idéias, realiza-se um trabalho contínuo de bloqueio e cooptação de todas as “manifestações populares” que possam vir a expressar a sua condição de classe e um horizonte histórico popular. O domínio da cultura erudita sobre a popular é ativo: mobiliza recursos, canais, meios, pessoas especializadas, grupos de controle, de propaganda, de educação, recupera técnicas, inova, amplia e testa a sua estratégia; absorve, esvazia, retraduz, invade domínios e formas de expressão cultural do povo.
Dentro de um tal tipo de estrutura de trocas no interior da ordem de relações desiguais entre os homens, o povo mistura elementos de sua própria cultura (aquilo que reflete para ele a continuidade de seu modo de vida, revelando-ocultando a sua condição de classe) com fragmentos da cultura dominante que a todo momento invadem os espaços populares da sociedade. Isto acontece tanto através de um domínio difuso sobre a sociedade, quanto por meio de instrumentos ativos de controle, quando as classes dominantes lançam mão de estratégias de cultura de massa para envolver e conquistar o imaginário da cultura das massas, do povo.
Consequentemente, todos os diferentes setores das classes populares reproduzem, como sendo sua, uma cultura “culturalmente” mesclada (fora do eixo da identidade das classes populares), politicamente dominada (fora do eixo do poder) e simbolicamente alienada (fora do eixo da consciência). Dentro desta situação, não sendo conscientizado pela sua própria cultura, o povo não poderá sê-lo por outro qualquer meio usual na conjuntura de dominação. E, no entanto, somente a partir da ação conscientizada e organizada das classes populares é legítimo imaginar a possibilidade de um projeto de libertação de todas as esferas de domínio na sociedade de classes.
Vejamos como as idéias mais decisivas dos MCPs dos anos 60, no Brasil, poderiam ser ampliadas, mesmo que por um momento corramos o risco de nos afastar do pensamento ,de seus documentos originais.
Sociedade igualitária
Em uma sociedade igualitária e regida por princípios de justiça e fraternidade, a diferença entre culturas é um bem. A sua pluralidade correspondente à presença de diversos grupos étnicos e mesmo nacionais, à diversidade de suas regiões e à associação entre tudo isto e a variedade de vocações e estilos de vida e de representação da experiência particular de um grupo ou povo no curso da realização de sua vida, é desejável.
É mesmo um dos indicadores mais fiéis de um estado cultural de liberdade de criação, a partir de diferenças culturais negativas de diversidades sociais. É em nome disto que se defende na América Latina o direito a que todos os povos indígenas mantenham a plenitude de suas próprias experiências culturais em todos os seus planos, da língua à religião, o que desautoriza qualquer tipo de prática cultural homogeneizadora, mesmo quando em nome de sua “integração à comunidade nacional”, mesmo quando em nome da produção de uma “genuína cultura nacional”.
Outra coisa é a desigualdade cultural decorrente de estruturas e processos de imposição de valores, de negação do direito à expressão cultural de povos, de grupos e de etnias minoritários ou dominados social e culturalmente. Na sociedade desigual uma posição estrutural entre formas sociais de participação na criação, na partilha e no consumo da cultura é o que explica a própria cultura popular .
Uma cultura popular “alienada” (o termo era bastante comum na época) é negadora de uma vocação de direitos humanos em um duplo sentido. Primeiro, ela resulta de uma imposição de conhecimentos, valores e códigos de relacionamentos interpessoais de classes e grupos hegemônicos sobre outros, traduzindo a própria relação social de desigualdade, e também o poder de uma classe em impor a outras e a outros grupos de seu meio, visões de mundo e expressões de identidade que não são criações suas e não expressam a sua própria experiência no mundo; segundo, mesmo uma boa parte daquilo que se pode considerar como criação cultural popular, aquilo que os sujeitos subalternos conseguem criar através de suas próprias experiências no mundo, reflete a sua condição subordinada. É seu, mas não traduz a sua liberdade. É “próprio”, mas não reflete a integridade de sua experiência, pois ela é privada de autonomia.
A proposta de uma ideia: a cultura popular como um trabalho político através da educação
Exatamente nos mesmos anos em que de maneira crescentemente intensa várias propostas de trabalho do tipo “povo-e-governo” eram realizadas por meio de programas como nomes como “desenvolvimento” (“nacional”, “regional”, “sócio-econômico”, “integrado”), “promoção social”, “organização”, “educação fundamental”, aparecem no Brasil outros tipos de grupos e movimentos de ação direta junto às camadas populares, que opõem outras idéias e projetos às já existentes e que pretendem reinventar possibilidades de um trabalho popular.
Pouco a pouco eles denunciam a intenção de controle político que se oculta sob as vestes das propostas “oficiais” de trabalho social com o povo e anunciam uma alternativa de efeito político através da ação social. Tais experiências subordinam a idéia de “desenvolvimento” à de “história” e pensam a história como o lugar cujo horizonte é a “libertação”. Substituem “comunidade” por “classe”, “organização” por “mobilização”, “participação” subalterna no “desenvolvimento” por “direção popular” do “processo da história”, “mudança de atitudes” por “conscientização”, “educação fundamental” por “educação libertadora”, “desenvolvimento de comunidade” por “cultura popular”.
Se é verdade que por toda a parte existe uma espécie de invasão cultural erudito/dominante sobre a cultura popular na sociedade regida pela desigualdade e pela oposição entre classes sociais, um projeto de ruptura social da desigualdade, da injustiça e da marginalização de pessoas e comunidades populares, deveria possuir uma dimensão também cultural. Este é o momento em que as propostas de cultura popular da década de 60 propõem uma verdadeira inversão no que então se pensava como sendo “o processo da cultura”.
