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Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito –9 - Cultura (e) Política Por Teresa Leitão*

12/06/2025 -

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1. Introdução

Em meio ao isolamento imposto pela pandemia do coronavírus, recebo, no início de setembro, o honroso convite do professor Flávio Brayner para escrever um texto sobre a experiência na relação entre política e cultura, vivida no legislativo.

Justamente na pandemia onde essas duas áreas foram muito afetadas! São áreas notadamente afeitas ao contato direto entre as pessoas, às relações entre grupos, ao debate e às reações presenciais.
A pandemia e o isolamento dela advindo, trouxe desafios imensos para um reposicionamento da política e da cultura, seja para não perderem seus objetivos e suas razões de existir e de atuar, seja para se reinventarem e se colocarem vivas nos limites impostos pelo distanciamento, sem toques, sem olhares, sem aplausos. Tudo no modo virtual.

A experiência desses nove meses – uma gestação humana – nos viu surgir o sistema de deliberação remota nas casas legislativas, as infinitas lives, as inúmeras reuniões online, a busca quase desesperada em substituir o presencial pelo virtual. Nasceu uma nova cultura política? Construirmos as bases para o chamado “novo normal”? Muita coisa ainda a se confirmar.

Política e cultura chamaram a atenção para si durante a pandemia e as movimentações incluíram, inclusive, as eleições municipais de novembro/2020, mas as pautas, a meu juízo, permanecem as mesmas na sua essência. Mudou a forma de fazer, mas as relações permanecem iguais.

Faço essa introdução, não por esperar saltos qualitativos decorrentes da pandemia para essas duas áreas, considerando a forma como elas coexistem. Apenas para situar o texto em um contexto imensamente adverso e doloroso para o Brasil, onde as perdas, as mortes e o luto convivem até hoje com o descaso governamental de algumas gestões, sobretudo a federal, onde a banalização da vida é tratada com o conivente desrespeito às regras de segurança sanitária e onde a disputa político-ideológica comanda as decisões de prevenção à Covid 19 nos medicamentos e na vacina.

Acertaremos na construção do “novo normal”? O Mundo que se diz impactado precisará recorrer a essas duas atividades – a cultura e a política – para fazê-lo mais humanizado, mais solidário, mais amoroso.

Concluo essas reflexões, à guisa de introdução, valendo-me do primoroso texto de Boaventura de Souza Santos, - A Cruel Pedagogia do Vírus1 - que faz uma profunda análise da situação da pandemia do coronavírus em seus aspectos geo-políticos, econômicos, sociais, sanitários e culturais.
Ao final do texto, nos convida exatamente à construção de um futuro que pode começar hoje, em um mundo impactado pela pandemia, que não alterou as suas estruturas, muito pelo contrário, elas revelaram na pandemia a face do capitalismo mundial que continua acumulando, segregando, discriminando.

No entanto, contraditoriamente, é esta situação caótica que nos exige um novo olhar sobre o mundo neste início do século XXI: “A nova articulação pressupõe uma viragem epistemológica, cultural e ideológica que sustente as soluções políticas, econômicas e sociais que garantam a continuidade da vida humana digna no planeta”2

2. A relação entre política e cultura é difícil no Brasil

Historicamente, em função da própria estruturação do Estado brasileiro, a atividade política em nossas terras por si só é uma construção difícil até os dias de hoje.

Os vícios e as consequências do patriarcado, do fisiologismo, do patrimonialismo são realidades que teimam a permanecer em nossas relações, a despeito da luta que conquista alguns avanços. E permanecem porque têm adeptos , ferrenhos defensores que atualizam suas formas de expressão, mas não mexem na sua dimensão estruturante.

Política e cultura assimilam e convivem com tais fatores. Cada uma na sua forma de intervenção na sociedade,mas também na inter-relação que promovem, eu diria até, que precisam promover.
São duas atividades vitais à sociedade, dizem muito da maneira de perceber o mundo, reflete como nenhuma outra uma concepção de vida da qual se originam escolhas, prioridades, condutas e ações.

Um rápido olhar sobre as ações políticas institucionais na cultura nos revela isso. Se existem críticas sobre a ideologização da atividade cultural, não se pode negar a sua perspectiva política na configuração de um dado projeto social.

