
Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito –13 - Existe uma “cultura pedagógica”? Por Geraldo Barroso
18/06/2025 -
Se considerarmos que cada sociedade, em diferentes momentos históricos, possui concepções e práticas educativas submetidas aos interesses econômicos, sociais e políticos que guiam o seu cotidiano, a resposta será não. Teremos que lidar com muitas e diferentes culturas pedagógicas.
O termo cultura nos remete a algo enraizado, com pretensões à permanência, soterrado por muitas camadas de práticas e representações da vida social. Por vezes até por tempos imemoriais. O termo afirma a permanência e contínua reprodução de patrimônio cultural e de formas de organização social.
E aquilo que é mais permanente nesse campo, o da pedagogia, é o incessante trabalho de socialização que as velhas gerações exercem sobre aqueles que continuamente não param de vir ao mundo e que – diferentemente dos animais irracionais – precisam ser ensinados sobre o que é o mundo que encontram e como devem se inserir nele, mundo “formatado” à imagem esemelhança de seus mantenedores, as velhas gerações.
Todas as sociedades – mesmo as mais primitivas – possuem expectativas sobre o que deve ser ou vir a ser um adulto formado. A configuração de um modelo de adulto é sempre, em qualquer sociedade, o propósito maior que orienta os processos considerados mais adequados de educação das novas gerações.
Por muitos e muitos séculos da história do Ocidente, essa intervenção geracional foi guiada por uma certeza inabalável: os processos educativos – formais e informais – deveriam voltar-se para a manutenção e reprodução fiel do patrimônio cultural acumulado; as novas gerações deveriam manter, de forma obediente e respeitosa, os saberes, crenças e práticas sociais dominantes.
Deveriam reverenciar e respeitar o passado ancestral.Contudo, os anúncios libertários da chamada “Idade Contemporânea”, nomeadamente, oconjunto de esperanças transformadoras presentes no pensamento iluminista, nas Revoluções burguesas e na expansão da “Revolução Industrial”, abalam essa cultura pedagógica fundada na reprodução – sem abalos – do patrimônio social acumulado.
O iluminismo
O iluminismo que se difunde pelo mundo desde o século XVIII afirmava que os indivíduos não deveriam se conformar ao mundo já dado, que não necessitavam aceitar resignadamente seus destinos”, criando a esperança de construção – a partir de iniciativas individuais – de futuros distintos daqueles que estavam previamente formatados. O liberalismo prometia um cotidiano no qual todos poderiam aspirar as posições superiores da hierarquia social, independentemente de sua condição de origem. Até mesmo a escravidão deveria deixar de existir!
Os governantes deveriam ser escolhidos pelo próprio povo, através do voto!Para implementar tais ideais transformadores, para superar a ignorância e a opressão que dominavam num mundo injusto, essa ideologia em expansão apostava num instrumento: a escola pública universal, obrigatória e gratuita.
A disseminação de sistemas públicos de ensino, durante o séc. XIX, seria o mais poderoso instrumento de transformação da humanidade. À instituição escolar caberia a missão de realizar a utopia de uma sociedade na qual os lugares sociais seriam ocupados com base no mérito pessoal, e não em função da condição de nascimento.
Em consonância com essas mudanças de expectativas, novas idéias pedagógicas passam a afirmar que, diferentemente da predestinação, as novas gerações que continuamente vinhamao mundo, poderiam ser portadoras de novos pensamentos, novas atitudes, novas aspirações, preparando novos seres humanos para viver em novos tempos, sob novas regras.
Esse otimismo tem um enorme impacto na produção teórica daquilo que constituía, até então, a “cultura pedagógica”. Aqui, agora, ao invés do respeito absoluto à conformação, à repetição, uma educação voltada para a manutenção ou reprodução da ordem social, difundia-se uma esperança de “emancipação” dos seres humanos. Mudar o “destino”, mudar o futuro, transformar o mundo!
A educação escolar passou a ser propagandeada como a solução mais adequada para superaros “defeitos” daquele mundo que se desejava transformar, como o espaço social designado para superar as desigualdades sociais de origem, corrigir injustiças, distribuir cultura. A contínua expansão das matrículas em estabelecimentos públicos de ensino gera, entre as classes populares, sonhos de ascensão e de prestígio social, superando as “adversidades da pobreza”.
Paralelamente, um pensamento educacional “progressista” convencia o corpo social que a escola pública universal era uma ferramenta para a emancipação humana, para a construção de sociedades renovadas, menos desiguais e de seres humanos mais autônomos.
Segundo esse imaginário otimista, a educação escolar passa a ser responsabilizada pelo “desenvolvimento” da economia (divulgação dos avanços científicos/tecnológicos e formação de mão-de-obra qualificada para inventar e operar o maquinário), pelo aperfeiçoamento da vida política (formando eleitores e dirigentes mais “preparados”) e pelos processos de mudança social (superação da condição social de nascimento através do esforço intelectual e dos talentos ou “méritos” possuídos pelos indivíduos).
Nessas circunstâncias, a instituição escolar passa a ter um valor social que ela nunca havia tido até então; ela é propagandeada como uma espécie de “remédio” capaz de resolver praticamente todos os problemas existentes na sociedade (pobreza, ignorância, violência doméstica, alienação, etc.).
Mas, como nenhuma cultura pedagógica é tão sólida que possa ficar acima das transformações que ocorrem na dinâmica da vida social, no séc. XX, especialmente nas suas últimas décadas, mudanças sociais, econômicas e culturais associadas a um mundo globalizado, colocam em cheque a dominância dessa nova e esperançosa pedagogia que prometia futuros radiantes para todos.
