
Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito –10 - Cultura e movimentos sociais Por Daniel Rodrigues
13/06/2025 -
Definir cultura e movimentos sociais não é uma tarefa simples nem temos essa pretensão nesse texto, cada termo já carrega uma complexidade e a junção de ambos provoca um alargamento ainda maior.
A nossa opção foi buscar nessa miríade prática e conceitual algumas chaves de leitura sob a perspectiva do materialismo dialético, sem desconsiderar outras leituras teóricas, enfrentando a seguinte questão: quais categorias da crítica da economia política dariam uma base histórica para a compreensão de cultura e movimentos sociais? Optamos então por apresentar em forma de notas básicas compondo um corpo interligado começando pelo amplo significado de cultura.
1 - Primeira nota. A vastidão da cultura e suas bases concretas
Conforme, Nelson Werneck Sodré (2000) e tantos outros escritores que se debruçaram sobre cultura apontam a amplitude do termo desde o fazer produtivo do campo, a agricultura,as tecnologias, as formas de trabalho, passando por comportamentos,costumes, valores, religiões, tradições chegando até a especificidade de tratar cultura como expressão artística, em suas diversas áreas. Assim, a cultura constitui-se num conjunto gigantesco de práticas humanas intencionais das mais diversas, com maior ou menor consciência da mesma.
Pernambuco, na zona da mata sul, tem um histórico marcante no cultivo de cana-de-açúcar, produzindo uma “cultura da cana”, desde o século XVI no projeto de plantation, o latifúndio, a escravidão indígena e depois, em larga escala, a escravidão de africanos.
As relações construídas e as conseqüências conhecidas da exploração da força de trabalho, da violência contra negros, especialmente mulheres, da rentosa compra e venda de ‘peças’ produtoras demais mais-valia, embalado numa forma colonial de um capitalismo mundial vindo solerte até nossos dias.
A cultura da cana expressa todos os sujeitos envolvidos para além de todo complexo produtivo e do comércio internacional. Nela está exposto o patriarcado, o racismo estruturante da nossa sociedade, a violência como forma de resolver e funcionar as relações produtivas,ou seja, de organizar a própria sociedade.
Os jogos de controle dos de cima bem como saídas de sobrevivência malazarte dos de baixo é muitas vezes interpretada como uma prática branda dessa desumanização profunda e serve de base para o mito da democracia racial brasileira .A partir desse alicerce, concorremos como herdeiros dessas relações, dessas práticas, inclusive dos quilombos, das revoltas no momento de quebra do “bom funcionamento” do sistema. Essa amplitude transborda das relações básicas de sobrevivência e marca indelevelmente o que chamamos de cultura.
2 – As forças produtivas, divisão social do trabalho e a divisão entre as classes como balizadora da cultura
Existe uma tendência de pensarmos a cultura em geral ou mesmo as artes de forma apartada do desenvolvimento das forças produtivas e, consequentemente, das relações sociais de produção, mas isso é impossível. Podemos exemplificar com a criação de instrumentos musicais, não se pode falar em música contemporânea sem abordar a energia elétrica, e eletrônica, a informática e tantas subdivisões existentes vão assumir relevo no século XX , impensável na história da humanidade anterior, por sinal escrevo essas linhas enquanto escuto músicas das mais variadas épocas a partir de um aplicativo de celular, que reuniram na sua produção milhares de trabalhadores(as) invisíveis.
Pensar na modificação das forças produtivas significa pensar na ação teleológica do ser humano.
Engels (1990) aponta a divisão social do trabalho na quebra do modelo comunitário de produção com o desenvolvimento das forças produtivas e apropriação dos meios de produção, do trabalho, de forma particular, gestando a sociedade repartida em classes sociais.
Duas caracterizações são fundamentais: a apropriação do trabalho alheio e a divisão entre trabalho manual e intelectual, condições fundamentais para compreendermos a organização societária, a cultura e movimentos existentes.
Controlar os meios de produção é estabelecer a própria condição da reprodução da vida humana, tanto para dar conta das necessidades básicas quanto das necessidades secundárias, sejam as do estômago ou as do espírito humano, parafraseando Karl Marx, além de dar reais contornos à liberdade existente no ato de criação.