Até mesmo no período da ditadura militar, os órgãos públicos de fomento à atividade cultural permaneceram – Iphan, Embrafilme (extinta por Collor em 1990) e Funarte – e o silêncio imposto pelo autoritarismo não foi capaz de negar a relação entre política e cultura.

Em alguns casos, ela ficou até mais realçada e deu vigor ao pensamento dirigente de então, confirmando a inter-relação existente.

Com o advento da abertura política e o retorno de eleições diretas, foi no governo Lula (2002 a 2010) que esta relação política e cultura, se viu acrescida por novos ingredientes, dando voz e vez aos pequenos grupos e às expressões da cultura popular. Sem dúvida a diversidade acrescenta novos segmentos, novas demandas e novas formas de relacionamento entre cultura e política. As tensões passam a ter outras colorações.

Entender toda essa complexidade de interesses, conjugada à necessidade de institucionalizar as políticas culturais, considerar e valorizar os fazedores de cultura através de permanente diálogo, é tarefa que precisa de muito senso republicano e de muita transparência democrática.

Neste aspecto, os agentes públicos e sujeitos políticos são convocados também a tomarem posição. Se os ocupantes do Poder Executivo irão propor as leis, apresentar projetos e executá-los. Se os ocupantes do Poder Legislativo irão votar as leis e fiscalizar sua execução. Se membros da sociedade civil irão se expressar em concordância ou não com as políticas culturais apresentadas.

Considere-se que esta relação aqui descrita não ocorre desta maneira tão simples e aparentemente sistematizada. Há fatores muito fortes, de interesses diversos que influenciam na consecução das políticas culturais. Talvez o mais forte deles seja a força que a política e a cultura têm como expressão do pensamento, como canal de acesso ao poder, como instrumento pretensamente mobilizador de possibilidades de liberdade, de organização social, de emancipação. E isso tudo se disputa no dia a dia da política e nem sempre com armas dispostas pelo republicanismo.

Imaginem vocês a chegada numa casa legislativa de um plano estadual ou municipal de cultura, enviado pelo chefe do executivo, fruto de seminários ou conferências que dialogam com a sociedade e com o setor cultural. É muita riqueza de participação, é carga verdadeira de legitimidade ou é apenas cumprimento de uma regra burocrática que se não for seguida impede o acesso a recursos e a outras questões?

Sinto dizer, mas pode ser uma coisa ou outra. E votar um plano legitimado pela participação popular não significa que ele será amplamente executado, dado sobretudo à política de descontinuidade que assola muitas gestões públicas.

Isso nos remete à necessidade de colocar as definições políticas para a cultura em patamares institucionais amplos, permanentes, transparentes e democráticos. Não significa retirar de um gestor ou de um parlamentar o direito de intervir ou de propor, mas que o faça mediante um regramento conhecido, aprovado e socialmente referendado.

As contratações de grandes shows, a prevalência de determinado grupo de artistas, a secundarização da cultura popular são elementos constantes do cardápio político. Existe muita tensão sobre eles e isto está diretamente ligado à percepção dessa difícil relação entre política e cultura.

A chegada dos editais públicos, contemplando as diversas linguagens culturais, a consolidação e reformulação dos conselhos sociais, uma visível e salutar organização qualitativa do setor cultural no Brasil são dados alvissareiros para o aprimoramento desta relação.

Agentes públicos

Aos agentes públicos cabe a reflexão necessária para transitar da simples compra de produtos culturais para o reconhecimento do direito de produzir cultura. Para tanto, as condições precisam ser construídas, as políticas legitimadas pela participação social, os planos implementados e monitorados por quem de direito.

O histórico desta relação no Brasil nos mostra um alto grau de dificuldades e de contradições. Na arena política, as propostas são indicadoras de posições. É a intencionalidade política subjacente no dizer freiriano: para que, a favor de quem, com quem e conta o que. Atuar na cultura, não nos permitirá fugir dessa premissa. E a prática política, a cultura política reinante vão brigar para se impor.

Projetos e propostas mais consistentes da política cultural, que sejam realmente estruturantes, tendem a uma maturação e elaboração mais prolongada. Com certeza, ultrapassando tempo de gestões e de mandatos.

