imagem noticia

Ensaio para Reflexão - STF, Liberdade, Censura, Medo e o Projeto de Silenciamento Digital

30/06/2025 -

imagem noticia
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

1. Preâmbulo — O Ponto de Inflexão e o Chamado à Consciência

Com o julgamento do Marco Civil da Internet, o Supremo Tribunal Federal jogou mais uma pá de cal sobre a liberdade de expressão no Brasil.

Em vez de proteger o cidadão contra o arbítrio digital, o STF apertou ainda mais o cerco da censura, institucionalizando a responsabilização prévia e consolidando o medo como método de controle discursivo.

Sob o pretexto de combater desinformação, o STF aprovou o monitoramento, a exclusão de conteúdo por decisão administrativa e o enquadramento subjetivo da crítica como crime.

A velha promessa de uma Internet livre transformou-se, sob a toga dos intérpretes supremos, em território vigiado onde a liberdade passou a existir apenas sob autorização.

Esse julgamento é um divisor de águas institucional. A partir dele, dizer o que se pensa no Brasil se torna um risco calculado — não um direito protegido.

E ainda assim, a maioria permanece em silêncio.

Vivemos o instante raro em que a história se dobra sobre si mesma, não como repetição, mas como encruzilhada.

Um ponto de inflexão civilizacional em que, pela primeira vez, a liberdade deixa de ser um campo de batalha e passa a ser uma névoa que escapa pelos dedos.

Não é mais suprimida com tanques ou censores visíveis — é dissolvida no ar digital, abafada por algoritmos, sufocada pelo medo e ignorada pela apatia.

O que está em risco não é apenas o direito de falar — é o direito de ser. E, no entanto, nunca se viu uma população tão silenciosamente resignada, tão dócil diante da manipulação simbólica, tão alheia ao seu próprio desaparecimento como sujeito histórico.

No Brasil, esse processo atinge um de seus ápices: vivemos um julgamento histórico — e quem chorou foi o algoz.

O ministro Dias Toffoli, diante da revelação de abusos praticados pelo sistema de justiça, não pediu perdão às vítimas nem renunciou ao cargo — verteu lágrimas em nome do próprio sistema.

Como se o sofrimento fosse do carrasco, e não de quem foi calado, perseguido, criminalizado.

A imprensa, por sua vez, quase nada disse.
Não por falta de meios — mas por excesso de cálculo.Os poucos ruídos que se ouviram não vieram da indignação — vieram do medo.

Medo de perder o controle da narrativa que, por décadas, sustentou seu poder simbólico e seu lugar privilegiado no teatro das versões autorizadas.

Willian Waack, âncora da CNN, ao comentar o último voto dissidente no julgamento do Marco Civil da Internet — em que se aventava a possibilidade de sanções internacionais ao Brasil — preferiu a penumbra da insinuação.

Não mencionou o nome do ministro que ousou divergir. Tampouco nomeou o país de onde, segundo ele, poderiam vir as retaliações. Por quê? Medo? Autocensura? Vassalagem voluntária ao novo clero togado da república?

A imprensa, que um dia denunciou ditaduras, agora hesita diante da simples nomeação de um voto ou de um país. Transformou o jornalismo em sussurro.

Mas é tarde. A Internet, que as redações tanto combateram, já não devolverá a velha ordem. E o STF, que instituiu a censura em toga, tampouco devolverá à mídia tradicional o cetro do discurso autorizado.

O altar do poder simbólico foi desmontado — e os sacerdotes do verbo oficial assistem, atônitos, à multiplicação dos profetas anônimos.

Pelo contrário: a imprensa que ajudou a destruir a liberdade de expressão será agora obrigada a publicar apenas o que os censores autorizam — sob pena de multas abissais e até prisão.

Os donos da grande mídia, aplaudidos e incentivados pelos seus jornalistas serviçais progressistas, lutaram contra o inimigo errado — e cavaram a própria ruína.

Na tentativa de silenciar as redes sociais, ajudaram a erguer o altar onde agora serão sacrificadas como peças decorativas de um poder que já não precisa delas.

É nesse cenário que este ensaio se insere: não como lamento, mas como despertador.

Ele não pretende apenas criticar os abusos do poder — pretende interpelar o leitor, sacudi-lo da letargia, convidá-lo a assumir sua função mais nobre: ser sujeito da própria consciência e defensor daquilo que ainda dá dignidade ao humano — a liberdade de pensar, dizer e escolher.

O tempo é agora. Não haverá próxima geração para consertar o que deixamos desabar.

A omissão já não é neutralidade — é cumplicidade. E o silêncio já não é prudência — é conivência.

Cada um que se cala diante do arbítrio alimenta o monstro que um dia baterá à sua porta.

