
Ensaio - Amor, Raiz e Rito: A Poesia Telúrica de Olga Savary
11/06/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
Epígrafe:
"Dar nome às coisas é fundar o mundo. Dizer amor onde o mundo diz poder, é resistir à sua crueldade."
— Jorge Pinho
Dedicatória:
A Francisco Christo,
Por fazer da poesia uma ponte e da palavra, partilha.
Ao reenviar aos seus amigos o poema “Nome”, de Olga Savary, você não apenas divulgou literatura — acendeu em
muitos corações a centelha de um amor que não se oculta sob véus, mas se revela com carne, raiz e água.
Recebi esse gesto como quem recebe uma oferenda ancestral: sem ornamentos excessivos, mas com verdade e intensidade. Porque só partilha o que é vivo quem carrega dentro de si essa mesma chama.
Dedico a você, amigo — que semeia poesia em tempos áridos — o texto que brotou dessa leitura, com gratidão e fraternidade.
Com estima e admiração,
Jorge
Poema:
NOME
De Olga Savary
(Belém, 1933 – Teresópolis, 2020)
Dar às coisas outro nome, que não o vosso, amor, não pude. Nem pude ser mais doce e sim mais rude
por conta das lamentações mais ásperas, por causa do agravo que pensei ser vosso.
Amor era o nome de tudo, estava em tudo,
era o nome do macho cheirando a esterco,
a frutos passados e a raízes raras.
De posse da intimidade da água
e da intimidade da terra,
a animais vorazes é a que sabíamos.
Amor é com que me deito e deixo montar
minhas coxas em forma de forquilha e onde amor abre caminho pelas minhas águas.

1. O poema como rito, não leitura
Alguns poemas não se leem: acontecem. Como o raio que rasga o céu sem pedir licença, ou o parto que inaugura o mundo antes da razão, há textos que não pedem interpretação — exigem entrega. São epifanias brutas, sim, mas não por falta de forma: por excesso de vida. Não pretendem agradar, mas rasgar o invólucro da linguagem domesticada, como quem arranca as vestes de um símbolo para revelar o corpo nu do sentido.
Olga Savary, amazônica não apenas por nascimento, mas por vocação ontológica, não escreve poesia — consagra a palavra. Sua obra não nos oferece uma experiência estética no sentido convencional, mas algo muito mais ancestral: um rito. E todo rito verdadeiro, como ensinava Mircea Eliade, “é a repetição de um ato primordial que funda o real” — não representa: recria.
Mas o que Olga recria com sua palavra não é apenas o mundo visível — é o espírito profundo da Amazônia, tecido na confluência de DNAs, culturas e saberes que se entrelaçam como rios, sem jamais se diluírem. Em seu sangue pulsa a herança da bisavó indígena, os traços coloniais portugueses e uma pluralidade genealógica que atravessa a Rússia, a França, a Alemanha, a Suécia. Não se trata de uma fusão homogênea, mas de um choque criador, onde as placas civilizacionais se friccionam como na Dorsal Mesoatlântica — e, como no Tzimtzum da Cabala, essa tensão inicial não destrói: recua para que algo possa nascer.
Sua poesia é um Tikun Olam poético: um ato de reparação simbólica do mundo rompido, reminiscente do Shevirat haKelim — quando os vasos da criação se quebram e os estilhaços se espalham no caos. Olga colhe esses fragmentos e os reintegra, não em nome de uma harmonia artificial, mas de uma beleza imperfeita que emerge do abalo. Como ensinaria Hegel, a verdade não está na tese ou na antítese, mas na superação dialética que preserva a tensão. E Olga, nesse sentido, não representa a cultura amazônica: ela a reconcilia com o que nela havia sido exilado — o sagrado, o feminino, o originário.
Há em sua obra o que Edgar Morin chamaria de pensamento complexo: o entrelaçamento de opostos sem mutilação, a dança entre o mítico e o racional, o enraizamento e a errância. E talvez por isso, ao lê-la, me reconheço. Também eu fui gerado entre tensões: entre o verbo e o silêncio, entre o Logos e a selva, entre o mundo dos homens e o mundo dos símbolos. O que Olga escreve com seu corpo e sua memória, escrevo eu com minha casa, com minha escultura, com minha vida — construída sobre a Dorsal do Ser, onde forças telúricas e espirituais disputam espaço, mas onde o movimento não é colapso: é revelação.
E como ensinava Martin Buber, o “eu” só se revela no encontro com o “tu”. Talvez seja isso que Olga nos ofereça: um “tu” amazônico que nos olha de volta, que nos devolve a dignidade do vínculo e nos lembra que toda identidade verdadeira é sempre relação — nunca isolamento.
