
É Findi - A Cadela Pandora - Crônica, por Romero Falcão*
14/06/2025 -
Lembranças e Reflexões de Um Cão Velho
Um Cão Incorruptível na Essência Animal
Aqui estou no meu canil. Amarrado pela corrente da velhice, a qual arrebento com a terna força dos cães da época de Pandora - a cadela da minha infância - e não com os pets de hoje, transformados em bibelôs cuja natureza foi corrompida, subjugada pelas carências, caprichos, vaidade de uma sociedade perturbada. Submetidos às neuroses humanas. Gilberto Gil na sua prodigiosa composição, "Se eu quiser falar com Deus". Diz num trecho: "Se eu quiser falar com Deus, tenho que virar um cão". Mas um cão de verdade, feito Pandora. Livre da coleira ostentação, de "subir aos céus sem cordas pra segurar". Talvez seja isso mesmo. Não conseguimos nos aproximar do mistério divino pela razão, racionalidade, porém, podemos ter êxito através do instinto animal. O pet quanto mais íntimo do homem, mais longe de Deus. Da mesma forma, escrevo esta história, não com a mão, e sim com a pata, os olhos, a natureza de cão, de um cão incorruptível na sua essência animal.
Ninhada sem Pedigree
Era início dos anos 60, morávamos no Bairro Novo, a 200 metros da bela, limpíssima, idílica praia de Olinda. Fui o último a completar a ninhada da família sem pedigree, mas com dignidade. Uma barriga difícil, complicada, não programada, crescera numa mãe de idade avançada. Mas eu nascera, lati saudável para o mundo, contrariando os crânios da medicina. Tomara gosto pelo azul do mar, o calor do sol. Virara cão de praia. Enterrei as patas na areia branca, cavei buraco, aprendi a nadar cachorrinho, cheirar com nariz de cachorro. A praia era berço, brinquedo. As ondas me alegravam. Agitavam a imaginação, quando perguntara aos meus irmãos se a espuma das ondas era da pia dos peixes após escovarem os dentes?

O Mais Brilhante Intelectualmente
Muito pequeno, com três anos de idade, uma cadela "me sorriu latindo". Chegara aos Falcões pelas mãos do acaso. Acompanhou minha tia ao saltar da lotação, caminhou atrás dela até o portão, numa visita de domingo. Com sede, palmo de língua de fora. Na calçada, mamãe lhe dera água, carinho, carinho sem excessos, claro. Ela permaneceu sentada no portão pelo lado de fora. A determinação, insistência no endereço da gente comoveu a patriarca, que abriu o portão.Ela passou , foi direto pra mim no quintal. Fez festa agitando o rabo, me afagou com a língua, como quem lambe a cria. Mamãe e meus irmãos acharam curioso a empolgada, inesperada euforia. Um cão de rua que nunca me viu. Mal sabiam que seria meu anjo de guarda. O estado era bom: limpa, bem tratada, provável que tivesse fugido de alguma residência. A cadela era bonita. Pelo branco, curto, batido, com manchas cor de mel espalhadas pela cabeça, pescoço. Vira-lata que cativou todos nós. Recebeu o nome de Pandora. Não lembro quem escolheu. Deve ter saído do meu irmão mais velho, o mais brilhante intelectualmente.
Morder e Soprar
A cadela me adotou, empolgou o filhote. Sempre de olho, cuidadosa. Seguia aonde eu fosse; em casa, na campina , deserto coqueiral de Olinda. E foi num decisivo dia que provou sua guarda materna. Talvez eu nem estivesse aqui se não fosse ela. Num certo dia ensolarado, meu irmão botou o calção no pirralho de quatro anos, levou -me, como de costume, para a praia. Pandora ficou em casa. Lá ele encontrou uns colegas, resolveram jogar bola. Permaneci brincando na areia. Daí uma mulher passou por mim com um menino segurando pela mão - a memória registra com precisão: negra, vestido branco, carregando lenha num saco. Ela me chamou, fui atrás dos dois. Meu irmão distraído, nem percebeu que eu me afastava, ia embora com a tal mulher. Cada vez mais longe, me distanciara, brincara com o menino, talvez isca para as más intenções. De repente Pandora surge na praia, atrapalhando a pelada, aflita, latindo pra meu irmão, perguntando por mim. O instinto animal intuiu o perigo. Meu irmão não deu bola. Ela farejou os quatro ventos, encontrou meu faro, partiu em desabalada carreira. Ao me ver levado pela ladra de menino, acuou a desconhecida, mostrou os dentes, não estava pra brincadeira. Foi aquele alvoroço na beira da praia, mesmo deserta, os incessantes latidos de Pandora chamou atenção, surgiu gente, desconfiaram da estranha cena. Nessas alturas meu irmão já me procurava. Foi para um lado e os colegas no sentido oposto, estes de longe viram a aglomeração, ouviram os latidos da cadela. Correram, me tiraram dali. Eu estava salvo. E pandora a olhar preocupada o bichinho, que já latia, mas ainda não sabia a lei dos homens-morder e soprar.

Inocente Esperança
Relendo Memórias Póstumas de Braz Cubas, o livro do defunto escritor , pelo gênio de Machado de Assis, recordei com afeto a minha Pandora, ao ler o diálogo de Braz Cubas com a natureza filosófica da literatura do bruxo carioca:
-Quem és?
-Chamo-me natureza ou Pandora, sou tua mãe e inimiga.
Machado de Assis fez um contraponto com a caixa de pandora da mitologia grega. A caixa que guardava o mal e a esperança.
Pandora, a cadela, se fez mãe de uma caixa encefálica de infante que guardara inocente esperança na humanidade.
*Romero Falcão, é um cronista que se arrisca a fazer poema torto, autor do livro: Asas das Horas, com prefácio do Prof. José Nivaldo.
