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Declaração - O Amor que Venceu Tempos de Tormenta por Marcelo Santa Cruz*

26/06/2025 -

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Carol, minha eterna e querida namorada.
Segunda-feira passada, 23/06/2025, completou 60 anos que iniciamos um despretensioso namoro em uma festa junina, em Olinda. Pretendo, nesta oportunidade, escancarar o recôndito dos meus sentimentos. Passados todos esses anos, constato que nem tudo foram flores: houve muitas vicissitudes, vencidas com muito amor e destemida coragem - sempre com enorme cumplicidade e incomensurável compreensão.

Amor reprimido

Nos anos de chumbo da ditadura civil-militar, era difícil manter, por vontade própria, um relacionamento amoroso por muito tempo. A repressão era impiedosa; militante político que fazia resistência à ditadura estava proibido de amar. Compulsando os registros dos órgãos de segurança, revelados pela Comissão da Memória e Verdade, observa-se que o relacionamento entre dois jovens poderia colocar em risco a segurança nacional do país.
Muitas vezes, esse relacionamento era obstruído pela delação, prisão, tortura, morte, exílio ou, simplesmente, submetido à terrível clandestinidade, como única forma de possibilitar o exercício da atividade política ou, ainda, o recurso que restava para escapar da perseguição, permitindo sua sobrevivência. Para isso, o relacionamento era cancelado; assumia-se outra identidade - que nem mesmo a própria família poderia saber, por questão de segurança.





Documento inacreditável

Revela-se, perante a história, o que consta em prontuário na Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, depositado sob a guarda e responsabilidade do Arquivo Público Jordão Emerenciano:

-30/08/1965 - Interrogado pelo temido delegado de polícia Álvaro Gonçalves da Costa Lima, acusado de pertencer ao Clube Literário Monteiro Lobato, de infiltração comunista. Prontuariado sob o número 17.106.
-19/06/1968 - Desta vez, interrogado pelo truculento delegado de polícia Moacir Sales de Araújo. Segundo o próprio delegado, eu: “havia aliciado minha namorada para o comunismo; estava viajando a ‘serviço’ por todo o país; servia sob orientação de uma ordem religiosa de Olinda/PE; um dos locais de reunião era o Mosteiro de São Bento; o dinheiro para isso vinha de Cuba; era estagiário da Sudene”.

Ditadura alucinada

Essa mesma estapafúrdia anotação é reproduzida no Informe nº 0169/CISA-ESC-RCD, do Ministério da Aeronáutica - Gabinete do Ministro.
14/11/1969 - Consta anotado: esta delegacia (DOPS/PE) “recebeu a Circular 7/69, do M.E.C. (Ministério da Educação e Cultura), comunicando o desligamento do epigrafado da Faculdade de Direito da UFPE, por se achar incurso no Decreto-Lei nº 477/69; teve a matrícula suspensa em 23 de setembro de 1969, pelo período de três anos. ”





Amor além mar

Experimentamos o nostálgico namoro à distância, consequência do exílio (1969/1971). Regressando ao Brasil, cheios de saudades e perdidamente apaixonados, resolvemos celebrar nossa união pelo casamento, em 18/02/1971. Permanecemos exilados - desta vez, em nosso próprio país - na cidade do Rio de Janeiro (1971 até 1981).
Foram tempos difíceis. Retomei o curso de Direito na Faculdade Cândido Mendes, onde cursei o 4º e o 5º ano. Participamos da luta política no Comitê Brasileiro pela Anistia/RJ, destacando a solidariedade aos companheiros e companheiras presos (as) e perseguidos (as).
Sofremos com o sequestro e prisão de minha irmã Rosalina e de seu companheiro, Geraldo Leite, ambos brutalmente torturados.
Finalmente, deparamos - muito de perto - com o lado mais perverso da repressão: o “desaparecido político”.

Como a ditadura "desaparecia" as pessoas

Em 08/10/1973, estava hospedado em nossa residência Umberto Albuquerque Câmara Neto, jovem pernambucano, ex-estudante de Medicina da UFPE, expulso pelo Decreto-Lei 477/69 e dirigente da APML. Perseguido e procurado pelos órgãos de segurança do país, foi sequestrado e assassinado sob tortura, com ocultação de seu cadáver.
Em 20/02/1974, comemoramos o aniversário de 26 anos do meu querido e estimado irmão Fernando, estudante de Direito da Universidade Federal Fluminense -UFF e, recém-nomeado naquela época, servidor público do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo. Estava radiante de felicidade com o nascimento de seu filho, Felipe, que dava seus primeiros passos e interagia com seu linguajar de criança. Felipe tinha 1 ano e 10 meses quando, em 23/02/1974, Fernando e Eduardo Collier foram sequestrados no Rio de Janeiro. Assim, passaram a fazer parte da extensa relação dos desaparecidos políticos, assassinados sob tortura pela ditadura civil-militar.

Ditadura sem limites

O perigo rondava muito de perto. Na busca de obter esclarecimentos sobre as circunstâncias do desaparecimento de Fernando, fui sequestrado pelo DOI/CODI-SP, junto com minha irmã Rosalina, seu companheiro Geraldo Leite e o filho pequeno deles, nosso sobrinho André, com 4 meses de idade, que foi ameaçado de ser jogado do 6º andar do apartamento que eles moravam.
A partir da violência a que André foi submetido, e com o nascimento de nossa filha Flávia, aflorou o sentimento maternal, que fez com que Carol ficasse na retaguarda, tal como uma leoa protegendo sua cria das aves de rapina. Vieram outros filhos e os netos; a militante aguerrida e ousada desapareceu, sem deixar de apoiar e estimular minhas atividades políticas pelos direitos humanos e pela democracia.

Sobreviventes

Fernando era muito mais do que irmão; ele começou o namoro com sua companheira Ana Lucia - irmã de minha querida Carol – com apenas 1 mês de diferença em relação ao início do meu namoro com Carol. Participávamos da mesma luta política.
Carol, somos sobreviventes. Fomos demitidos e excluídos de vários empregos. Lembro-me de quando você foi excluída de uma pesquisa na Central do Brasil, sob o argumento de que se tratava de área de segurança nacional. Constou ainda que você contribuía financeiramente com a APML.
O balanço que faço de nossa trajetória é este: você é uma mulher incrível. Renovo as juras de amor sussurradas tantas vezes no verdor da minha juventude e declaro agora, na maturidade da vida, que você foi e será sempre minha eterna querida namorada, até meu último suspiro de vida.
Sou eternamente grato pela sua coragem e paciência por tudo que passamos. Sem sua solidária companhia, não teria suportado as adversidades da vida.





O amor vence tempos de cólera

Invoco, como testemunho dessa declaração, nossos queridos filhos Fernando, Gabriel e nossa adorável filha Flávia, além dos meus genros Ricardo e Rodrigo, minha nora Marcília e, em especial, nossos amados netos e netas Maria Luiza, Sofia, Mateus e Marcelinho.
Mil beijos calientes.

E hoje

Plagiando Cora Coralina, o melhor que poderia dizer após 60 anos de convivência :
Carol, “você é aquela mulher a quem o tempo muito ensinou.
Ensinou a amar a vida e não desistir da luta, recomeçar na derrota, renunciar as palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos e ser otimista.”

*Fernando Santa Cruz é advogado e ativista dos Direitos Humanos.

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