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Ensaio - A Guerra Invisível: Por que a Luta Ideológica é a Mais Importante e a Mais Difícil de Vencer

27/06/2025 -

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Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

1. Preâmbulo - Burocracia: Conquista Civilizacional, Risco Existencial

Antes de tudo, é preciso deixar claro: não sou contra o capitalismo, nem contra a burocracia.

Tampouco demonizo o mercado, o Estado ou a técnica. Todas essas estruturas — com suas imperfeições e suas potências — foram ferramentas fundamentais da civilização.

São instrumentos poderosos que permitem organizar a vida coletiva, proteger contratos, estimular a inovação, impedir arbitrariedades. Sem elas, a barbárie voltaria a se instalar com rapidez.

A organização da sociedade é uma das maiores conquistas da espécie humana.

Desde os tempos em que éramos caçadores-coletores, vivíamos em bandos pequenos onde a sobrevivência dependia da memória oral, da divisão primitiva de tarefas e da confiança instintiva.

Entretanto foi com a revolução agrícola, ao nos tornarmos sedentários, que surgiram a propriedade, a necessidade de regulação, a divisão complexa do trabalho, e o surgimento do poder institucionalizado.

A partir desse momento, a administração da vida em comum passou a exigir algo novo: a burocracia. Foi ela que permitiu coletar impostos, organizar colheitas, proteger fronteiras, registrar nascimentos e mortes, contratos e guerras. Foi ela que deu base para o desenvolvimento da escrita, da matemática, da ciência, das leis e do comércio.

Posso dizer, sem dúvidas, sem burocracia, não haveria civilização. Ela é o sangue que circula nos sistemas, a memória das instituições, a forma concreta da continuidade histórica.

No entanto, justamente por sua importância, a burocracia precisa lembrar-se de sua condição de meio.

A frase “os fins justificam os meios” já foi usada para legitimar muitos horrores.

Mas há um perigo simétrico e mais insidioso: quando os meios passam a se justificar como se fossem fins.

A burocracia, então, deixa de servir à justiça e passa a servir a si mesma. O Estado deixa de proteger o cidadão e começa a administrá-lo como objeto.

A norma passa a valer mais do que a pessoa. A engrenagem se autonomiza — e, como todo ídolo técnico, exige sacrifícios.

Por isso, o problema não está na existência da burocracia, mas em sua divinização. Quando ela se fecha sobre si mesma, passa a moldar o mundo segundo sua lógica própria, perdendo o contato com a vida concreta, com o sofrimento real, com a singularidade do humano.

O mesmo vale para o capitalismo, para o judiciário, para a imprensa, para qualquer instância de poder: não há nada mais perigoso do que um instrumento que se esquece de que é instrumento.

Este ensaio não é um manifesto contra as estruturas.

Antes, é um chamado à lucidez: para que possamos reconstruir a primazia do indivíduo, da ética e da consciência sobre os mecanismos que nos cercam.

Não se trata de abolir os sistemas, mas de relembrar que o ser humano é o único fim legítimo de toda construção civilizacional.

E que toda ferramenta, por mais necessária, deve se curvar à dignidade da pessoa — e não o contrário.

2. Introdução – A Guerra Silenciosa que Define o Destino

“A primeira vitória de qualquer império não é sobre os exércitos inimigos, mas sobre a consciência de seus próprios cidadãos.”
— Jorge Pinho

As guerras convencionais mobilizam exércitos, tanques e tratados. Têm início, meio e fim. São reconhecíveis pelos ruídos que provocam e pelas ruínas que deixam.

Já as guerras ideológicas mobilizam algo mais profundo: consciências, corações e narrativas. São mais silenciosas, mais duradouras — e, por isso mesmo, mais perigosas.

A primeira pode ser vencida com poder. A segunda, apenas com verdade.

É exatamente esse o paradoxo da guerra ideológica: seu campo de batalha é o invisível — a linguagem, os valores, a educação, os símbolos — mas dela depende o destino visível das civilizações.