A divisão em classes projeta necessariamente culturas classistas, mesmo dentro da abrangência de considerar agricultura, comportamentos, costumes, religião, arte como cultura, pressupõe essa unidade de uma sociedade dividida na sua própria reprodução.
Esse ponto é fundamental para encararmos as divisões entre arte superior, inferior, arte erudita, arte popular, todas as separações não podem ser vistas de uma forma isolada, se comunicam, interagem de maneira desigual mas combinada, dentro do contexto histórico do modo em que a sociedade se organiza, relações entre os grupos sociais, no domínio das forças produtivas, da tecnologia desenvolvida, das desigualdades afirmadas.
No entanto, como a palavra ressaltada é a divisão social, fica pouco visível o outro lado da moeda, a divisão só tem sentido numa unidade, posta também sob forma hegemônica ou hegemonizada por quem controla os meios de produzir a vida humana.
3 - Terceira nota, a divisão entre trabalho manual e intelectual marca a cultura
A divisão em classes no processo produtivo carrega consigo a divisão intelectual e manual do trabalho, como a expressão divisão social do trabalho, ou de trabalho manual e intelectual, por serem vocábulos não desvendam a sua totalidade, a sua outra cara-metade. A divisão só vai ter sentido em sua complementaridade, dividir para resultar num todo para encontrar no processo ou no produto final uma totalidade. Se quiséssemos refundar esses conceitos, grafaríamos assim: “divisão e unidade social do trabalho” ou “trabalho de ênfase manual e de ênfase intelectual”, assim ficaria mais explícito a sua inevitável unidade.
Esse movimento interligado de cindir uma unidade possibilita o trabalho ser separado em tempos e por sujeitos diferentes, apesar de sua inseparabilidade enquanto finalidade do mesmo. Um sujeito pensa, planeja, utiliza-se de seu intelecto e outro o executa, essa apresentação rudimentar da divisão do trabalho expressa a potencialidade do desenvolvimento produtivo numa sociedade dividida em classes, ao mesmo tempo esconde essa totalidade, de como é processada a unidade, e, consequentemente, as desigualdades oriundas desta, de quem tem o poder de decisão e de quem depende de executar o planejado para sobreviver.
As antigas pirâmides ou as enormes e moderníssimas pontes construídas no século XXI pela China exemplificam a unidade do trabalho intelectual e manual, da complexa divisão social do trabalho, do desenvolvimento das forças produtivas, da utilização da ciência, da arte, da tecnologia, do trabalho intelectual que se efetiva, de sair da prancheta, ou melhor, agora realizado por operadores de programas informáticos, com experimentação materialmente física em laboratórios de última geração etc.. Arte e ciência, essa unidade efetivada pelo trabalho e o seu resultado fantástico.
Com a grandiosidade dessas construções tende-se a colocar debaixo do tapete as inúmeras mortes de operários; os impactos ambientais; a mobilização de milhares de trabalhadores, seu desmonte posterior e não notícia destes desmobilizados; da apropriação do trabalho; de seu controle e dos altos lucros obtidos nesse processo.
Cultura como essa unidade entre as classes, entre trabalho intelectual e manual, escondendo agora a divisão, os sentidos contraditórios da mesma, produtora de uma sociedade desigual desembocando numa percepção e uma valorização díspar das diversas artes e ciências, no caso, não por sua qualidade em si, mas pelo seu lugar social, do que representa interesses dominantes, hegemônicos e os outros, o resto.
4 - Quarta nota, a cultura como parte das relações sociais
Um professor médico coordenador do curso médico da UFBA , em 2006, apontou o baixo QI do povo baiano, de sua ignorância, referindo-se às notas baixas do ENADE. “Dantas, que é baiano, creditou anteontem o mau resultado ao ‘baixo QI [quociente de inteligência] dos baianos’. Afirmou ainda que o baiano toca berimbau porque só tem uma corda. Se tivesse mais [cordas], não conseguiria’" .