Isto é o que eles imaginaram ser a sua contribuição inovadora na questão da participação de intelectuais militantes “comprometidos com o povo”, no próprio projeto popular de sua libertação, cuja teoria e cuja estratégia cada movimento buscava estabelecer de acordo com a sua ideologia e os seus projetos de construção da história.
Colocar a cultura na história e depois fazer a crítica histórica da cultura não representa uma descoberta dos movimentos de cultura popular. Mas tomar tal crítica como um ponto de partida e propor um trabalho coletivo como história através da cultura, foi uma idéia nova de um tipo de prática até então não realizada no Brasil.
Sabemos até aqui que os documentos dos anos 60 tentam recuperar uma interpretação dialética da cultura, contra uma compreensão dela como produto feito, “coisa” existente no mundo fora do trabalho social do homem e da história social de reproduzi-lo. Opostos à ideologia oficial que imagina a “cultura brasileira” como um amálgama pacífico “da mistura de três raças” e fecha os olhos às relações e conflitos de classe ali presentes, os movimentos pretendem instaurar a crítica das condições políticas de realização da cultura.
Contra os usos intelectuais vigentes que tradicionalmente representam a cultura popular “nas tradições do povo”, um folclore que não resulta das e nem espelha as relações de poder entre os seus diferentes tipos de produtores, os documentos dos anos 60 investem com a proposta de uma cultura popular, proposta esta de retomar a cultura com o objetivo de motivá-la, através do trabalho político de recriá-la com o povo, para conscientizá-lo através dela.
A construção da história
A construção da história da reconquista da conciliação entre os homens e da liberdade do homem não dispensa, desde o ponto de vista dos MCPs, um trabalho político no domínio da cultura. Ao contrário, ao lado de iniciativas de organização e participação de atores populares em um plano mais diretamente político, há todo um amplo trabalho popular a ser realizado sobre a cultura e através da cultura.
Assim como um momento da história pode ser o da tomada do poder por grupos opressores que sujeitam os processos sociais de construção da cultura aos seus interesses, um outro momento pode ser o da conquista do poder que recupere, não só para o povo, mas para todos os homens, as dimensões perdidas das relações humanas do trabalho e da cultura.
A realização deste momento de história exige que aquilo que só aos olhos do ingênuo aparece como um domínio “universal” de artes, ciências, símbolos e valores “puros” deixe de ser o lugar do “puro” pensamento: a contemplação da cultura, e seja recuperado como um lugar político de luta e transformação. Eis a razão da cultura popular.
Trocado em miúdos, isso quer dizer o seguinte: há um espaço concreto de luta política que se realiza no domínio da cultura. Uma luta popular que agindo através da própria cultura participa da criação de sua própria liberdade. A cultura alienada é o solo onde floresce no oprimido a consciência alienada. Esta consciência é o nevoeiro que impede ver a dominação tal como ela existe. Que o impede de compreender sob que condições existe e, portanto, aprisiona uma ação política contra ela, tal como seria necessário e correto fazê-la.
Na linguagem bem peculiar dos documentos dos primeiros anos da década de 60, isto implica incentivar e instrumentalizar de modo conscientizador o povo, para que este se reorganize em torno dos elementos de sua própria cultura, implica torná-lo crítico pela reflexão que esta significa e expressa como uma cultura de classe.
Importa, ainda, assessorá-lo na tarefa de fazer-se capaz de ser o construtor de uma nova cultura popular a partir de novas práticas coletivas. Uma cultura agora despojada de valores impostos, estrangeiros e dominantes, que refletem a lógica do polo hegemônico da sociedade, sua visão desta. Uma cultura nascida de atos populares de liberação que reflita, na crítica da prática da liberdade, a realidade da vida social em toda sua transparência.
Nesse momento estamos trabalhando com uma expressão à qual se atribuem três sentidos. Cultura popular significa: a) a cultura subalterna das classes populares por oposição à cultura dominante das classes dirigentes; b) as diferentes modalidades de um trabalho realizado conjuntamente entre educadores populares e grupos populares, dirigido à produção de outra consciência, de outra cultura e de outra ordem social; c) o resultado nunca concluído deste trabalho como uma re-totalização da cultura nacional, em termos de e sobre as bases de uma cultura popular liberada. Esta cultura que afirma a primazia do reconhecimento e da liberdade entre os homens é, inicialmente, uma cultura de classe: a das classes populares. É, após, a cultura que permite vislumbrar o fim das relações antagônicas entre as classes sociais: uma cultura universal e plenamente democrática.
Cultura popular
Portanto, cultura popular pouco a pouco se define como a prática de uma relação de compromissos entre movimentos de cultura popular e movimentos populares através da cultura. Define-se como o projeto de realização coletiva dessa prática, aquilo que deve ser construído através do trabalho educativo da cultura popular. Define-se finalmente como o processo e o produto de tal realização. Por esta razão há uma frase que se tornou muito comum nesse período: “fazer cultura popular”, ela significa igualmente aquilo que o educador faz junto ao povo e aquilo que o povo educado para a liberdade realiza.
Uma seqüência de passagens dos documentos que procuraram então propor uma alternativa política da educação popular pode ser útil aqui. Ela servirá para deixar que falem os autores individuais e coletivos da época. Servirá também para acentuar, com a linguagem dos tempos heróicos dos MCPs, as maneiras como os principais conceitos com que estamos trabalhando aqui eram articulados.