Não se trata apenas de um embate de ideias. Trata-se de uma disputa por aquilo que será considerado “real” ou “possível”, “bom” ou “mau”, “justo” ou “violento”. Em suma, por aquilo que ainda poderá ser dito.

Vivemos hoje sob o impacto de três grandes projetos de hegemonia mundial, diferentes na forma, mas convergentes em suas ambições de controle:

O globalismo tecnocrático ocidental, sustentado por megacorporações, algoritmos, bancos centrais e plataformas digitais. Sua promessa é eficiência, mas sua lógica é de vigilância e padronização. A liberdade é tolerada — até que contrarie os termos de uso.

O projeto chinês de dominação estatal, conduzido pelo Partido Comunista e ancorado em um “capitalismo autoritário”.

Aqui, o mercado serve ao Estado, e o indivíduo é valorizado apenas enquanto peça produtiva da engrenagem nacional.

O islamismo revolucionário, especialmente em sua vertente xiita radical, que almeja moldar o mundo segundo uma teocracia expansionista.

Nesse modelo, o dissenso é heresia, e a liberdade, um desvio a ser corrigido — ou eliminado.

Aparentemente rivais, esses três projetos compartilham um traço essencial: não reconhecem a liberdade como valor absoluto, mas como concessão estratégica, revogável diante da conveniência do poder.

Neles, o indivíduo é tolerado enquanto obediente, mas descartável quando consciente. Em todos eles, o ser humano é função, não fim.

Por isso, esta guerra não pode ser vencida com estratégias de curto prazo nem com indignações momentâneas.

É preciso compreender suas raízes simbólicas, seus agentes difusos e seus mecanismos de reprodução interna — inclusive dentro de nós.

Porque a guerra ideológica não começa nas urnas nem nas instituições, mas no ponto mais íntimo da existência: o modo como nos tornamos sujeitos morais e pensantes.

O verdadeiro campo de batalha desses três sistemas é o inconsciente da população. Suas armas mais eficazes não são os discursos explícitos, mas os meios de atrair nossa atenção para inocular, lenta e metodicamente, suas mensagens subliminares.

Em alguns momentos, elas são sussurradas com suavidade por meio da linguagem cultural; em outros, são bombardeadas pela mídia tradicional em campanhas coordenadas de doutrinação e pânico moral.

Mas seu maior temor — e talvez o único obstáculo real à sua vitória total — é o pouco de liberdade que ainda subsiste na Internet e, acima de tudo, a liberdade radical que cada um de nós conserva quando está desperto, lúcido e consciente.

É por isso que a liberdade de expressão — especialmente nas redes — se tornou o alvo central desses projetos.

Não porque representem o caos, mas porque ainda representam a possibilidade de um pensamento que escapa ao controle.

Daí a tentativa constante de calar, moderar, filtrar, punir: não para proteger a verdade, mas para defini-la de cima para baixo.

É a essa batalha — e a seus desdobramentos políticos, culturais e espirituais — que este ensaio se propõe.

E é com as armas da filosofia, do autoconhecimento e da prudência conservadora que marchamos, não para destruir, mas para preservar o essencial: a liberdade com responsabilidade, o indivíduo com dignidade e a verdade com coragem.





3. O Elo Oculto: Burocracias Estatais, Corporações e a Ideologia de Controle

Se os três projetos de hegemonia global diferem nas suas formas culturais e estratégias geopolíticas, compartilham um eixo estrutural comum: a aliança entre burocracias permanentes e aparelhos de controle simbólico, os chamados deep states.

São estruturas invisíveis à maior parte da população, mas que operam como verdadeiras engrenagens subterrâneas da história, mantendo o poder real em funcionamento — independentemente da alternância eleitoral ou da vontade popular.

Esse estado profundo se compõe de funcionários vitalícios, elites judiciárias, agências reguladoras, tecnocracias financeiras e núcleos acadêmico-midiáticos que escapam ao escrutínio democrático.

Sua força não está na visibilidade, mas na permanência. Políticos vão e vêm. Presidentes se sucedem.

Mas essas engrenagens continuam girando — e giram por inércia, por ideologia ou por interesse, mas raramente por vocação de serviço.