Ao devolver o amor à sua dimensão original — primitiva, radical, visceral — Olga não está retrocedendo à barbárie, mas reencontrando a fonte. Como dizia Hölderlin, “onde cresce o perigo, cresce também o que salva” — e talvez por isso, sua poesia nos devolva o eros não como afeto decorado, mas como força de mundo, como sopro telúrico que antecede a moral e escapa ao controle.
2. O amor como nome original
No poema Nome, o amor não aparece como aquilo que o senso comum costuma chamar — de forma imprecisa — de "ideia platônica": uma abstração inatingível, contemplada de longe, sem corpo e sem risco. Essa versão diluída do pensamento de Platão — muito distante da sua concepção original de Eros como força ascensional que parte do desejo sensível rumo ao belo em si — foi herdada por uma modernidade sentimental que
prefere o ideal à entrega.
Mas o amor que irrompe na voz de Olga Savary é o oposto dessa idealização desencarnada. Ele vem como matéria e sangue, como barro e desejo, como gênese encarnada. É carne simbólica e verbo inaugural. Amor, aqui, não paira sobre o mundo — é o próprio mundo querendo acontecer.
Na verdade, é exatamente sobre isso que Platão tratava: Eros, para ele, é uma força de ascensão, mas essa ascensão não rejeita o corpo — ela parte dele. No Banquete, é o próprio corpo, com seu desejo, sua beleza, sua potência de atração, que inaugura o movimento da alma em direção ao eterno. Não há espiritualidade platônica sem o impulso erótico sensível.
Por isso, quando Olga Savary escreve com o
Corpo, ela não nega o espírito — ela o convoca. Sua poesia, carregada de desejo e matéria, está inteiramente de acordo com a lógica platônica originária: a de que o belo visível é um portal para o invisível. O que Savary faz é recusar a cisão moderna entre carne e espírito, devolvendo ao amor sua potência total — assim como Platão propunha.
Amor, aqui, não é um enfeite sobreposto à experiência: é o nome original de todas as coisas, o nome antes dos nomes. Por isso, o primeiro verso — “Dar às coisas outro nome / que não o vosso, amor, não pude” — não soa como simples confissão lírica, mas como um axioma cosmogônico, digno da tradição que via na palavra o poder de instaurar o real.
Como ensinava o Sefer Yetzirá, texto fundamental da Cabala, “o mundo foi criado por meio de letras, números e nomes” — e dizer amor onde outros diriam outra coisa é reconhecer a centelha divina que pulsa sob o caos das aparências.
3. Nomear é criar: gesto ontológico e ancestral
Aqui, Savary realiza mais que um gesto poético — realiza um gesto ontológico de matriz ancestral: nomear é criar, como nas cosmogonias sagradas em que o mundo não emerge do caos por imposição física, mas pelo poder da nomeação justa. Nomear é dar forma ao informe, é conferir essência onde antes havia apenas fluxo.
Como afirmava Platão no Crátilo, os nomes verdadeiros contêm a natureza das coisas; dizer corretamente é participar do real. Na tradição hebraica, dar nome é selar identidade: Adão, ao nomear os animais, não os classifica — reconhece neles o sopro da criação.
Nesse espírito, Olga Savary resgata a palavra “amor” do cativeiro contemporâneo, onde ela foi reduzida a ornamento de afeto, slogan publicitário, produto de consumo emocional que não compromete nem transforma. Vivemos, como advertia Confúcio, um tempo em que os nomes deixaram de corresponder às coisas — e, por isso, a ordem se rompe.
Savary, ao contrário, restaura a correspondência perdida: devolve o amor à sua morada originária — não como abstração decorada, mas como vibração encarnada. Amor, aqui, é o que sente a carne, é o que cede o corpo, é o que, ao se abrir, não se perde, mas se supera.
Como dizia Simone Weil, “a atenção verdadeira é um despojamento do eu” — e o amor, tal como emerge nos versos de Olga, é
precisamente essa entrega sem garantias, esse abandono que não é fraqueza, mas potência transformadora.
4. O eros telúrico como força civilizacional
A poética de Olga Savary encarna o eros telúrico — aquela força arcaica que, para os pré-socráticos como Empédocles, não apenas movia o desejo humano, mas estruturava o próprio cosmos. Para ele, philia (amor) e neikos (conflito) eram os dois princípios em perpétua alternância, responsáveis pela coesão e dispersão dos elementos.
Olga, no entanto, não trata o eros como um arquétipo distante, como faz a tradição neoplatônica que o sublima. Ao contrário: ela o restitui à terra, ao corpo, ao instinto — ao cheiro do macho, ao fruto passado, à raiz rara.
É um eros que transpira, que pulsa, que se entrelaça ao húmus do mundo. Um eros que não paira sobre a realidade: que a atravessa. E que, ao ser cantado por uma mulher amazônica, não perde força — ganha densidade simbólica. Pois aqui, o eros não é conquista, nem dominação. É acolhimento. É passagem. É gesto feminino que conduz, não porque cede, mas porque transfigura.