Cada um que se acomoda num sofá, acreditando que não é com ele, escreve com omissão o epitáfio da própria liberdade.

É preciso, portanto, acordar. Não como ato político apenas — mas como gesto ontológico, espiritual e ético.

Porque, ao final, a história do mundo não é outra coisa senão o conjunto das histórias dos que ousaram despertar.

E você?

Já acordou?

2. Introdução — O Julgador Julgado

A democracia é, por natureza, um edifício vulnerável. Sua solidez não se impõe pela força, mas repousa sobre um alicerce invisível: a confiança mútua entre o povo e seus representantes — e as liberdades que essa confiança consagra.

Como advertia Tocqueville, “o maior perigo para a democracia é o próprio medo que ela tem do povo que a institui.”

Quando uma ministra da Suprema Corte afirma que “somos 213 milhões de pequenos tiranos”, o que se revela não é apenas uma metáfora infeliz — mas a confissão de um desconforto crescente diante da voz popular que a Internet amplificou.

O novo poder que emergiu não é institucional, mas relacional: o poder da cidadania desperta.

Tal frase, proferida por Cármen Lúcia, disfarça-se de prudência, mas opera uma manobra retórica típica da lógica autoritária: inverter o sujeito e o predicado do poder.

Ao insinuar que o povo representa a ameaça, o Estado se traveste de vítima, silenciando sua condição de agente.

Confúcio advertia que o primeiro dever do governante é nomear corretamente as coisas.
Infelizmente, quando o julgador chama de “tirania” aquilo que é crítica, confunde os signos e corrompe o pacto de significação sobre o qual se constrói a justiça e a confiança no desempenho de suas funções jurisdicionais.

A tentativa de deslegitimar o julgamento público que deve ser soberano — apresentado como desordem — parte, ironicamente, de quem exerce o mais alto grau de julgamento institucional.

Trata-se de um gesto que não apenas trai o espírito democrático, mas distorce o próprio princípio de soberania que a Constituição consagra.

Dizer que a única soberania existente no país é a do direito, desconsiderando a voz da população, é trair o mandato que a população outorga a qualquer representante de poder — e esquecer que o direito só é constituído pela vontade delegada da própria população.

Não sou revolucionário, minha orientação é conservadora, mas não posso deixar de lembrar que quem delega poder conserva, em última instância, o direito de retomá-lo — pela razão ou, como ensina a história, pela revolta.

A Revolução Francesa, tão festejada por Cármen Lúcia e tantos juristas progressistas, foi isso: a recuperação violenta de um poder que se tornara opaco.

Na tradição ocidental, Rousseau afirmava que a vontade geral é soberana. Na tradição oriental, Lao-Tsé ensinava que “governar um grande povo é como cozinhar um pequeno peixe: não se pode mexer demais.”

Ambas as lições convergem: quem exerce poder deve temer o excesso, não o julgamento.

Ao deslocar a culpa para a população, enquanto concentra para si o monopólio da sanção, a ministra escapa da crítica e, ao fazê-lo, abdica da humildade necessária à função que exerce.

O que deveria ser magistratura — isto é, serviço à medida justa — torna-se magistralidade — uma posição acima da reciprocidade.

O filósofo Emmanuel Levinas propôs que a verdadeira justiça nasce no “rosto do outro” — isto é, na escuta radical do próximo.

Quando o juiz recusa ser julgado pelo povo, ele nega o outro, e nega também a si mesmo como ser ético e responsável.

Há, portanto, na fala da ministra, não apenas um erro político, mas um desvio ontológico. A soberania não é uma couraça contra a crítica — é uma missão que exige transparência, escuta e coragem de responder por seus atos.

Como ensinava Buda, “três coisas não podem ser escondidas por muito tempo: o sol, a lua e a verdade.”

A tentativa de obscurecer o julgamento popular com a névoa do medo não protege a democracia — apenas revela o pânico dos que, no fundo, sabem que o poder verdadeiro não vem de cima — vem do olhar vigilante que vem de baixo.





3. O Sofisma da Tirania Popular

Chamar o povo de “tirano” é realizar uma operação simbólica tão sutil quanto perigosa: desloca-se o centro da opressão para aqueles que não detêm o poder de fato. Trata-se de uma inversão conceitual clássica — ou, mais precisamente, de um sofisma político disfarçado de prudência institucional.

A tirania, de Sólon a Montesquieu, jamais foi a pluralidade de vozes — mas o silenciamento de todas sob uma única. O povo, por sua natureza difusa, contraditória e múltipla, não pode ser tirano: falta-lhe o instrumento unívoco da coerção. A não ser, claro, quando se organiza em revolução — e aí, já não é tirania, mas ruptura contra o abuso.