A esquerda contemporânea, sobretudo em sua versão pós-moderna, encontrou nesse mecanismo o ambiente ideal para realizar sua utopia disfarçada de justiça social.

A luta contra desigualdades históricas, o discurso do bem comum, o repúdio à tradição e o combate ao “privilegiado estrutural” converteram-se em narrativas legitimadoras do poder concentrado. Com a retórica do “povo”, afastaram o próprio povo da condução de seu destino.

A elite ilustrada, que antes se reconhecia como parte de uma aristocracia da responsabilidade, passou a se ver como vanguarda moral autorizada a reconfigurar a sociedade por decreto simbólico.

Tudo se passa como se a missão do Estado fosse “corrigir” o cidadão — e não mais servi-lo.

E essa inversão ontológica do papel estatal produz um paradoxo inquietante: o Estado aparece como libertador, mas age como tutor; invoca o progresso, mas infantiliza a população.

Esse processo não é apenas externo. Ele se infiltra nas almas dos próprios servidores públicos.

Falo com o peso da experiência: após décadas no serviço público, percebo como é sutil — e perigosa — a tentação de confundir o Estado com a própria identidade.

Aos poucos, o servidor deixa de servir e começa a habitar o Estado como se fosse seu herdeiro legítimo.

Os gabinetes se tornam feudos. A função se converte em altar. A estabilidade se transforma em imunidade.

O cidadão comum vira uma abstração incômoda, e o político eleito, um intruso temporário.

Esse fenômeno não é individual, mas sistêmico. Ele se aprofunda quanto maior for a distância entre a linguagem do poder e a linguagem do povo.

E se consolida quando o servidor — em vez de ser um canal entre o Estado e a sociedade — se torna o próprio filtro da realidade, julgando quem deve ou não ser ouvido.

O mais trágico é que muitos agem com boa intenção. A burocracia não é feita apenas de cínicos.

Não obstante, a boa intenção, quando desacompanhada de autoconhecimento e vigilância moral, pode se tornar o disfarce mais eficiente do autoritarismo rotineiro.

É por isso que a guerra ideológica não se limita ao campo partidário. Ela acontece nos interstícios das instituições, nas brechas das leis, na retórica dos pareceres, na rotina dos tribunais, no vocabulário dos editais e nos silêncios dos manuais de conduta.

Essa guerra é mantida viva não só por militantes, mas por tecnocratas que acreditam que sabem mais do que a sociedade que pretendem governar.

No fundo, o que está em jogo é uma disputa ontológica: quem tem o direito de definir o real?

O povo que sente, ou a elite que calcula?

O indivíduo que vive, ou a engrenagem que regula?

Essa pergunta, embora raramente formulada com clareza, paira como um espectro sobre todas as democracias modernas.

E enquanto não a enfrentarmos com coragem filosófica, continuaremos condenados a viver num regime de liberdade simulada, onde os votos elegem rostos, mas não mudam os rumos — porque os rumos já foram decididos por aqueles que, sem mandato, ocupam o centro da máquina.





4. O Campo de Batalha Interior: A Guerra Começa no Indivíduo

A mais difícil de todas as batalhas não é contra o sistema lá fora — mas contra o sistema dentro de nós.

Nenhuma transformação verdadeira começa pela revolta externa se não for precedida pela retificação interior.

Por isso, a guerra ideológica, antes de ser sociológica ou política, é ontológica. É uma luta silenciosa entre o conforto da obediência e a dor da lucidez; entre o desejo de pertencimento e o chamado da liberdade; entre a segurança de ser conduzido e o risco de caminhar por si.

É no interior do ser humano que a ideologia se converte em dogma, porque o espírito, fragilizado pelo medo, pela culpa ou pelo ressentimento, busca explicações prontas e inimigos visíveis para o caos invisível da existência.

O medo se disfarça de convicção, e o ressentimento se traveste de justiça. A ideologia então deixa de ser uma ferramenta de análise e se torna um espelho deformante: não mostra o mundo como ele é, mas como gostaríamos que fosse para justificar nossas feridas.