Não se trata de teorizar sobre a cultura em geral, mas de agir sobre a cultura presente, procurando transformá-la, estendê-la, aprofundá-la” 9.
O fenômeno da cultura popular, no Brasil, não surge somente como uma atitude nem somente como conseqüência de uma análise. Surge como um movimento, isto é, como uma ação efetiva com objetivos determinados, que se cristaliza naturalmente em organizações - que pretendem uma cultura popular, que fazem cultura popular -, as chamadas organizações de cultura popular.
Tais organizações são assim chamadas, não porque sejam os sujeitos de uma cultura autêntica do povo, nem porque “levem o folclore ao povo”, mas porque pretendem agir no sentido da superação, pela sociedade, dos desníveis entre os diversos grupos sociais que a compõem.
...
É fácil concluir que todas as organizações que se situam numa área ideológica de
Para que não se transforme em cultura-para-os-trabalhadores, a cultura popular necessita ser uma totalidade que reuna dialeticamente dois polos distintos e as vezes antagônicos: integrar os interesses imediatos do trabalhador individual com o interesse profundo e objetivo da classe trabalhadora e, nessa mesma dialética, unir os interesses particulares da classe trabalhadora com os interesses gerais de todo o povo.
A cultura popular somente é totalidade quando se transforma em um processo que permita a livre expansão desta complexa rede em que se articulam, em interseções ricas e variadas, motivos subjetivos e possibilidades objetivas, propósitos de grupos e paixões individuais, meios disponíveis e finalidades ambicionadas...Em uma palavra, a cultura popular deve ser a expressão cultural da luta política das massas, entendendo-se por essa luta algo que é feito por homens concretos, ao longo de suas vidas concretas10.
Nossa luta interna de libertação vincula-se profundamente à cultura popular, que assume em um primeiro momento o sentido de desalienação da nossa cultura, sobrepondo a valores culturais estranhos aos nossos, outros criados e elaborados aqui.
Esta é a tarefa fundamental da cultura popular, sobrepor nossa cultura às culturas estrangeiras, sem perder de vista, evidentemente, o sentido universal, permitindo um processo de culturalização em que predomine a cultura brasileira.
Em um segundo momento a cultura popular assume o caráter de luta, que junto à formação de uma autêntica cultura nacional, promove a integração do homem brasileiro no processo econômico-social e político-cultural de nosso povo. Uma cultura popular que leve o homem a assumir o papel de sujeito da própria criação cultural, fazendo-o não só receptor, senão criador de expressões culturais A tarefa “da cultura não é somente a de um meio político, como um trabalho de preparação das massas para a conquista do poder. Estaríamos reduzindo o sentido da libertação humana ao plano político e econômico. A tomada do poder revolucionário não esgota a cultura popular, ao contrário, abre o caminho para uma criação cultural autêntica e livre, ou melhor ainda, popular e nacional” 11.
O movimento de cultura popular surge no Brasil como reivindicação para opor-se ao tipo de cultura que serve somente à classe dominante. É, por sua vez, um movimento que elabora com o povo (e não para o povo) uma cultura autêntica e livre. O movimento de cultura popular se apresenta como um processo de elaboração e formação de uma autêntica e livre cultura nacional e, por isto mesmo, como uma luta constante de integração do homem brasileiro a nosso processo histórico, em busca da libertação econômica, social, política e cultural do povo. É, portanto, um movimento, por sua vez, de elaboração e de libertação.12.
Qualquer movimento de cultura deve ter como diretriz suprema e orientadora do conjunto de suas atividades, a deliberação de incorporar-se ao esforço comum desenvolvido pelo movimento popular em luta pelo alcance de seus objetivos. Esse propósito primordial se expressa essencialmente no projeto de transformação das condições culturais que tem desenvolvido o movimento popular, o que se verifica na medida em que essas condições deixam de ser adversas e passam a ser francamente favoráveis ao avanço do movimento popular. A presente linha diretriz realidade local, que servirão de motivação para iniciar um trabalho efetivo” 13.
Escritas com ênfases políticas que desaguavam então em diferentes leituras do ideário marxista, mas também no dos primeiros movimentos de vanguarda cristã no Brasil, a proposta da Cultura Popular consistia num afã de gerar e difundir instrumentos culturais e culturalmente políticos de serviço à causa popular, sob a forma de movimentos criados por grupos de intelectuais comprometidos com “as classes populares”, “as lutas populares”, “os trabalhadores”, etc.
Nos termos em que procuravam se apresentar como um novo tipo de movimentos sociais, os MCPs - ou pelo menos uma parte deles - acreditavam que culturalmente nada estes geram sozinhos, mas eles participam de um esforço comum (com outros grupos comprometidos e com grupos populares) dos processos de conscientização e mobilização dos subalternos. Isto quer dizer que é tarefa desse tipo de trabalho cultural gerar transformações de consciência, de expressão simbólica e ideológica, de qualidade de mobilização e de organicidade da prática política entre sujeitos, pequenos grupos, comunidades e outros setores e espaços populares.
Outro objeto
Outro objetivo da Cultura Popular é a consolidação de um lugar de trabalho comum entre intelectuais eruditos e populares (artistas, educadores, cientistas, promotores e comunicadores de “uma nova cultura”) comprometidos com um mesmo projeto histórico de libertação do povo, com a participação popular.