Sucumbir à instabilidade ou permitir exageros na intervenção dos agentes políticos, pode vir a prejudicar um projeto cultural que está em andamento, certamente alvo de negociações e de tensões, congregando os segmentos interessados e identificados com a política cultural.

Essa questão nos remete a um dos pontos mais sensíveis da relação política e cultura: a forma de financiamento e o lugar de projetos culturais nos orçamentos públicos. Mais uma vez os apetites da cultura política se farão presentes.

A relação dos entraves do financiamento é vital para dar sustentabilidade e consolidar as políticas culturais como políticas de Estado acessíveis, democráticas e includentes. Esta é uma tensão permanente que mobiliza todos os segmentos e agentes públicos. Considere-se que o orçamento é, teoricamente, a peça mais política e mais indicadora das prioridades e do perfil de uma gestão. O ex-presidente Lula gostava de dizer: “o pobre precisa está no orçamento”. E felizmente até onde pode, conseguiu fazê-lo.

O lugar da cultura no orçamento, o seu financiamento contínuo e duradouro, em meio a tantas outras prioridades, é objeto de muita confrontação política. E aqui voltamos à afirmação já exposta neste texto de que há projetos em disputa, mesmo com a retaguarda legal e alguns consensos pactuados.
Nestes aspectos, as políticas culturais estão ancoradas na perspectiva de direitos sociais e na idéia de universalidade dos bens culturais simbólicos e materiais. Isso briga constantemente com a prática política que ainda sobrepõe privilégios a direitos.

Há um estudo do IPEA3 – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – que aborda, mediante dados investigados, toda essa complexa relação a partir da economia e da prática política e social dos agentes públicos e comunitários envolvidos e interessados. Os aspectos pesquisados e sistematizados na publicação são: acesso da população aos bens culturais, emprego e mercado de trabalho das atividades culturais, regionalidade dos equipamentos culturais, financiamento, mecenato e demanda, Sistema Nacional de Cultura, este último como uma alternativa de organização e de estruturação federativa da política cultural no Brasil.


3. À guisa de conclusão

Com a dinâmica social tão impactada pelas adversidades da atual conjuntura, não há como terminar um texto com as usuais “considerações finais”, em especial ao falarmos sobre política,sobre cultura política, sobre cultura e política. Haverão de ser, como diz um amigo meu, considerações transitórias. Isso é bom, porque nos dá a sensação militante de poder intervir, de tentar fazer diferente para melhorar, de reivindicar questionando, de construir agregando.

As simples reflexões que expus aqui no texto refletem um pouco o modo de tratar as políticas públicas de cultura no ambiente político institucional.

Costuma-se dizer no jargão popular que “cabeça de político é território do imponderável”. Eu diria que, além disso, temos que localizar a cabeça, o corpo e os membros de políticos em uma arena, em uma cena com muitos atores e atrizes: partidos, blocos, campos, grupos. Ter compromisso e expressá-los na voz e nas ações. Enfrentar desafios e evidenciar interesses. Concordar, discordar, pactuar, denunciar.

Todas essas ações que permeiam a cultura política têm como grande palco um país fundado em teses autoritárias que se renovam e se atualizam, convivendo com movimentos de resistência e até de algumas revoluções, que nos legaram uma democracia ainda jovem e limitada, frequentemente atacada e felizmente defendida.

O mundo da política tem nos propiciado muitos sustos, muita perplexidade, muita indignação. E tem nos brindado com algumas alternativas de superação a uma certa mesmice que amarra e nos acomoda. Vejo isso como um movimento salutar na cultura política, para enfrentar uma renovação conservadora e o crescimento de grupos reacionários a mudanças estruturantes.

O mundo vive uma verdadeira transição digital e precisa encarar com seriedade a transição ecológica. Pelo bem da inclusão e pela preservação do planeta. A transição política também precisa ocorrer. As bases de uma cultura política patrimonialista, machista,homofóbica, autoritária que se revigoram, nesse início de século precisam ser combatidas.

É nessas contradições e nos valendo delas, que acredito ser a política a melhor alternativa para se avançar, republicanamente, na cultura política.

Teresa Leitão é educadora e senadora da República.

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