Quando isso ocorre, não há mais espaço para o pensamento: apenas para a repetição.

A dúvida passa a ser vista como fraqueza, a ponderação como traição, e o silêncio como cumplicidade.

O indivíduo deixa de ser sujeito e passa a ser militante — não por paixão, mas por necessidade simbólica.

Troca-se a consciência pelo pertencimento, a reflexão pelo slogan, a verdade pela adesão.

É nesse exato ponto que o verdadeiro despertar se torna possível — mas não como uma reação explosiva e superficial.

O despertar não é rebelião; é transfiguração.

É o momento em que o indivíduo escolhe pensar com a própria consciência, mesmo que isso o afaste dos grupos aos quais sempre pertenceu.

Trata-se de uma decisão solitária, mas profundamente ética, porque nasce da coragem de não se permitir instrumentalizar — nem pela direita, nem pela esquerda, nem pelo próprio ego.

O campo de batalha é o mesmo para todos: a interioridade humana.

Ali se decide se o indivíduo será massa ou presença, eco ou voz, engrenagem ou espírito.

E o instrumento de luta não é a raiva, mas a lucidez.

Não é a ideologia do contra, mas o exercício filosófico que exige paciência, humildade e integridade.

O que está em jogo, afinal, não é apenas o que pensamos — mas quem somos quando pensamos.

E esse “quem somos” só pode emergir quando abrimos mão dos discursos prontos e ousamos encarar a realidade sem as lentes ideológicas que a suavizam ou distorcem.

Vencer essa batalha interior é o primeiro passo para qualquer resistência verdadeira. Porque só quem venceu a tirania dentro de si está apto a enfrentar as tiranias do mundo.





5. O Dilema do Político: Voz do Povo ou Peça do Tabuleiro?

No plano institucional, o político bem-intencionado é um dos personagens mais trágicos da modernidade. Sua posição é ambígua por natureza: é chamado a representar a vontade do povo, mas se move num tabuleiro cujas regras foram escritas não pelo povo, mas pelas estruturas permanentes do poder.

Ele ouve clamores legítimos — por segurança, liberdade, trabalho, saúde, respeito — mas se vê enredado em redes invisíveis de influência, chantagem e conformismo sistêmico, que operam com a força gravitacional de um buraco negro moral: tudo o que se aproxima, é sugado.

Se o político resiste, é isolado. Se cede, é promovido. E assim, o sistema viciado neutraliza as exceções pela tentação da permanência.

A ideologia de esquerda, neste cenário, oferece um alívio sedutor e imediato: simplifica a complexidade da realidade, entrega culpados prontos — o capitalista, o colonizador, o patriarcado, o homem branco — e fornece slogans emocionais embalados como virtude política.

Com a ideologia de esquerda, via de regra, não há necessidade de pensar: basta repetir. Não há necessidade de decidir: basta seguir a pauta.

A direita, por sua vez, quando perde sua âncora filosófica — a defesa do indivíduo, da liberdade responsável, da propriedade e da moralidade transcendental — corre o risco inverso: ceder ao pragmatismo frio, ao cinismo gerencial ou ao reacionarismo estéril, que resiste sem construir, denuncia sem propor, ataca sem transcender.

Entre esses dois abismos, o político que deseja permanecer ético precisa recuperar algo cada vez mais raro: a consciência de que governar é um ato espiritual antes de ser um exercício técnico.

Ele precisa recordar que não representa apenas um eleitorado, mas uma humanidade concreta — com dores, sonhos e contradições. Precisa entender que sua autoridade nasce do enraizamento no real, não da adesão às estruturas que o mantêm no cargo.

A guerra ideológica, portanto, exige dos líderes mais do que retórica, carisma ou cálculo eleitoral.

Exige algo mais profundo: enraizamento moral, clareza de princípios e coragem espiritual.

Não se trata de pureza utópica, mas de lucidez trágica: saber que a política é sempre uma arte do possível — mas que o possível deve ser definido à luz do necessário, não à sombra do conveniente.