No interior deste projeto de ação pedagógica os mediadores apontam os meios, criam e colocam instrumentos nas mãos dos grupos populares, retraduzem e difundem conteúdos de compreensão da realidade social. Enfim, tornam politicamente populares idéias, práticas e recursos culturalmente eruditos.
Os agentes da mobilização popular (pessoas, grupos, comunidades e classes) entram com os seus valores, saberes, formas próprias de organização e representação de suas vidas e de sua condição social. Através de um trabalho comum sobre a cultura popular (a que o povo tem e que aporta ao processo) a Cultura Popular (que os mediadores desenvolvem e também aportam ao processo) inova, recria, transforma, conscientiza, tornando cada vez mais crítica, autônoma e politicamente operativa uma cultura do povo que se transforma em uma cultura de classe.
Vimos já que tornar crítica, progressivamente autônoma, etc, a cultura tradicional do povo, significa instrumentalizá-la politicamente. Politizá-la como universo simbólico das classes populares, significa participar do processo que transforma uma cultura que reflete o mundo, a condição de classe, o modo de vida e o horizonte político do dominado através do pensar imposto do dominante, em uma cultura que seja reflexiva das mesmas coisas, através de um novo pensar crítico do dominado.
A relação que sustenta a Cultura Popular é dialética. Um trabalho político sobre a cultura cria condições de transformação cultural de teor político entre as classes populares: conscientiza, politiza e mobiliza. Aí está a base do acesso do povo à participação efetiva na luta pela transformação das estruturas sociais de poder. A progressiva conquista popular do poder gera, por sua vez e através de suas práticas, a condição necessária para a transformação da cultura popular (como cultura de classe) em uma autêntica cultura nacional (a de uma sociedade sem antagonismos de classe).
Eis o que gera os movimentos de cultura popular. Como um contraponto ao que de maneira sistemática é feito através da cultura na sociedade capitalista, caberia a eles uma parcela importante no trabalho ideológico de recriação, com o próprio povo, de sua própria cultura. Culturas do povo haveriam de ser transformadas em “autênticas culturas populares” através de experiências de cultura popular.
Retomando os símbolos e os significados de suas próprias raízes (a arte popular, os saberes populares, as diferentes tradições populares em todas as suas dimensões, os costumes, etc) e repensando-as a partir da associação entre a sua experiência de vida e a associação com os agentes e os recursos do movimento de cultura popular, as pessoas do povo e os grupos populares (no campo, na cidade, em suas diferenças étnicas, regionais, de vocação de trabalho, de participação diferenciada no trabalho político popular) realizariam sobre si mesmos o trabalho pedagógico de sua própria tomada de consciência.
De transformação “de dentro para fora”, de seus valores, de seus modos de pensar o mundo, a vida e o destino, de suas crenças (inclusive ou principalmente religiosas) e seus costumes. O resultado simbólico deste trabalho popular haveria de ser o trânsito de culturas subalternas, características da condição subalterna, para culturas em processo de autonomia, características da organização de movimentos populares de resistência, de luta e, no limite, de libertação.
Ora, uma cultura popular finalmente reflexiva e, não, reflexa, completaria a sua missão histórica quando se afirmasse como cultura nacional. Quando estivesse socialmente dissolvida a desigualdade entre as classes e uma cultura unificada a partir do povo do país devolvesse ao imaginário de todos os seu sentido humano de universalidade. É a esta recuperação de uma unidade como valor universal regido pela integração de múltiplas expressões de diferenças culturais autônomas que alguns documentos chamam de “desalienação das culturas”. Pois quebradas as estruturas de domínio de uma sobre a outra, ambas se uniriam em um mesmo sistema de símbolos e significados regido pela possibilidade de recriação de valores e conhecimentos regidos pela conciliação entre as consciências, onde antes houvera a dominação simbólica de umas sobre as outras.
Livre, uma cultura popular abandonaria os resquícios de uma sua visão arcaica e fatalista da história dos povos e do destino das pessoas, regido por uma prisão ao passado e um temor do futuro. Ao invés de se apresentar como o tempo da realização de fatalidades determinadas em algum momento do passado e alheias ao pode das pessoas, o futuro se reapresentaria como o lugar do acontecimento. Como o inesperado, mas construível território de uma realização assumida, voluntária e solidária dos homens em seu mundo.
O domínio da própria tradição popular deve ser então estabelecido sobre outros termos, pois a não ser nos grupos e momentos mais radicais, não se tinha em mente a desqualificação do folclore, das tradições populares, mas a sua re-qualificação de sentidos e de valores. Algo que significasse a passagem da contingência à consciência. O trânsito daquilo que as pessoas do povo criam e vivem para repetir nos gestos do presente os significados subalternos do passado, a algo que por se tornar a consciência autônoma de seu poder criador, seja para ele mesmo o eixo da sua possibilidade de ele agir culturalmente como um agente histórico de transformação.
4. Algumas práticas dos movimentos de cultura popular
Que tipos de práticas tão especialmente conseqüentes com a nova visão de trabalho junto às pessoas, grupos e comunidade populares, pretendiam gerar e pôr em prática os movimentos de cultura popular? Aparentemente, nada diferentes do que já se havia feito em repetidas oportunidades em todos os países da América Latina.
O informativo final do 1º Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular, relaciona as seguintes modalidades de trabalho, a partir do relato do que faziam em todo o país os distintos grupos de cultura popular: alfabetização, teatro com e teatro para os grupos populares, cinema e música popular, artes plásticas, rádio e televisão, projetos editoriais (livros, revistas, boletins), praças e parques de cultura popular14.