Continua em outro veículo de comunicação. “Só sai aquele barulho, 'pupupupupupu'. Isso por acaso indica qualidade intelectual muito elevada? Não", afirmou.” Poderíamos numa ligeireza política caracterizá-lo no campo dos obscurantistas negacionistas ou neofascistas tão presentes no nosso tempo. No entanto, observando outros artigos do douto vemos um crítico do golpe de 1964 e pauta a Faculdade de Medicina da Bahia como um lugar de resistência democrática.
Aqui podemos trazer à baila não só a desvalorização da cultura chamada popular, a identificada ou com os escravizados traficados de forma violenta da África ou indígenas espoliados, mas também a pouco vista relação laboral de exploração. A fala do médico está localizada na cultura européia transplantando, como diria Sodré (2000), auto considerada superior na comparação com a cultura africana. A percepção desse professor universitário, democrata, diga-se de passagem, é da reprodução da desigualdade, da manutenção das diferenças culturais e suas hierarquias naturalizadas.
A classificação de cultura superior, inferior, erudita e popular, exposta pelo distinto cidadão aparentemente através da quantificação de cordas, a fala é de legitimação das classes dominantes e de racismo.
Entender cultura é mais do que mergulhar num fazer específico, mas sim em suas relações postas, no caso, dentro do capitalismo racista. O instrumento liga-se aos sujeitos, a construção histórica dos mesmos, a construção das relações sociais históricas, está posta nas dessemelhanças entre os trabalhadores, na hegemonia inculcada nas diversas classes, inclusive com a contribuição intelectual da classe média na desqualificação histórica do trabalho manual.
Um berimbau é tão manual e intelectual quanto numa harpa com suas inúmeras cordas e seus anjos tirando acordes celestiais. Vejamos um aporte indireto de Gramsci, no trato com as relações:
O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, consiste em se ter buscado este critério de distinção no que é intrínseco às atividades intelectuais, ao invés de buscá-lo no conjunto do sistema de relações no qual essas atividades (e portanto, os grupos que as personificam) se encontram, no conjunto geral das relações sociais.” (GRAMSCI, 1999, p. 6 e 7).
Gramsci na elaboração do fazer do intelectual critica uma percepção muito comum nas análises, o mergulhar no fazer intrínseco e olvidar-se do principal. Para ele o mais importante não é a tipologia, no caso da caracterização do trabalho intelectual em si, mas sim do lugar social dos sujeitos e das relações travadas por eles.
Talvez essa seja uma das armadilhas mais comuns na definição de cultura. Até quando Sodré, um clássico e crítico da cultura brasileira, escorrega na afirmação sobre a falta de cultura para o povo brasileiro. Às avessas o exemplo nos alerta dessa caracterização, o que está em jogo não é a produção musical ou de ênfase intelectual em si, mas localização destas no tabuleiro das relações sociais, em especial na produção necessária para a reprodução da vida humana, entendendo o lugar dos produtores e consumidores das mais variadas especificidades, agrupadas em relações (re) produtivas.
5 – Trabalho: produção e consumo
Uma das parábolas sobre a roda-viva capitalista se encontra nas histórias helênicas, não por acaso nessa época se fortalecia a divisão entre classes sociais e defenestração do matriarcado, do Rei Midas que no seu toque, tudo virava ouro. Os variados aspectos da vida humana vão sendo transformados em mercadorias: a arte, o lazer, os jogos infantis, a saúde, a educação, os mais variados aspectos da produção e reprodução humana podem ser submetidos à lei do valor, ou seja, todos os aspectos da cultura estão incluídos nesse mecanismo de aparente movimento perpétuo.
O sequestro da liberdade, a infantilização do consumidor, o conformismo substituindo a autonomia vão ser alguns elementos que Adorno junto com Horkeimervão cunhar na expressão indústria cultural às artes produzidas sob o mecanismo capitalista. “La dominación técnica progressiva se transforma en un engaño de masas, esdecir em um médio de oprimir laconciencia. Impidelaformación de indivíduos autônomos, independentes.”
O produto assume a fantasmagoria de mercadoria, portanto o valor de uso, a utilidade, conforme Marx, do estômago ou da fantasia , vai ser subsumida pela realização do valor, simplificando, para extrair trabalho não pago, e, com isso propiciar ganhos capitalistas, ganhos às variadas frações burguesas e seus intermediários. O substrato arte, ou o produto em geral, não desaparece, mas fica moldado ao central, à sua realização enquanto mercadoria, tanto a liberdade quanto à necessidade estão sob a lógica dessa extração de valor.