Ao político verdadeiro não basta ser funcional. Ele precisa ser fiel ao que é maior do que ele — ao bem comum, à justiça possível, à integridade silenciosa.

Ele precisa sustentar a tensão entre representar e resistir, entre ouvir e filtrar, entre negociar e não se vender.

E, sobretudo, precisa lembrar que um cargo pode ser perdido — mas a consciência, uma vez corrompida, leva consigo tudo o que o cargo parecia garantir.

6. A Vitória Possível: Filosofia, Autoconhecimento e Conservadorismo

Não há vitória verdadeira na guerra ideológica sem um processo de autoconhecimento.

Vencer uma disputa argumentativa, impor uma pauta ou conquistar uma maioria legislativa pode parecer suficiente — mas são vitórias superficiais se não estiverem alicerçadas numa reconstrução interior do sujeito como centro ético, espiritual e racional da vida civilizada.

A guerra ideológica é antes de tudo uma guerra contra a fragmentação: do sentido, da linguagem, da identidade e da verdade.

Por isso, a filosofia — aquela que nasce do espanto e busca o eterno — é a única arma legítima contra o avanço do totalitarismo simbólico.

E aqui não falamos da filosofia como abstração acadêmica, mas como disciplina do espírito, caminho de lucidez, ética de responsabilidade e cultivo da interioridade.

A postura conservadora, neste contexto, não é recusa da história, mas reverência àquilo que provou seu valor ao longo dela.

É a sabedoria de reconhecer que nem tudo o que é novo é progresso, e nem tudo o que é antigo é opressão.

A verdadeira conservação não é paralisia, mas discernimento ativo: distinguir o que deve ser preservado daquilo que precisa ser superado, sem entregar a alma ao modismo nem ao ressentimento.

Como escreveu Edmund Burke, conservar é "renovar um contrato eterno entre os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram".

Isso implica compreender que fazemos parte de algo maior do que nossos desejos e medos individuais — e que a liberdade só é digna quando nasce da responsabilidade, da gratidão e do enraizamento moral.

A vitória, portanto, não virá pela imposição, mas pela educação da consciência. Pela formação de indivíduos que saibam pensar antes de reagir, escutar antes de rotular, julgar antes de cancelar.

Indivíduos que, despertos, recusem ser peça de um jogo que sequer sabem quem conduz. Indivíduos capazes de olhar para a história não como um peso, mas como um mapa; não como um cárcere, mas como uma herança a ser refinada e transmitida.

Esse é o verdadeiro papel do conservadorismo filosófico: manter viva a chama do logos em meio à névoa das ideologias, proteger o espaço interior onde a liberdade ainda pode florescer, e lembrar à civilização que há bens que não se criam por decreto, mas se cultivam com reverência, coragem e tempo.

A guerra ideológica é longa. O inimigo é difuso. A vitória é lenta. Mas, como ensinava um velho sábio do Oriente, “um homem desperto equivale a mil adormecidos”.

E talvez, no fim das contas, não seja necessário que todos despertem ao mesmo tempo — apenas que alguns o façam com profundidade suficiente para reacender a luz onde tudo parecia apagado.

7. Epílogo – A Luta Continua, Mas Agora Sabemos Onde Está

A guerra ideológica continuará enquanto houver seres humanos. Porque ela é, na verdade, a guerra pela alma do mundo.

Mas, quando reconhecemos onde está o verdadeiro campo de batalha — dentro de nós, nas instituições que erguemos e na linguagem que utilizamos para descrever e justificar o real —, então deixamos de ser apenas soldados inconscientes e passamos a ser estrategistas morais de uma civilização em disputa.

E, como ensinava Sun Tzu, “a suprema arte da guerra é vencer sem lutar”. Mas essa vitória sutil só será possível quando a liberdade deixar de ser um privilégio dos fortes e se tornar uma virtude dos conscientes. Uma conquista interior antes de ser uma bandeira política. Um estado de presença, não uma reação.

A filosofia, quando praticada com coragem e enraizada em valores perenes, não apenas liberta o indivíduo — ela também o capacita a harmonizar os diversos níveis de interesse que atravessam o tecido social.