Da mesma forma e como o mesmo professor Paulo Freire reafirmou tantas vezes, as diferenças não estavam no tipo de prática (na alfabetização por exemplo) senão na qualidade de um modo de prática (uma experiência de alfabetização pode ser “alienante” ou “libertadora”). Entre estes grupos que tratavam socialmente as mesmas categorias de sujeitos e realizavam o mesmo tipo de trabalho, algumas se alienavam ideológica e politicamente como “de cultura popular”, e esta diferença pressupunha: a. uma concepção classista do trabalho sobre e através da cultura (realizar o trabalho junto ao povo como uma experiência popular); b. uma crença no poder libertador das ações promovida através da cultura popular.
Dessa forma, dá-se um modo próprio de “fazer alfabetização” como um projeto desde “o ponto de vista da cultura popular”. Da mesma forma, a expressão “educação de adultos” também pode ter incorporadas práticas de cultura popular, sempre que os pressupostos de programa e o horizonte de realização sejam consequentes com os princípios desta última.
Nesse contexto, a alfabetização é legitimamente uma forma de cultura popular. O trabalho de alfabetização deve, portanto, adotar uma interação cada vez maior com o povo: deve buscar uma identificação tão completa quanto seja possível com a comunidade onde atua; deve buscar um diálogo crítico que não será somente entre o alfabetizador e os alfabetizados, senão principalmente entre estes últimos, propiciando um processo um processo de desenvolvimento cultural dinâmico.
Este trabalho não poderá ser eventual, senão que deverá obedecer a uma linha sistemática, a partir de uma perspectiva global de educação que tem como objetivo a transformação da estrutura vigente15.
A lista de atividades dos movimentos precursores poderia ser organizada dividindo as experiências de cultura popular em duas direções principais: 1ª. aquelas cujo trabalho era predominantemente curricular e que, de modo geral, se moviam da alfabetização à educação de base e desta à ação direta junto a comunidades rurais ou urbanas; 2ª. aquelas cuja prática era predominantemente artística e para as quais o trabalho de cultura popular era um permanente desafio de descobrimento de meios criativos de uma arte popular
Arte popular... Educação popular... Cultura popular... conceitos que se plantavam como contrários a uma “arte para trabalhadores”, ou em direção oposta a um aproveitamento do “folclore”, tal como ambos vinham sendo utilizados, seja para “elevar o nível cultural do povo”, seja para “valorizar a cultura”, negando a possibilidade que dela emergiram valores críticos e ativos de um trabalho de classe.
Assim, por exemplo, enquanto em alguns programas tradicionais de “informação cultural” ou de educação de adultos, o teatro, a música e o cinema eram utilizados como recursos pedagógicos para transferir a setores populares conhecimentos eruditos da lógica dominante, nos movimentos emergentes dos anos 60, o cinema, o teatro e a música, como arte popular, eram meios para efetuar uma comunicação biunívoca de efeito conscientizador..
Esta comunicação visou: a. tomar os valores da arte e cultura de grupos e comunidades populares e utilizá-los como elementos próprios de reflexão coletiva sobre as condições de vida e o significado dos símbolos do povo; b. levar aos setores populares da população uma arte erudita que geralmente lhes era negada, acompanhada de situações de reflexão coletiva que devolveram ao pensamento do povo um sentido humano e crítico, que os movimentos de cultura popular reconheciam haver-se perdidos ao traduzir-se em termos de “cultura de massas”; c. criar depois, com os participantes do projeto, uma arte que reflete, a partir da associação dos valores do povo com o aporte do trabalho dos agentes, um modo novo de compreender o mundo e de saber vivê-lo16.
Alfabetização de adultos
Talvez na alfabetização de adultos os MCPs tenham conseguido realizar as suas idéias de uma maneira mais contínua e duradoura, durante a efêmera existência da maior parte delas, a partir das conhecidas experiências de Paulo Freire e sua equipe no Nordeste, todo um trabalho de alfabetização começa por uma pesquisa conjunta do universo cultural popular. Depois, as próprias aulas são transformadas em círculos de cultura, onde o trabalho de ensinar-e-aprender pretende ganhar uma inesperada e inovadora dimensão dialogal.
Onde o próprio ensino de leitura de palavras do Português começa e continua por uma reflexão coletiva a partir da questão teórica da cultura e dos elementos da cultura local de cada grupo de educandos. Pois não se trata de aprender apenas a ler e escrever em uma língua, como nos programas tradicionais de alfabetização de adultos, mas antes de aprender a “ler o seu próprio mundo através de sua própria cultura” e a comunicar-se com o outro como um sujeito consciente. Uma pessoa participante das decisões de seu destino e comprometida com o processo histórico de construção de uma sociedade igualitária.
Neste sentido o próprio princípio de uma educação dialógica, cuja pedagogia pretende dissolver “a estrutura vertical do ensino” e devolver aos alunos “o poder da palavra” durante a sua própria aprendizagem, tem um valor que desloca o educacional para o cultural e resolve ambos como um que fazer francamente político, revolucionário mesmo. Sendo um trabalho de mediação, uma prática feita por intelectuais comprometidos com/junto a/para as classes populares, os documentos de 60 insistem em que ela não deve ser vertical. Não deve ser imposta, como se faz costumeiramente no contexto da cultura dominante e, no limite, não deve ser nem mesmo “para” o povo, ainda que politicamente “em seu nome” e “a seu favor”.
