
Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito –11 - Culturas, Espiritualidade e Religião Por Marcelo Barros*
16/06/2025 -
Mesmo que seja de forma dialética, diversas compreensões de cultura convivem e se complementam. Na primeira parte do século XX, Ashley Montagu considerava como cultura o modo como as comunidades humanas respondem às necessidades básicas do grupo e, ao reagir aos desafios da realidade, organizam a vida.
Em décadas mais recentes, se tem compreendido a Cultura como a organização simbólica do mundo, ou a dimensão simbólica expressiva da vida social. “Cultura é o conjunto de sentidos e significados, de valores e padrões, incorporados e subjacentes aos fenômenos perceptíveis da vida de um grupo social concreto. Consciente ou inconscientemente, este conjunto é vivido e assumido pelo grupo como expressão própria de sua realidade humana e passa de geração em geração, conservado assim como foi recebido ou transformado efetivamente pelo próprio grupo”.
Nessa compreensão, a Religião faz parte da cultura. “É um fenômeno social que reflete a cultura e também um campo de exploração e memória. A religião é constituída por mitos, rituais e comportamento. Pode-se falar em uma constelação formada por mito, ritual e práxis.
A religião seria, então, entre outras possíveis definições, uma estrutura de discursos e práticas comuns a um grupo, referentes a algumas forças (personificadas ou não, múltiplas ou unificadas) tidas pelos crentes como anteriores e superiores ao seu ambiente natural e social, frente às quais os crentes expressam certa dependência (criados, governados, protegidos, ameaçados etc.) e diante das quais se consideram obrigados a um certo comportamento em sociedade com os seus “semelhantes”.
1 – Religiões e Espiritualidade
Nenhuma definição fechada dá conta da imensa diversidade do fenômeno religioso. “Não é fácil descrever a religião como fenômeno humano. Não existe um conjunto fixo de características da religião que se aplique a todas elas. Deparamo-nos com certo número de elementos não comuns a todas. Algumas são mais frequentes, outras mais isoladas...” .
O Cristianismo é religião, o Islã e a Umbanda também, assim como as tradições xamânicas de povos indígenas da Amazônia. Mas, o modo delas serem religiosas é muito diverso uma da outra.
Estas diferenças não podem ser explicadas através de distinções preconceituosas. Não é o caso de distinguir religião e religiosidade. Nem parece justo classificar uma de religião e a outra de seita. Nas primeiras décadas do século XX, alguns teólogos cristãos (evangélicos) como Karl Barth (1886- 1968), Paul Tillich (1886- 1965) e Dietrich Bonhoeffer (1906- 1945) sublinharam a diferença entre religião e fé.
Já pela etimologia do termo, religião parece vir do latim religare ou reeligere e expressa o esforço humano de se ligar ao Mistério Divino. Ao contrário desse movimento, a fé seria a adesão a uma revelação pela qual o Divino se apresenta no mundo. Isso levava alguns a falar da religião como fenômeno de alguma forma sempre idolátrico (Barth), enquanto Bonhoeffer propunha se viver a fé de forma não religiosa “etsi Deus non daretur”, ou seja, “como se Deus não existisse”.
Na quarta parte da Teologia Sistema?tica, “A vida e o Espi?rito”, Tillich define a religia?o como autotranscende?ncia da vida. De acordo com esta definic?a?o, na?o deveria haver religia?o, individual ou organizada, como esfera especi?fica ou func?a?o particular do espi?rito. Todo ato da vida deveria em si mesmo apontar para ale?m de si, e nenhum ato especificamente religioso deveria ser necessa?rio. Mas, como em todos os a?mbitos da vida, a profanizac?a?o no a?mbito do espi?rito resiste a? autotranscende?ncia.
Grande conquista
A grande conquista deste movimento teológico foi recolocar a religião em seu lugar como expressão cultural, portanto, humana e passível de evolução e de transformação (Alguns teólogos ao dizerem que a Igreja tinha sido fundada pelo próprio Jesus a colocavam como divina). É claro que tanto a religião, como a própria fé como algo mais amplo – resposta humana a uma vocação mais profunda – estão sempre situadas dentro da cultura.
Atualmente, defendemos um Estado laico, independente de qualquer religião, mas que ao mesmo tempo compreenda que a dimensão religiosa faz parte da cultura e, portanto, possibilite o exercício livre das mais diferentes expressões religiosas e promova o diálogo entre elas a serviço da paz, da justiça e do cuidado com a Terra.
Nas sociedades contemporâneas, há uma tendência a considerar religião como elemento restrito ao íntimo de cada pessoa. É como se a cultura capitalista quisesse privatizar até a religião que por sua natureza é elemento social e comunitário.