O trabalho como organizador da cultura, mas não qualquer, mas aqueles em que o produtor não se reconhece mais enquanto tal, ou se imagina como produtor mas é apenas parte de uma engrenagem maior.
No entanto, como é um processo contraditório, as expressões por mais que sejam controladas, fogem do script da ordem, do progresso, e porque não dizer, do amor. Um modo de produção classista, capitalista no caso, é montado na expropriação central do elemento humano que é a sua criação, a sua sobrevivência enquanto um ser criativo, na relação dialética da desconstrução do posto e da construção do novo, da ciência e da arte, dos movimentos de lutas recorrentes em sua história.
A ordem, dependendo das construções evolutivas ou revolutivas pode se tornar desestruturação, não por magia, mas pelos movimentos reais dos sujeitos sociais, aqui já espreitando a importância dos movimentos sociais.
Os termos não podem ser colocados de forma separada: a produção e consumo na vida, nos aspectos culturais considerados valores ou arte, enfim. Essa condição coloca-nos como parte dessa produção coletiva, contraditória, nem sempre reconhecida pelo conjunto dos produtores. Na lógica burguesa as questões são postas circunscritas ao âmbito do consumo, do contrato entre partes iguais, na meritocracia, da democracia formal, numa igualdade social aparente. O mecanismo da divisão do trabalho complexificada no capitalismo retira a percepção dessa totalidade e reforça as desigualdades, naturalizando-as.
6 – Fetiche da arte
O enfeitiçamento do conjunto de produtores e da sociedade em geral não é mágico, apesar de se apresentar como tal, nem oriundo de um problema de inteligência ou da consciência em si, na prática os sujeitos produtores não se reconhecem no que é produzido pois não detém o comando do mesmo e não obtém social e plenamente acesso aos produtos humanos. Nessa perda o produto assume o lugar do próprio sujeito de tal maneira a esconder as raízes societárias baseadas nas relações sociais de produção e reprodução da vida humana.
O sujeito perde a condição de decisão sobre a produção, a intensidade, o modo, a quantidade, para quem se destina e em decorrência a reprodução de sua própria vida, vira um apêndice na produção e um consumidor enfeitiçado. É dessa base fragmentada que se extrai os elementos da cultura, a ciência e arte como duas faces do mesmo processo criativo ou reprodutivo.
A arquitetura como expressão de trabalho, ciência e arte, produzida coletivamente, não dá acesso aos trabalhadores da construção civil, não só aos produtores diretos, mas a milhões de pessoas, provocando a existência, por exemplo, no Brasil, de inúmeros movimentos de sem-teto, em pleno século da alta tecnologia.
A percepção de uma cultura, inclusive as artes, independente do desenvolvimento das forças produtivas, das contradições das relações sociais produtivas, ocorre pela centralidade posta na sociedade da lei do valor, e não em suas utilidades, mesmo as espirituais. O capital busca tendencialmente explicitar a sociedade e, consequentemente, a cultura, apenas em seu aspecto de consumo, em escala industrial, sem observar a fragmentação nem a ação intelectual a serviço da manutenção da subordinação ao capital.
Nesse sentido são produzidas várias práticas e defesas teóricas da lógica sistêmica como a meritocracia, a competência ou o empreendedorismo entre outros mecanismos de definição do sucesso individuais das pessoas, traduzido como uma atitude, uma disposição, uma inteligência auferida pela capacidade de seu consumo maior ou menor em variados bens, inclusive as artes. Temos assim um fetiche da cultura, das artes, estas aparecem como algo fora das relações sociais vigentes.
O fetiche da arte como expressão livre da realidade, de uma sensibilidade superior, como uma inerente bondade, obscurece o lado mais profundo das determinações sociais posto mesmo nos produtos humanos para alimentar o espírito humano, e, no capitalismo, apresenta-se como uma mercadoria. A liberdade de criação do trabalho, incluindo as ciências, as artes, está cercada por essas determinações em constante conflito.