Além disso, essa forma de “saber” que aparece no verso de Olga Savary — “a animais vorazes é a que sabíamos” — não se refere a um conhecimento racional, discursivo ou teórico. É um saber vivido, um reconhecimento que nasce do corpo e da experiência íntima, não da abstração. É o mesmo tipo de sabedoria expressa no dito popular: “Filhos, se não tê-los, como sabê-los?”. Trata-se de uma verdade que só se alcança pela travessia. Assim é o amor no poema: algo que se conhece por dentro, na entrega, no risco, no embate com as forças mais profundas da existência. Olga não fala de um amor idealizado, mas de um amor visceral — que se sabe como se sabe o próprio sangue.

5. Contra Sartre: o amor que funda, não que aliena
Ao contrário de Sartre, que reduziu o amor a um embate entre consciências em perpétuo conflito — onde o desejo pelo outro é, no fundo, vontade de neutralizá-lo, de transformá-lo em objeto para garantir a própria liberdade — Olga Savary recusa essa lógica de alienação e devolve ao amor sua dimensão ontológica primária.
Amor, para ela, não é estratégia nem dialética de má-fé: é força que atravessa o ser, que o expande, mesmo — e sobretudo — quando dói. Essa dor, aliás, que atesta sua veracidade. O que fere, vivifica. O que corta, revela. E por isso, em Savary, o amor não é o que consola, mas o que funda.
Ele é o nome que tudo nomeia não porque adorna as coisas, mas porque as atravessa com radicalidade. Como o Logos heraclítico, que é fogo e transformação, o amor é aquilo que une os opostos, que acende a tensão entre o corpo e o mundo sem querer dissolvê-la.
6. A hospitalidade amazônica e o feminino consagrador
E não é por acaso que essa voz brota de Belém do Pará — esse ponto de encontro entre águas doces e salgadas, entre selva e porto, entre o Brasil profundo e o mundo. É dessa geografia simbólica, onde a terra é húmus e cruzamento, que emerge a
linguagem de Olga Savary.
E como afirmei certa vez, em discurso proferido em Pernambuco, o amazonense não apenas acolhe: seduz. E ao seduzir, integra. Essa sedução não é artifício estético, nem vaidade civilizatória: é rito de pertencimento. Acolhe-se com intensidade, não por cortesia, mas por identidade — pois aqui, na Amazônia, o estranho só é verdadeiramente acolhido quando se torna raiz.
Savary realiza essa hospitalidade ontológica do feminino amazônico: o corpo que se abre não se oferece à dissolução, mas à transfiguração. O que era estrangeiro — seja um corpo, uma dor, um amor — torna-se sangue, torna-se linhagem, torna-se DNA simbólico da comunidade.
7. A forquilha do amor como portal iniciático
“Minhas coxas em forma de forquilha” não é, de forma alguma, um verso de erotismo gratuito ou provocação fácil. Ao contrário: é uma imagem arquetípica de alta voltagem simbólica, enraizada na tradição mitopoética da humanidade. A “forquilha” é mais que metáfora anatômica — é figura de portal, de bifurcação iniciática, de entrada entre mundos.
A mulher que Savary invoca não é objeto do desejo masculino, mas sacerdotisa do rito de transfiguração. Ela não cede: ela consagra.
O corpo feminino, aqui, não é território invadido, mas templo onde só adentra quem reconhece o sagrado. Amar, nesse contexto, não é possuir: é recordar. Re-cordis — voltar ao coração. O coração como centro simbólico do ser, como fonte de sentido.
8. A palavra que ancora o sentido
Em tempos de palavras vazias, slogans repetidos e amores transformados em performances descartáveis, Olga Savary restitui à poesia sua vocação mais alta: não a de adornar o mundo, mas a de fundá-lo.
Sua escrita resgata o poder originário da palavra — aquele que não serve para distrair, mas para criar realidades. Como lembrava Heidegger, “a linguagem é a casa do Ser”. Amor, em sua poética, não é apenas um afeto privado entre dois sujeitos: é uma força estruturante do real. Uma energia que ancora o sentido, perfura o tempo, reconcilia linguagem e carne.

9. Conclusão — Onde o amor flui, o mundo se refaz
Como dizia Heráclito, “o caminho é para
baixo e para cima ao mesmo tempo” — porque a verdadeira ascensão não se dá por negação da matéria, mas por sua travessia.
Olga Savary soube descer — com coragem e lucidez — às águas mais fundas da experiência humana. E, ao tocar esse fundo, não naufragou: emergiu com um amor que sobe. Um amor que liberta sem apagar, que purifica sem negar, que refaz sem substituir.
Sua poesia, como os grandes rios, segue corrente. Segue viva. Segue indomada.
E é essa indomesticabilidade que a torna necessária.
Não passa. Flui.
(*) O autor é advogado, procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de
Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.

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