De todo modo, o importante é que, nas últimas décadas do século XX, se tem trabalhado mais a distinção entre religião e espiritualidade. Antigamente se considerava espiritualidade como quase sinônimo de religiosidade ou mesmo de pertença a uma religião organizada. Hoje, cada vez mais, a espiritualidade é compreendida como “toda a orientação que encontra sua centralidade na realidade-vida, tomada em seu sentido mais amplo e globalizador possível, como é o espírito no universo. É uma expressão da espiritualidade a dignificação de toda a vida, de sua promoção e defesa”.
“Espiritualidade significa viver segundo a dinâmica profunda da vida... como diálogo com o eu profundo, com o mistério que nos habita e que chamamos Deus, mediante a interiorização e a busca do próprio coração”.
Atualmente, a Espiritualidade é compreendida em um sentido antropológico, como dimensão humana universal. É a amorosidade tomada como princípio de vida e de postura permanente da pessoa e das comunidades, em relação ou não com alguma tradição religiosa da humanidade. Ken Wilber, filósofo norte americano, chama isso de “visão integral” ou de um processo existencial que nos faz passar de um estádio egóico a um estado etnocêntrico e finalmente a uma visão e postura de tipo cosmocêntrico”.
Esses caminhos de espiritualidade são diversos. Alguns se situam dentro da fé em um Deus pessoal e outros vivem uma Espiritualidade sem recorrer à existência ou não de Deus. Para quem acredita em Deus, sem dúvida, a espiritualidade toma a dimensão de deixar-se conduzir pelo Espírito que habita em nós e se manifesta no mais íntimo de cada ser humano que assim se torna mais capaz de amorosidade e solidariedade.
Nesse caso, a Divindade pode ser compreendida como sendo alguém ou tendo uma dimensão pessoal – assim acreditam as pessoas teístas. Entretanto, para quem é ateísta no sentido de não crer em um Deus como alguém pessoal independente do eu humano (não se trata de ateu), Deus seria uma dimensão de nós mesmos. Nesse caso, a espiritualidade seria um aprimoramento do diálogo interior de cada pessoa consigo mesmo.
Espiritualidade é acessar dentro de nós o que há de melhor em nós mesmos, os valores mais humanos que recebem. Trata-se, assim, de uma dimensão de transcendência, no sentido de que, mesmo no plano simples ou imanente de cada dia, a espiritualidade sempre aponta para algo mais amplo e que vai além de nós mesmos.
2 - Diversidade nos caminhos espirituais
A forma de viver esse caminho se realiza através de uma grande diversidade. As experiências espirituais dependem da pluralidade das culturas que as pessoas vivem e nas quais se expressam. Mas, essa diversidade é também uma forma do próprio Espírito se expressar. É como se Deus falasse diversas línguas ou tomasse rostos diversos de acordo com cada povo ou cada cultura.
Assim, a diversidade se torna, de certa forma, atributo da própria divindade. O caminho espiritual do Pluralismo Cultural e Religioso nos deve fazer encontrar esta unidade na diversidade no próprio ser divino.
A diversidade é boa e santa porque a própria vida, em si mesma, é diversificada. Conforme a Convenção sobre Diversidade Biológica, a “biodiversidade” não é somente a variedade de organismos vivos que existem na terra, nas águas e no ar. É mais do que isso. É a complementaridade e relação que existe entre eles. A vida se forma quando diversos micro-organismos interagem e compõem uma rede complexa que forma o corpo vivo de uma planta ou animal. Para viver, cada ser depende da sanidade do seu organismo, mas também de uma rede da vida, o que se chama “ecossistema”.
A biodiversidade é um conceito novo para a ciência, mas desde antigamente as culturas ancestrais contemplam um princípio unificador, presente na diversidade dos seres vivos. Os índios do Xingu dizem que o Espírito das águas repousa na floresta e o Espírito da floresta se refaz nas águas do rio.
Comunidades afrodescendentes falam de Axé como a energia divina, presente em manifestações muito diversas como fonte de amor e alegria. Nenhum grupo pode viver sem integração com os outros.
Esta conexão tem uma dimensão antropologicamente espiritual. É uma dimensão na qual cada cultura não se pensa de forma autossuficiente, mas como interligada às outras. A religião pode servir como método para nos tornar mais humanos. Podemos chamar isso de “hierodiversidade”. Essa hierodiversidade atravessa as comunidades religiosas, mas vai além das religiões. Permite viver a fé sem se fechar em um sistema.
3 – Espiritualidade e cidadania cultural.
Marilena Chauí elaborou o sentido de uma cidadania não somente social e política, mas também cultural. Ela afirma: “A cidadania cultural define o direito à cultura como: 1 – direito de produzir ações culturais, isso é, de criar, ampliar, transformar símbolos, sem reduzir-se à criação nas belas-artes. 2 – direito de fruir os bens culturais, isso é, recusa da exclusão social e política. 3 – direito à informação e à comunicação, pois a marca de uma sociedade democrática é que os cidadãos não só tenham direito de receber todas as informações e comunicar-se, mas têm sobretudo o direito de produzir informações e comunicá-las.