Exemplificando através da arquitetura do fascismo e todo seu repertório artístico, atuando e controlando as emoções em vários estágios, utilizando a arte com todo aparato criativo num projeto destrutivo da própria humanidade. Dentro dessas contradições move-se a liberdade criativa, entendê-la, sem alimentar as ilusões de certa neutralidade ou espiritualidade acima dos outros elementos necessários à vida humana, coloca-a na esfera da disputa social.
7 - O contexto reacionário que se inserem os movimentos sociais
Pensar em movimentos sociais numa marca reacionária dos nossos tempos sempre nos custa mais. Mesmo assim, grupos oprimidos, classes exploradas, mesmo com toda a fragmentação, resistem e se reconstroem buscando caminhos mesmo que inóspitos à sua existência. Na atualidade não está colocados avanços de direitos para os subalternos e sim um “deixem-me respirar” ou “vidas negras importam”, ou ainda “aumento nas taxas de entrega”, bandeiras reveladoras da proximidade com a barbárie beirando o piso da sobrevivência humana.
Essa dificuldade em se realizar uma crítica concreta, no âmbito prático e teórico, demonstra um profundo enfraquecimento do movimento, em especial do sindical, mas mesmo nessa defensiva atroz apresentam-se focos de muitas resistências.
Revive o movimento feminista com greves internacionais, revigorando o 8 de março, por exemplo, como a luta negra nos EUA, esse alento não escondea hegemonia reacionária atual, alicerçada também na indústria cultural, desenvolvendo a condição de fragmentação com seu signo da miséria da crítica aos quais os temas da vida humana em sua amplitude são subjugados pelos resultados imediatos, produtividade, marketing, empreendedorismo, entre tantos. Essa matriz pragmática correspondente à necessidade do capital hodierno, enfim, os movimentos sociais não passam incólumes frente à hegemonia atual.
8 - A disputa do movimento por hegemonia na própria classe
Inúmeros programas de rádio ou TV trazem um recorte popular, apresenta o povo despreparado para a vida, mostra a sua face mais embrutecida, reforça a sua desumanização enquanto classe subalterna, responsabilizando-o por essa situação.
Depois de um lugar de elite, a TV, em sua busca por audiência, por novos mercados, mostra os empobrecidos imobilizados em sua própria impotência, algo a ser ridicularizado, e depois de “roubada sua beleza, educação, potencialidade etc.” o oferece como um espetáculo que demonstra a necessidade da ordem. Compõe essa lógica outros programas de famosos, ricos e belos reforçando e naturalizando os lugares sociais desiguais, reforçando os padrões hegemônicos.
Ainda de cunho popular, programas de cunho religioso prometem benesses do mundo em troca de devoção, de entrega da alma. Com seu milagre de multiplicação das graças ou da riqueza prometida ou testificado pela Teologia da Prosperidade garante uma nova vida desde hoje, imediatamente, ao povo desempregado, desesperançado, violentado diariamente.
Depois de obedecida a formalidade de aceitação a Jesus e, principalmente, pelas contribuições ao templo, são oferecidas palavras de conforto, saúde, felicidade, riqueza, desde que respeitada às hierarquias do sistema. Junto com essa positividade constrói sua negatividade em demonizar a todo movimento questionador dessa ordem, movimentos sociais, lutas, religiões não cristãs, partidos de esquerda, lgbtqia+, feministas e o comunismo.
Essas renovadas frentes do capital formam uma base importante de disputa com os movimentos sociais num constante embate, talvez esse seja um dos seus grandes desafios, enfrentar essa formação e organização profundamente compatível com o capital reacionário hodierno, tanto no limitado espaço político restrito, quanto no conjunto das disputas sociais.
Não bastasse esse último quartel de luta ideológica carregada de negacionismo da ciência, o capital renova seu arsenal da organização das relações produtivas reforçando o maravilhoso mundo do empreendedorismo, das competências, da promessa de riqueza de quem se esforçar. Para poder manter seu mecanismo de expropriação do trabalho, de absorção das contradições, inclusive da arte, o capital moderniza e transforma seu discurso para sua manutenção.
