
É Findi - A "Pílula Vermelha de Matrix" - Crônica, por Romero Falcão*
28/06/2025 -
Escritos na Cadeira Dos Coletivos
Da parada de ônibus sai crônica, dentro do ônibus sai livro. Se brincar dá um volume meus textos escritos na cadeira dos coletivos. Mas nesta crônica vou me ater à parada que é parada dura na vida do "passageiro da agonia". Chego ao ponto de ônibus. A coberta não protege do sol nem da chuva. Observo os tipos, pontos eletrônicos - os tais fones de ouvido - tapam os ouvidos da rapaziada. Esta para manter o curto diálogo, tira fio, bota fio. Evitam prosa. No entanto, a velha guarda só quer tantinho de conversa pra contar até a encarnação passada.

"Eu que não Creio, Peço a Deus Por Minha Gente"
Um homem e uma mulher lamentam à espera da linha que não dá as caras. Aproveito o gancho, meto a colher. Quanto tempo aguardam? Mais de vinte minutos. Vai inteirar trinta, diz o homem de camisa clara e tênis preto. Provoco, tento alguma reação em vão. É um absurdo, passagem cara, ônibus quente, lotado-Galo da Madrugada sobre quatro rodas - motorista mal-educado, boa parte. Como se não bastasse a humilhação, a praga do Egito demora a passar. E as pessoas não se revoltam, vocês já notaram? É, o senhor tem razão, a gente se acomoda, fazer o quê? Fala a mulher de vestido verde, resignada. Penso com os meus atormentados botões: a vida é dura, sobreviver é guerra, nem dá tempo de refletir, exigir o mínimo de dignidade pelos impostos pagos. O povo já não sabe como se revoltar. A luta pelo pão arrefece todas as forças, cala a voz, o espírito. Me vem o velho Chico, adapto: "Eu que não creio, peço a Deus por minha gente, é gente inerte, que vontade de chorar". Fazer o quê?
Cachorro Maloqueiro
Enquanto a coisa não vem, quebro a monotonia, acendo fogueira. Aponto a habilidade de um cachorro de rua para atravessar a movimentada avenida. Para, escuta, anda, um olho na missa, outro na pista. Até que o movimento diminui, então cautelosamente cruza o asfalto. Viram o que eu vi? Um caboclo de óculos escuro tem a explicação na ponta da língua. Isso é cachorro maloqueiro, já levou muita porrada pra aprender. Toco fogo, e se fosse um pet? Ah, depois que inventaram esse negócio de pet, os cachorros viraram boneco, já estava esmagado debaixo de um carro. Inflamo as labaredas. Por falar em boneco, ouvi dizer que estão fabricando pet reborn. Uma mulher de sombrinha na mão entra no incêndio, o senhor tá sabendo que um sujeito deu um murro num bebê no colo de uma moça, achando que era bebê reborn?

A "Pílula Vermelha" de Matrix
É, senhora, sei como é, está difícil saber o que é gente, o que é bicho, o que é mentira, o que é verdade, o que é humano, o que é bebê de silicone. Ela concorda com veemência. O senhor disse tudo. Eu digo, nada de ônibus. Deve ser protesto na cidade, expressa um rapaz esfregando as mãos, milagrosamente sem fone de ouvido. E por que não se faz protesto - me incluo - por transporte público de qualidade? Ele dá de ombros, silencia. Uma figura beirando os 70 anos, espirra. Não perco a oportunidade. O senhor tomou a vacina da gripe? - levanto outra chama - Não tomei e nem tomo. Tá vendo aí, muita gente morrendo de AVC, ataque cardíaco. O que é isso, isso foi a vacina da Covid. Mas essa é da gripe, homem. É tudo a mesma coisa, eu não me vacino, vacine o senhor. Lá vem o fantasma, saio da calçada, estendo o braço comprido, magro. Não duvido queimar a parada. Afinal, idosos são invisíveis para alguns motoristas. Há exceções, claro. Subo os degraus, carregando na mente essa gente sofrida. Viajo por esse mundo parvo, perturbado, distópico. Um ambulante vende bombom no corredor. Será a "pílula vermelha" de Matrix? Fazer o quê?
*Romero Falcão, é um cronista que se arrisca a fazer poema torto, autor do livro: Asas das Horas, com prefácio do Prof. José Nivaldo.