Portanto, a Cidadania Cultural põe em questão o monopólio da informação, e da comunicação pelos mass media e o monopólio da produção e fruição das artes pelas classes dominantes. 4 – direito à diferença, isso é, a exprimir a cultura de formas diferenciadas e sem uma hierarquia entre essas formas”.
Esse processo humano tem de ser central no esforço educativo das escolas, universidades e de toda a sociedade que precisa atingir uma formação integral para uma convivência mais sadia e fecunda. Já em 1965, portanto há quase 50 anos, Paulo Freire escrevia: “O ser humano é um ser de relações e não só de contatos.
Não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é. (...) No jogo constante de suas respostas, no próprio ato de responder, a pessoa vai mudando a si mesma. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. (...) Nas relações que o ser humano estabelece com o mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria singularidade. (...).
E também há uma nota presente de criticidade. Ademais, é o ser humano e somente ele é capaz de transcender. A sua transcendência, acrescente-se, não é um dado apenas de sua qualidade “espiritual” (...). A sua transcendência está também para nós, na raiz de sua finitude. Na consciência que tem dessa finitude. Do ser inacabado que é e cuja plenitude se acha na ligação com seu Criador (ou para os que não creem em Deus, na relação íntima e misteriosa com o mistério mais profundo que dá sentido à sua vida)”.
Esse mesmo tema da transcendência volta em uma conferência que, em 1995, Dom Hélder Câmara deu a professores e alunos da Universidade Federal de Pernambuco: “Para o equilíbrio do mundo, é importante que a Universidade readquira o seu papel de salvaguarda de valores permanentes que vêm correndo o risco de serem jogados fora, quando do necessário despejo de tabus intoleráveis. (,,,) É urgente que a Universidade cresça em sabedoria para contrabalançar os extremos a que está levando a Técnica... Tenho a confiança de pedir-vos a criação de uma cátedra dos Transcendentes, isso é, as riquezas espirituais, que ainda mais iluminarão a caminhada dos jovens...”
Com suas palavras, Dom Hélder se referia ao que ele chamava “três sedes sagradas”, dentre outras: a sede de colocar sentido mais profundo ao que vivemos cotidianamente, dar um sentido transcendental às lutas da vida; a sede de viver em cada relacionamento humano a experiência da nossa vocação para o amor solidário. Esse amor assume a eroticidade como algo positivo e humano, mas a plenifica com um amor de cuidado e generosidade gratuita que o grego antigo chama de agapé e, no plano interpessoal, chamamos simplesmente de ternura e no plano social de solidariedade.
Nos diversos caminhos e escolas espirituais, propostos pelas tradições religiosas, encontramos pessoas que vivem a espiritualidade nos mais diversos níveis. Há aquelas que confundem espiritualidade com autoajuda e cuidado do próprio eu. Há muitas com uma fé dirigida a uma divindade fora de nós e fora do mundo.
Às vezes, procuram adeptos. Há formas de espiritualidade elitista e sectárias que se posicionam como um pequeno resto de eleitos no meio de um mundo perdido. E, graças a Deus, em todas as tradições e fora delas, encontramos também pessoas e grupos que, pelos mais diversos caminhos e mesmo seguindo os passos de cada tradição religiosa, aprenderam a viver e a praticar essa amorosidade.
Esta proposta implica enraizar-me em minha cultura, mas precisamente para ser capaz de me tornar, como dizia o padre Ernesto Balducci, “um ser humano planetário”. Assim ele explica: “Sem negar nada do que sou, devo intuir uma nova identidade de crente. O ser humano planetário é pós-cristão, no sentido de que a ele não se adaptam determinações que o dividam do comum dos outros seres humanos (...).
A expressão neotestamentária com a qual minha fé melhor se expressa é a que aparece diversas vezes dita por apóstolos e profetas no livro dos Atos e do Apocalipse: “sou somente um ser humano”. (...) Esta é minha profissão de fé, sob a forma de esperança. Quem ainda se professa ateu, ou leigo e tem necessidade de um cristão para complementar a série de representações sobre o palco da cultura, não me procure. Eu não sou nada mais do que um simples ser humano”.
MARCELO BARROS, Moradas do vento nos caminhos humanos, (Para uma teologia da hiero-diversidade), in Revista Concilium, número 1, ano de 2007.
CHAUÍ, M., Cidadania Cultural, Novamérica, n. 82, Rio de Janeiro, 1999, p. 14- 15.
CF PAULO FREIRE, Educação como Prática da Liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967, p. 39- 40.
Cf. DOM HELDER CÂMARA, Palavras e Reflexões, Recife, Editora da UFPE, 1995, p. 58. -
ERNESTO BALDUCCI, L´Uomo Planetario, Brescia, Ed. Camunia, 1985, 1° ed., p. 189 (a história do navio)
Marcelo Barros é padre