Do mais elevado bem comum ao mais modesto desejo individual, a justiça se revela como a chave que organiza e pacifica: dar a cada um aquilo que lhe corresponde, segundo sua natureza e segundo a natureza de seus atos.

Esse é o grande milagre da filosofia: ensinar a pensar para além de si, e sentir sem abdicar da razão.

A filosofia não uniformiza o pensamento — ela o organiza. Não o iguala — o equilibra. E assim permite que, mesmo em meio às diferenças legítimas, se construa uma convivência fundada na justiça, e não na força.

Mas para isso é preciso coragem — e um tipo raro de liberdade interior.

Platão narra o mito de Giges, o pastor que encontra um anel capaz de torná-lo invisível. Ao perceber que ninguém mais podia vê-lo, Giges comete adultério, trai o rei, mata-o e assume o trono.

Glauco, o interlocutor de Sócrates, pergunta: quem permaneceria justo se tivesse o poder de agir impunemente? Não seria a justiça apenas conveniência social, e não virtude real?

A resposta que a filosofia nos dá — e que este ensaio ecoa — é que a verdadeira justiça começa onde termina o olhar do outro.

Aquele que permanece íntegro mesmo quando ninguém vê, esse é o justo de verdade.

Porque sua consciência não depende do castigo nem da recompensa, mas de algo maior: da fidelidade à própria essência.

Lembro com lágrimas nos olhos que, aos cinco anos de idade, fui testado — sem que ninguém me pedisse — na casa de um amigo querido.

Fiquei sozinho, diante de brinquedos pequenos, chamativos, dinheiro e tantas outras tentações. E nada toquei. Passei num teste que outros não passaram.

Mas também lembro, com a mesma lucidez, que mais tarde na vida cometi erros em algumas situações por mim experimentadas que envergonhariam aquela criança.

E, ainda assim, em todos os momentos — mesmo nos erros — nunca perdi a consciência nítida do que era certo e do que era errado.

Talvez por isso, no mais fundo de mim, nunca deixei de tentar acertar, mesmo quando errava.

Trabalhando no governo, posso dizer com toda certeza: é impossível não errar, em algum nível. O sistema é imperfeito — e nós também. E foi assim que aprendi a rir com compaixão da nossa trágica condição.

Lembro de um amigo querido, Secretário de Estado, apreensivo numa sexta-feira. Submeter-se-ia a uma delicada cirurgia para reparar um stent no coração, implantando outro dentro dele. Era arriscado. Olhei para ele e disse:

— Meu amigo, só os bons morrem cedo. E nós trabalhamos no governo. Quando queremos acertar, erramos. Ao fazer o bem, volta e meia fazemos o mal. Nós não vamos para o céu. É impossível você morrer nessa cirurgia.

Ele riu. E está vivo até hoje. Talvez porque ainda tínhamos — e temos — muito a aprender por aqui.

O drama que vivemos hoje é também um espelho que devolve nossa imagem: exigimos dos políticos virtudes que raramente cultivamos em nós mesmos.

Queremos estadistas éticos, mas educamos filhos cínicos. Reclamamos da corrupção, mas celebramos a esperteza.

E, nesse descompasso, o velho aforismo parece verdadeiro: cada povo tem o governo que merece — não por castigo, mas por coerência.

É por isso que somente a filosofia disseminada no coração da sociedade pode gerar as condições para o surgimento de líderes verdadeiros: homens e mulheres enraizados em valores, capazes de sacrificar popularidade por convicção, e de servir sem buscar coroação.

No entanto, esses líderes não virão do acaso. Virão do solo fértil de uma cidadania lúcida, ética e espiritualizada.

E se há uma esperança real nesta guerra, ela está nisso: não em derrotar o outro, mas em despertar em si o que há de mais verdadeiro.

Porque, ao fim e ao cabo, o destino do mundo não depende apenas de quem governa — mas de quem somos quando ninguém nos vê.


(*) O autor é advogado, procurador aposentado e ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
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