
'Homem Com H', O Filme de Ney Matogrosso - Crônica, por Romero Falcão*
25/06/2025 -
Tempos Difíceis
Lembro, cursava o primeiro grau - atual fundamental - quando um aluno falou da música, o Vira - Secos e Molhados - que na voz de Ney Matogrosso estourara nas rádios, nas paradas de sucesso, ultrapassando mais de um milhão de discos vendidos. Logo, o menino fora repreendido pelos colegas: “isso é música de bicha, o Vira é pra quem quer virar bicha." O garoto só faltou bater na boca três vezes, acusara o golpe preconceituoso. Esse fato ocorreu na década de 70, época de repúdio violento contra os homossexuais. Era chaga terrível quando a família descobria uma criança com trejeitos afeminados. Geralmente o pai no alto grau do machismo, jogava a cria - saída da adolescência - na rua, ao passo que a mãe ficava pra morrer. Eram tempos difíceis, rapazes envergonhados se puniam até o extremo, a ponto de praticarem suicídio.

"A Rosa de Hiroshima"
Cresci sem me interessar pelo trabalho de Ney Matogrosso, talvez carregando a intolerância da infância. Rejeitando o artista que sacudia os quadris em excesso. No entanto, certa vez lá em casa, nos meus 17 anos, fui surpreendido pelo meu tio, linha dura, major do Exército, altamente culto, com tal comentário: “É um grande artista”. Aquilo soou em mim como alarme. Passei a vê-lo pela televisão com outros olhos, mas conservando reservas. Lá para os vinte e poucos anos - os livros quebrando Iceberg no meu cérebro até então linear, limitado - fui capaz de ver além do requebrado de um corpo, pude enxergar o clarão transmitido pela exuberante criatura no palco. O profundo poema de Vinícius, "A Rosa de Hiroshima", interpretado por Ney nos Secos e Molhados, me hipnotizou. Aquela voz na tragédia do Japão, o fenomenal poeta e o fabuloso cantor nos levam a refletir sobre a bomba atômica - o pesadelo dos nossos dias.

Nobreza de Alma
Perdi o filme, Homem Com H, no cinema, ganhei a tarde diante da película na Netflix. O ator Jesuíta Barbosa tem atuação magnífica ao encarnar por dentro e por fora, o físico, a coreografia, as minúcias dos gestos, o olhar de fogo, a leveza e rebeldia do Homem com H. Fiz pipoca, intensifiquei o foco. Enquanto assistia emocionado, paralelamente escrevia esta crônica na mente. Longe dos meus vinte e poucos anos, este cão velho viu a grandeza de um Homem com H. Não com o H da força de Sansão, da coragem que desafia o perigo. Não é Davi enfrentando Golias. É um homem que se fez gigante perante a vida. Não é a força dos músculos dos gladiadores que exigiam respeito, do "macho em grito de gozo". Não, não é essa a força de Ney, é a nobreza de alma que se projeta em brilho estelar na escura noite. É a força de não fazer concessões, as quais corrompessem sua essência, integridade. É a força de não se deixar dobrar pelo dinheiro. É a força de conservar o espírito livre até as últimas consequências. Ney nunca desejou um porto seguro, encarou e venceu mares furiosos. O filho do militar da Aeronáutica voou como um pássaro altivo, se chocando com o aço do patriarca, entretanto, nunca recolhendo as asas, pelo contrário, suas respostas desconcertantes, forjadas pela bravura de um homem que jamais se intimidou com ataque paterno, muito menos com a artilharia de quem quer que fosse na tentativa de calar seu canto, podar o tronco artístico inquebrantável.
Valentia dos Leões
Fora da luz da ribalta, do prestígio, da fama, Ney é mais que um dom, é humano, acolhedor, amigo na doença incurável, carimbada moléstia dos gays - nos anos 80 - a AIDS, que todos fugiam léguas. Até nessas aterradoras e solitárias horas, o Homem com H dá um show de humanidade, revela o cristão puro, límpido feito cristal raro. Mas atenção, é preciso arrancar a máscara do moralismo, tirar todas as camadas que nos cegam, reduz o espírito do homem à medida da nossa régua. Por outro lado, achei desnecessário as demasiadas cenas de sexo na tela. Afinal, a história de Ney Matogrosso - que poderia ter sido melhor explorada - é infinitamente maior do que um carrossel de camas. O pai, no fim da vida, doente, assistido pelo filho espancado, escorraçado no passado,agora famoso, pede desculpas, reconhece tal qual meu tio reconheceu: “Meu filho, tu és um grande artista." Refazendo as palavras do meu colega ginasial. O Vira não é pra quem quer virar bicha. O Vira é um bicho pra quem tem envergadura de rosnar com a valentia dos leões.

*Romero Falcão, cronista, autor do livro: Asas das Horas, com prefácio do Prof. José Nivaldo

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