Ao contrário, toda a prática dos movimentos de cultura popular deve incorporar-se de maneira concreta aos espaços e ao modo de vida do povo, acrescentando ali apenas aquilo que, por conta própria, as classes populares não conseguem ainda produzir. Um dos princípios mais unitários era o de que não existe uma verdadeira conscientização sem o diálogo e não há diálogo solto. Ele só existe no campo das relações sociais diretas, quando elas garantem uma efetiva participação popular no trabalho de realizá-lo através da Cultura Popular.
Este procedimento aponta já para o outro lado da proposta múltipla dos movimentos de cultura popular. Apesar de todas as críticas da cultura popular como “alienada”, o importante na ação cultural era um trabalho de resgate, não de negação das tradições populares. Partir delas, tal como os seus agentes e consumidores populares as vivenciam. Tornar claro, com eles, o que existe ali de verdadeiramente popular e o que é residual, imposto por outras culturas.
Em projetos concretos que sempre tiveram uma enorme dificuldade em passar de suas teorias e palavras de ação cultural para uma experiência duradoura e consistente, os objetivos gerais eram a crítica “como o povo” dos seus valores culturais e a experiência de recriação de culturas que pouco a pouco passassem de uma espécie de tradição residual para uma tradição inovadora. Que, sem perderem até mesmo as suas características “folclóricas”, servissem a traduzir para pessoas, grupos, comunidades e movimentos populares, a sua própria tomada de consciência como sujeitos da história em luta pelos seus direitos humanos.
5. Tantos anos depois: alguns elementos de crítica atual aos projetos de cultura popular dos movimentos de cultura popular dos anos 60
Os documentos que apresentei aqui foram quase todos escritos, discutidos e tomados como um ponto de partida de um “trabalho político transformador”, através de cultura e da educação, entre 1961 e 1964. Trinta anos mais tarde há um fenômeno que deve chamar a nossa atenção. Há um silêncio muito grande a respeito das relações entre a cultura e a educação popular. Este silêncio só é menor quando se trata de documentos com teorias, idéias de ação e métodos de trabalhos com grupos indígenas, com minorias étnicas ou com outras categorias de agentes sociais onde a dimensão cultural de suas experiências é muito visível.
Dou um exemplo. Em uma publicação muito recente do Instituto Paulo Freire, editada em Buenos Aires como uma coletânea de educadores de adultos e/ou educadores populares, de que participa o próprio professor Paulo Freire, a grande ausente em quase todos os artigos é a palavra cultura 17. É como se uma modernização das críticas políticas à sociedade desigual e das propostas pedagógicas com vistas à sua superação, pudesse ser agora pensada sem a “questão da Cultura” e, especialmente, das culturas populares.
Mesmo no artigo de Luís Eduardo Wanderley e no meu, educadores dos anos 60, e até mesmo na contribuição oportuna de Paulo Freire, a cultura popular é um ator coadjuvante, às vezes silencioso, em outras, ausente mesmo. Em Paulo Freire, expressões como “formação da cidadania” e “prática educativa progressista” parecem querer atualizar palavras antigas, extremamente sonoras e sugestivas trinta anos depois, como “conscientização” e “pedagogia do oprimido”.
Algumas críticas poderiam ser feitas à maneira como nos anos 60 os movimentos de cultura popular pensaram a própria cultura popular e estabeleceram as suas propostas de ação cultural. Procuro fazer isto aqui, restringindo-me àquelas que me parecem mais válidas para pensarmos juntos os aspectos mais importantes de uma experiência latino-americana cujos efeitos sobre os movimentos populares e sobre toda uma tradição de educação popular na América Latina, são importantes até os dias de hoje.
A primeira crítica poderia ser a de uma apressada submissão da cultura à política, do símbolo ao poder. Houve sempre um evidente radicalismo em estabelecer esta relação, nos movimentos culturais dos anos 60. É como se as classes dirigentes detivessem uma espécie de poder absoluto e tivessem um interesse absoluto em utilizar dos meios de comunicação e todos os artifícios simbólicos para “invadir” culturas populares e impor a elas os seus valores, segundo os seus objetivos de controle do imaginário popular e de domesticação dos subalternos.
Sabemos que se existem relações entre um plano e o outro, eles não são tão diretamente unidirecionais e o próprio poder deve ser pensado como uma dimensão entre outras da cultura e das múltiplas relações entre culturas, em uma mesma sociedade, ou em sociedades diferentes (como uma tribo indígena e a sociedade branca, regional). Sabemos também que em suas tão diversas expressões, as culturas populares não são um mero reflexo dos símbolos, valores, interesses e poderes das elites eruditas.
De um modo ou de outro existem espaços populares de criação original; de autonomia de expressão de si mesmos e de representação de seu mundo segundo a sua própria experiência. Sempre existiram estratégias de originalidade e de uma genuína afirmação de identidades peculiares, mais reflexivas do que apenas reflexas.
Nos últimos anos o próprio sentido da idéia de poder e de uso político do poder tem tomado direções diferentes de como ele era pensado anos atrás. Creio não ser um exagero dizer que mesmo entre os movimentos populares e suas ONGs de apoio, a questão do poder está hoje mais para Foucault do que para Marx, mais para Geertz do que para Gramsci. Não nos devemos esquecer de que o progressivo desaparecimento dos regimes militares na América Latina, ao lado do crescimento de programas culturais públicos e principalmente dos meios de comunicação de massas, tem colocado em cena uma muito grande variedade de agentes e interlocutores no campo da cultura e mesmo no âmbito das propostas e projetos de/sobre as culturas populares.