Ao confundir o julgamento social com tirania, a ministra incorre em uma falácia de tipo: atribui ao discurso coletivo o mesmo peso da coerção estatal. Confunde crítica com opressão, dissenso com perigo, liberdade com ameaça. Isso não é prudência — é a retórica da intimidação.

Segundo Aristóteles, a democracia é o regime em que o povo governa por meio da razão pública. Chamar esse exercício de “tirania” é deslegitimar o único mecanismo pelo qual a sociedade civil pode conter abusos: o constrangimento moral que emana da crítica pública.

Platão, é verdade, advertia contra a “tirania da maioria” — mas referia-se ao momento em que a multidão, embriagada pela emoção, impõe sua vontade como força bruta. Não é disso que se trata aqui. O que se vê nas redes não é a turba com tochas, mas a cidadania com voz. É contestação — não imposição.

Na tradição oriental, Confúcio ensinava: “quando os governantes perdem a virtude, o povo lhes retira o Mandato do Céu.” Esse mandato não se revoga por decreto — dissolve-se na ausência de confiança e reciprocidade. A crítica pública, portanto, não é um colapso institucional, mas o sintoma de que a legitimidade precisa ser restaurada.

Transformar o direito à crítica — que é o sangue vital da democracia — em um “risco institucional” é realizar uma operação de autodefesa mal disfarçada. Ao fazê-lo, a ministra não protege a democracia — ela a sabota em nome da ordem.

Nietzsche advertia: “quem combate monstros deve tomar cuidado para não se tornar um.” Ao chamar o povo de tirano, o Estado se vê autorizado a se defender como se estivesse sob ataque — e, nesse processo, se torna exatamente aquilo que a crítica denuncia: um poder que silencia para não ser desmascarado.

O discurso que se anuncia como ético e moderado é, muitas vezes, o que prepara o terreno para o silêncio. Finge proteger a civilidade, mas visa conter a cidadania. Não é a democracia que está em risco — é o monopólio do discurso que se vê ameaçado pela verdade das ruas.

Como advertia Buber, “o verdadeiro perigo não vem do outro que me interpela, mas do eu que já não sabe mais escutar.” Quando a escuta se transforma em censura, e a crítica em crime, não é o povo que se tornou tirano — é o julgador que se blindou contra o julgamento.


4. A Internet como Nova Ágora

Durante décadas, a crítica institucional foi um privilégio dos iniciados — negociada nos bastidores, filtrada por editoriais e limitada aos poucos que dominavam os códigos da retórica pública. A opinião popular era tolerada — mas raramente ouvida. Era concessão, não potência.

O poder — político, judicial e econômico — aprendeu a operar dentro dessa arquitetura centralizada. Bastava dialogar com os formadores de opinião e preservar o pacto simbólico com a grande imprensa. No Brasil, bastava manter relações harmônicas com a Rede Globo para assegurar a liturgia do prestígio.

Mas com a emergência das redes sociais, esse monopólio ruiu. A crítica escapou dos gabinetes e foi às ruas digitais. A voz pública deixou de ser autorizada — passou a ser espontânea, bruta, descentralizada, contraditória — e, por isso mesmo, autenticamente democrática.

A Internet é, nesse sentido, a nova ágora. Não a ágora idealizada dos gregos — feita de silêncio e escuta ordenada —, mas a ágora viva: dissonante, barulhenta, imperfeita, mas livre. Um espaço onde os cidadãos interpelam diretamente os poderosos, sem precisar pedir licença.

Habermas via na esfera pública o espaço onde se forma o juízo coletivo. A diferença é que hoje essa esfera já não é mediada por instituições tradicionais, mas impulsionada por algoritmos, emoções, vídeos curtos e indignações virais. A mediação ruiu — e o filtro sumiu.

Esse novo cenário não assusta por ser caótico — mas por ser horizontal. O que desconcerta os que mandam não é o insulto, mas a interpelação racional. O que incomoda não é o erro, mas o acerto que desmonta, em segundos, o discurso cuidadosamente elaborado do poder.

A ministra que teme o “julgamento dos 213 milhões” não teme o linchamento — teme o reflexo que não controla. O espelho público não deforma: revela. E quem se acostumou a ser oráculo não suporta ser imagem.

Na tradição oriental, o Tao Te Ching ensina: “o governante que se sente seguro não precisa se exibir; aquele que teme o povo ergue muralhas que logo desabarão.” O grito que pede censura não é sinal de força — é o gemido de um império simbólico em ruínas.

Sim, a ágora digital é imperfeita. Há excessos, injustiças, ataques. Mas, como dizia Viktor Frankl, “a liberdade não é isenta de responsabilidade, mas inseparável dela.” O que se espera de quem governa ou julga, portanto, não é censura preventiva — é grandeza reativa.