As demandas de um mundo em acelerado processo de globalização abalam essa utopia educativa. O sentido humanista – herdado do iluminismo – que atribuía à educação escolar toda a legitimidade para inserir as novas gerações no mundo da cultura “adulta” e oferecer-lhes oportunidades de uma inserção ativa na vida econômica, social e cultural sofrerá abalos.
Novas gerações
Desde as últimas décadas do séc. XX, as novas gerações passaram a dispor, cada vez mais, de meios de informação - que, por seu poder de insinuação, tornam-se meios de formação e de socialização – tais como a televisão, o cinema e a internet. O uso de tecnologias cada vez mais complexas, a quantidade crescente de informações que circula por outros meios que não o escolar, começa a interferir nas pessoas e nas instituições, nos comportamentos e nas reflexões possíveis (ou impossibilitadas) pelo fluxo incessante e vertiginoso (em tempo real) de informações.
Os meios de comunicação de massa assumem um enorme poder socializador. A internet diminui distâncias e supera fronteiras. A distância entre o mundo que os meios de comunicação mostram e a aldeia, o local, é tão grande que tem um efeito desestruturador sobre a tradição cultural. As mídias instituem e difundem novos interesses, novos símbolos, novas identidades, criam novos objetos de desejo.
Além desse aspecto cultural, a instituição escolar descobre a sua impossibilidade de sustentar- se como meio de ascensão social pois, à medida em que os sistemas públicos de ensino democratizam a sua base (o ensino fundamental obrigatório) os distintivos sociais antes associados a estes níveis de escolarização desaparecem e são “lançados adiante”, para níveis superiores do sistema de ensino que permanecem inacessíveis à maioria da população, provocando frustrações e desencantos diante de promessas não cumpridas.
No século XXI, os esforços exigidos para o cumprimento de trajetórias escolares mais prolongadas são cada vez menos compensadores, já que não há como garantir posições econômicas e sociais de prestígio às multidões de jovens que, continuamente – convencidos que são dos benefícios decorrentes de uma escolarização mais prolongada - finalizam a escolaridade obrigatória e almejam inserir-se como adultos produtivos – e bem remunerados - no mercado de trabalho!
Esses são apenas alguns dos impasses que marcam o pensamento pedagógico os dias de hoje. A crença ilimitada nos poderes redentores da educação escolar está sendo abalada pela perplexidade, pelas interrogações, pelas incertezas. Não existe uma pedagogia que, hoje, possa afirmar – sem contestação - o que o ser humano é ou deveria ser ou atestar conclusivamente sobre as formas “corretas” de se chegar – através da educação – a um ser humano aperfeiçoado.
Então, qual o suporte teórico que está amparando os docentes no seu trabalho cotidiano nasescolas? Que promessas os professores podem fazer aos seus alunos? Que futuros radiantes eles podem traçar? Em que pedagogia os professores podem se amparar e buscar respostas diante de tantas incertezas?
Arriscando uma (in)conclusão:
A submissão das novas gerações à frequência compulsória dos bancos escolares se defronta, permanentemente, com desejos de permanência e impulsos de mudança. O projeto das gerações precedentes de educar as novas gerações para preservar a ordem social e o patrimônio cultural acumulado opera sobre uma base absolutamente imponderável que é o processamento realizado, pelo sujeitos educáveis, dos impulsos originados dos seus educadores.
O impulso irresistível das gerações precedentes é que as novas gerações adotem o mundo tal qual ele foi ‘’formatado’. A tarefa maior é transmitir o patrimônio sócio cultural tal como imaginam que ele deve ser preservado.
Mas não há absolutamente nenhuma garantia de que as audiências cativas, prisioneiras do mundo escolar, irão aceitar o mundo que lhes está sendo proposto tal como é.
A forma como o'patrimônio cultural é recepcionado pelas crianças e jovens não pode ser assegurada prévia e universalmente, porque os sujeitos educáveis são dotados de curiosidade, desenvolvem o hábito da dúvida, fazem questionamentos, expressam resistências – surdas ou explícitas – à inculcação e ao disciplinamento. São reações que emergem, no seio das novas gerações, à revelia dos mantenedores da tradição.
O processo educativo carrega, assim, uma tensão permanente entre o poder da tradição na direção da transmissão, de forma mais integral possível, do patrimônio cultural e das regras de conduta dominantes e os impulsos na direção contrária, pela ruptura, pela inovação, pela recusa das novas gerações em partilhar o mundo tal como ele é transmitido pelos mais velhos.
Há aqui uma tensão permanente e insuperável entre, de um lado, a segurança do conhecido, do controlável, o desejo de preservar, de manter o que está posto e, de outro, representado na figura do aluno, a resistência, a dúvida, a contestação, o desejo da mudança, da incorporação do novo ao patrimônio existente. O futuro previsível, controlável, versus a incerteza quanto aos resultados desse processo.
Nessa dinâmica, a cultura pedagógica dominante não cessa de ser colocada em questão. Os mantenedores da ordem social buscam educar indistintamente para a semelhança e a concordância. Mas, apesar de fortes, eles não tem como evitar o surgimento de indivíduos insatisfeitos, desviantes, resistentes; sujeitos dotados de imaginação, desejos ou frustrações que se colocam em rota de colisão com aquilo que está estabelecido.
Em determinadas conjunturas, nenhuma repressão sistemática, censura permanente ouviolência institucionalizada é capaz de evitar a emergência desse impulso de contestação às regras sociais e à tradição cultural. Nenhuma pedagogia é para sempre....