De maneira natural, esta apreciável polissemia torna hoje grosseiro um jogo de opostos do tipo: estado x sociedade civil, elite dominante x povo subalterno, cultura dominante x culturas dominada, alienado x conscientizado etc.
A segunda crítica poderia ser dirigida a uma uniformização das diferenças culturais populares. Desde o tempo do surgimento dos movimentos de cultura popular até anos recentes, as classificações de tipos e categorias de culturas eram estabelecidas sobre certos pares de opostos muito rudimentares: erudito x popular; dominante x dominado; alienado x libertado; urbano x rural.
Nos meios mais militantes uma proclamada unicidade de destinos - a libertação auto-construída do povo e a construção popular de um outro modelo de estrutura social - impunha uma opacidade teórica e empírica da maneira como em qualquer sociedade diferentes modelos de cultura surgem, comunicam-se, inter-influenciam-se e se transformam. O resultado mais visível disso era uma redução motivada da complexidade das culturas, da diversidade das culturas a amplos domínios onde ela própria era obrigada a dissolver-se.
Fora a oposição popular versus erudito, o que dizer das diferenças visíveis que os próprios militantes dos MCPs e os participantes dos atuais inúmeros movimentos populares têm pela frente? Diferentes tipos de povos e de culturas indígenas; negros cuja diferença não está somente no serem “negros”, mas partilharem através das diversidades históricas, étnicas e simbólicas, por meio das quais se reconhecem em sua imensa riqueza, culturas e tradições próprias, peculiares, mesmo dentro de uma mesma unidade ampla.
Tipos específicos de “pessoas e comunidades camponesas” cujas experiências culturais não os opõem em bloco apenas às diversas manifestações populares de culturas urbanas, mas que de região para região dentro de um mesmo país tomam feições próprias e observam ritmos desiguais em suas próprias experiências de convivência com a modernidade.
Novos sujeitos sócio-culturais que, sobretudo após se constituírem como movimentos particulares de defesa de direitos humanos, descobrem em si mesmos a evidência de serem também sujeitos de culturas originais. Descobrem por si mesmos a maneira como alguma forma de participação em movimentos sociais atualiza de dentro para fora esta “cultura em processo” que, entre iguais culturais, quando olhados desde um ponto de vista mais amplo, abre as portas à possibilidade ampliada da afirmação de diferenças culturais de identidade, de ethos, de estilo de vida e mesmo de projeto peculiar de destino social.
Ao contrário do que aconteceu nos tempos da criação pioneira de um conceito crítico de cultura popular como uma forma de ação política através da cultura, a especialização dos movimentos sociais e uma vasta convergência de propósitos e horizontes tem obrigado todos os participantes mais intelectuais a uma urgente revisão do “lugar da cultura” em toda a experiência dos movimentos populares e das organizações não-governamentais associadas de alguma maneira a eles.
É difícil hoje lidar com algo como a “classe popular”, desde onde seja possível partir de uma cultura popular para se chegar a uma cultura de classe. Lidamos com movimentos de indígenas e movimentos de grupos indígenas específicos. Como frente de lutas de negros, de minorias étnicas, de sujeitos socialmente marginalizados, de categorias profissionais, de agentes específicos de arte ou cultura, de seres humanos empenhados na busca política da paz entre todas as pessoas e todos os povos, de neo-militantes dos direitos humanos através da questão ambiental e de participantes de movimentos de preservação da natureza como um dever humano.
Mesmo que o horizonte da história a todos unifique, não são apenas questões muito particulares o que na prática especializam os movimentos e os grupos assessores, mas também as diferenças de identidade e de culturas dentro das quais todos eles se movem.
Quando nos anos sessenta pouco a pouco os movimentos de cultura popular convergiam para um ideal de ruptura das desigualdades e afirmação das diferenças culturais (o que, de resto, era silenciado ou mesmo negado em alguns grupos mais radicais, empenhados na criação de uma única “cultura popular” afirmada como uma única “cultura nacional”) este era sempre um ponto de chegada. Mas ele é hoje um ponto de partida. Somos conscientes de que as diferentes culturas da cultura popular são ao mesmo tempo a sua realidade social e a sua força na história. Cada vez mais as questões “de classe” dissolvem-se em problemas e diferenças étnicas, culturais.
Somos também conscientes de que todos os padrões externos de critérios para qualquer tipo de avaliação, seja do “teor político”, seja do “grau de desenvolvimento de culturas populares são incapazes de traduzir os seus verdadeiros significados como uma experiência simbólica de vida de um grupo humano. Sabemos que assim como não houve origens comuns para o acontecimento das culturas, assim também não há ritmos ou direções iguais e convergentes. A própria relação entre tradição e modernidade é algo cuja tensão somente pode ser vivenciada e tornada significativa de dentro para fora de cada cultura.
Ideia
Esta é uma ideia que valia antes para uma compreensão teórica da cultura, como entre os antropólogos, por exemplo. Mas ela tem hoje um valor muito grande mesmo ou principalmente nos movimentos populares. Se o que está em jogo não são apenas as faces “materiais” dos direitos humanos, mas todas as dimensões dos direitos à identidade, à realização da vida individual e coletiva segundo padrões próprios e ritmos peculiares de existência, então a maneira como tudo isto se combina e transforma é uma questão interna a cada grupo cultural, em cada tipo de experiência comunitária ou de movimentos social.