O Estado, mesmo o dito democrático, apresenta esse jogo como entre iguais, um blefe histórico, pois nunca existiu neutralidade e sim disputa dentro do fortalecimento do status quo. O quadro da produção de valores no espaço de liberdade, da criação continua sendo disputado e hegemonizado pelo capital em suas variadas formas mais (neo)liberais ou mais (neo)conservadoras ou até (neo)fascistas, modernas ou arcaicas, em panfletos ou na web com tecnologia de última geração.
O capital diretamente ou através do Estado realiza algumas concessões à uma crítica efetiva, existentes quando a força dos de baixo transcende, através de suas lutas e organizações, os marcos propostos da exploração. Esse nesse pequeno espaço de manobra que são reveladas as contradições como parte da construção da nossa própria história, como parte do surgimento e desenvolvimento dos movimentos sociais.
9 – Desafios dos movimentos sociais
Os movimentos sociais populares expressam, de uma forma ou de outra, inclusive em sua particularidade na produção e consumo de cultura, as contradições sociais, a divisão social do trabalho, a forma mercadoria centralizadora da organização social, a produção cada vez mais universal e a apropriação da riqueza mais particularizada. Portanto, movimentos sociais estão circunstanciados dentro do processo organizativo hegemonizado pelo capital. Romantizar como lócus de luta ou, ao contrário, retirar sua potencialidade de transformação são leituras parciais da realidade.
O capital na sua qualidade de revolucionário do seu próprio modo de produção transforma seus problemas em processos de criação de novos patamares de expropriação do trabalho, ou seja, aceita perdas passageiras para recuperá-las adiante já sem o perigo de sua própria contestação.
A luta por direitos a férias, por exemplo, décimo terceiro, fim do apartheid, fim da segregação de negros e mulheres nas faculdades, são milhares de conquistas,muitas vezes iniciadas como um estopim de rebeldia vão sendo incorporadas à lógica do capital, esse movimento demonstra a capacidade de reestruturação do próprio sistema. No entanto, quando esse direito incorporado passa a ser um estorvo, o capital não tem dó nem piedade em recuperar para si diretamente ou esvaziar seu caráter contestatório.
Nada é definitivo no campo do movimento social, da organização social capitalista, às vezes essas contraposições tomam relevo em sua crise aguda, em outras, ficam em banho-maria.
O momento mundial reacionário demonstra a força do capital como também os processos adaptativos que sofreram os movimentos sociais em sua grande parte. Podemos chamar de burocratização, perda do ímpeto de combatividade, negação de seu papel de crítica prática e teórica, o fato é, pensando em cultura do movimento social, valores, padrões, produções, também estão sob a égide do fetiche da mercadoria, da fragmentação e da perda do controle da própria produção.
O seu fazer é, como o trabalho, a única possibilidade de humanização ao mesmo tempo em que se desumaniza, essa contradição não é só um desejo, ou uma subjetividade, é uma constante de idas e vindas da história. Construir valores, artes das mais variadas, sob uma perspectiva humanizante, anticapitalista, uma resistência a partir das contradições, podemos afirmar dessa tarefa hercúlea.
Os movimentos sociais, a produção e consumo cultural estão hegemonizados hoje pela sanha da ação capitalista com conseqüências concretas: morte das populações pobres, jovens negras e negros, aumento da miséria, empobrecimento da crítica, perda de direitos classistas, negacionismo da ciência, obscurantismo em geral, mas ao mesmo tempo que essa marcha se firma as respostas, ainda insuficientes, reaparecem com novas matizes, novas radicalidades impostas pela necessidade de se aplacar um sistema de morte, da perversidade que retira ou só abre subalternamente o direito de decidir o que produzir, como, para quem, para satisfazer as necessidades dos seres humanos, seja de qual tipo for, do estômago ou da fantasia, de construir a sua liberdade.
Depois da derrota da Comuna de Paris, Marx escreveu: “A revolução foi derrotada. Viva a Revolução!” Não temos outra opção frente à organização de morte capitalista, destruí-la. No meio desse momento sórdido, construímos, teorizemos revolucionariamente pela nossa criação, pelas nossas necessidades, pela nossa liberdade, lutemos.