Este aspecto sugere uma outra lembrança oportuna. Uma simples releitura dos textos mais dirigidos a uma ação política dos movimentos de cultura popular é o bastante para se compreender como em praticamente todos eles a questão crucial de uma análise científica da cultura e de uma sugestão de propostas para ações culturais é marcadamente ideológica.
Vivemos hoje, trinta anos depois, o tempo de um imaginário referente a todas essas questões bastante mais flexível e diversificado. Sabemos que mesmo quando existe o reconhecimento de que certos horizontes comuns na história humana devem ser a busca de todos indistintamente na verdade nenhuma ideologia os recobre inteiramente e nenhum projeto único de construção de futuro contempla as diferenças culturais no que toca a crítica social do real e as respostas políticas com vistas a sua transformação.
Um conjunto mais atual de experiências de movimentos sociais - “Populares”, nos termos dos anos 60, ou não - tão motivadamente diferenciados em suas origens, objetivos e destinos de realização, aos poucos deslocou em boa parte um foco político sobre a ideologia para um foco mais cultural centrado em questões de identidade sócio cultural e ética de relações. De alguma maneira, passamos a propósitos e propostas ideológicas, tão uniformes quanto possível, à idéia de que, afinal, as próprias ideologias são, também elas, construções culturais.
Elas são maneiras próprias através das quais grupos de atores sociais criam símbolos e significados que, em suas origens, traduzem olhares particulares a respeito de si mesmos, de sua visão de mundo e de suas estratégias de condução do poder e de transformação da sociedade. Em suma, ideologias políticas são construções particulares, ainda que humanamente convertes.
Muito mais do que ao tempo do surgimento dos movimentos de cultura popular, na mesma medida em que os movimentos sociais são sensíveis às diferenciações de seus sujeitos e dos seus objetivos, eles próprios tendem a se diferenciar de uma maneira extraordinária de acordo com o foco de sua vocação.
Ao lado dos antigos e ainda tão indispensáveis movimentos populares de luta pelos direitos à terra e pela reforma agrária, envolvendo os homens do campo em praticamente todos os países do continente, surgem por toda a parte novos movimentos de vocação ambientalista associados a grupos sociais organizados em torno a lutas pelos direitos humanos e a conduta democrática plena à cidadania, eles emergem revisitando ideais de compreensão universal, de paz entre todos os homens e de pacificação nas relações entre a sociedade e a natureza.
A cada dia surgem novas palavras, novos olhares de crítica e novas (algumas, tão velhas!) aspirações que em boa medida não se contrapõem, mas se somam aos antigos e atuais movimentos sociais voltados à cultura popular.
Se em algum momento do passado foi suposto que haveria diferenças cruciais entre alguns destes antigos e novos movimentos, agora estamos um pouco mais sensíveis a buscar, em nome dos ideais irredutíveis de justiça, igualdade, paz e solidariedade, o que possa haver de fecundamente convergente entre todos eles.
No campo da cultura, estamos vivendo agora algo de alguma maneira novo e até mesmo inesperado. É que agora é impossível pensar uma luta pelos direitos populares à cultura e pela afirmação solidária de identidade étnicas, sociais etc, através também de uma reiterada diferenciação de tradições culturais populares, sem ligar tudo isto a uma universalização de direitos e de deveres onde a “questão ambiental” tem um lugar crescentemente importante.
Quaisquer que foram as observações que nos anos seguintes tenham sido dirigidas ao pensaram e projetaram realizar os antigos MCPs, pelo menos duas entre outras contribuições deles devem ser lembradas aqui.
Apesar do caráter francamente “mecanicista” do modelo usual de análise da realidade social de seu tempo, e também apesar de um ingênuo simplismo na maneira como se acreditava poder atuar politicamente através de culturas do povo, redimensionadas como culturas populares tornadas, no seu limite, uma cultura nacional autônoma, consciente e revolucionária, havia um propósito de inserir o processo da cultura no interior de uma integração de dimensões da própria vida social que parece haver-se diluído nas experiências de ação cultural mais recentes.
Claro, será preciso descontar uma apressada sobre-valorização do trabalho cultural, nos anos 60. Mas o que importa reconhecer é que pela primeira vez entre educadores e artistas os valores e alcances da cultura popular deixaram de ser tratados como simples matéria prima do conhecimento erudito, ou de atividades escolares interessadas muito mais na tradição residual das culturas populares do que no seu teor de processo simbólico de transformação de consciências e de atitudes dos criadores sociais de culturas populares.
Esta é uma segunda contribuição dos Movimentos de Cultura Popular dos começos da Educação Popular na América Latina que merece ser lembrado aqui. Nunca antes os sujeitos das classes populares, os homens do campo, os povos indígenas foram com tanto ênfase convocados a assumirem a sua própria passagem de agentes econômicos a atores sociais responsáveis pela realização de sua própria história.
As propostas atuais de projetos de Educação Popular, de Educação e Direitos Humanos, de Educação Para a Paz, um apelo à democratização da cultura associado a um desejo de realização social dos direitos de cidadania estendidos a todas as categorias de pessoas, por igual, não parecem possuir a mesma qualidade de aposta no poder de organização e de transformação do povo, a partir de seu próprio trabalho político.
Um trabalho de reinvenção do poder, capaz de construir na história uma sociedade plenamente solidária, onde à cultura cabe um duplo papel. O de ser, durante o processo de sua construção, uma instância crítica de democratização efetiva de símbolos, de valores e de significados da vida social. O de ser, em sua completa realização, a própria evidência simbólica da comunicação livre e igualitária entre todas as pessoas.