A lucidez crítica que hoje circula pelas redes não é uma ameaça à democracia — é seu sintoma mais vital. Só teme essa lucidez quem construiu seu poder sobre o pressuposto da ignorância alheia.

Por isso, o projeto de tutelar o discurso público não é apenas reacionário — é regressivo. Tenta-se restaurar uma ordem simbólica que já não existe. Como quem tenta trancar o vento nos gabinetes e devolver o povo à condição de espectador mudo.

Mas o tempo não volta. A democracia do século XXI já não cabe nos moldes hierárquicos do século XX. E o Judiciário — se quiser preservar sua autoridade — precisará aprender que a crítica pública não o diminui: ela o legitima.





5. Do Medo ao Projeto de Silenciamento

A censura não começa com leis — começa com discursos. Antes de se tornar norma, ela se insinua como prudência, se disfarça de responsabilidade e se apresenta como proteção contra o caos.

Mas, como advertia Orwell, “o controle do discurso precede o controle do pensamento.”

É preciso nomear com precisão: o projeto que hoje avança sobre a liberdade de expressão no Brasil não é apenas jurídico. É simbólico, psicológico e político. Não visa proteger a democracia — visa blindar os ocupantes do poder contra o incômodo da crítica popular.

O pretexto é sempre nobre: combater a desinformação, evitar o ódio, preservar as instituições. Mas o efeito é outro: instaurar uma vigilância difusa, onde cada cidadão se percebe como potencial infrator e, ao mesmo tempo, como possível delator.

Byung-Chul Han chama isso de “psicopolítica da transparência forçada”: todos expostos, todos vigiando — menos aqueles que ocupam o topo da pirâmide institucional, cuja opacidade é protegida por uma liturgia intocável.

O objetivo não é estabelecer regras claras contra o crime real — é disseminar o medo como mecanismo de autocensura coletiva.

Quando todos podem ser punidos por qualquer fala, o silêncio deixa de ser escolha: torna-se instinto de sobrevivência.

Sun Tzu já ensinava que o melhor general é aquele que vence sem lutar. O censor ideal também não proíbe — apenas ensina a sociedade a calar-se por conta própria. É assim que a prudência se transforma em armadilha, e o cuidado em contenção.

Nesse jogo simbólico, a moral pública é usada como mordaça: se todos forem denunciáveis, todos se calarão.

E nesse deserto de vozes, os únicos autorizados a falar serão justamente os que já julgam, acusam, condenam — e se absolvem entre si.

Hannah Arendt advertia: a maior ameaça à liberdade não é o autoritarismo escancarado, mas a burocratização do medo.

Quando a sanção se torna opaca e os critérios de punição se tornam morais, subjetivos e variáveis, a justiça cede lugar ao arbítrio disfarçado de legalidade.

É isso que está em jogo: a tentativa de transformar a palavra em risco, a crítica em crime, o cidadão em réu presumido.

Não se deseja restaurar o diálogo público — deseja-se instaurar um novo tipo de monólogo institucional, onde só ecoem as vozes previamente autorizadas.

Como alertava Foucault, “não se trata de saber quem tem razão, mas quem tem o poder de fazer calar.”

E quando o medo de ser julgado pelo povo supera o compromisso de escutá-lo, o regime de liberdades já entrou em falência simbólica.





5.1 — O Brasil como Laboratório da Nova Servidão Global

Por trás das justificativas técnicas e do verniz jurídico que tentam revestir a recente decisão do STF, há um experimento em curso — e o Brasil é o laboratório. Não estamos apenas testemunhando uma crise local de liberdade. Estamos, de fato, participando de um teste silencioso de engenharia simbólica, no qual a liberdade individual é progressivamente substituída por um sistema de governança algorítmica com pretensões globais.

Sob o pretexto de combater a desinformação, proteger instituições e promover o “bem comum”, ensaiam-se aqui os mecanismos que poderão ser replicados em qualquer democracia frágil, instável ou já parcialmente corrompida. A lógica é simples e eficaz: menos liberdade, mais controle — tudo embalado em termos técnicos e promessas humanitárias.

É nesse contexto que o Brasil se torna vitrine e cobaia de um novo paradigma: o da censura sob demanda institucional. O Supremo Tribunal Federal, ao assumir para si o monopólio da verdade e do discurso autorizado, oferece ao mundo um modelo de controle narrativo por dentro da legalidade — uma espécie de censura gourmet, validada por capas de processos e legitimada por palavras como “moderação”, “regulação” ou “responsabilização civil”.

A burocracia financista, os organismos multilaterais e as big techs observam com atenção. O que está sendo gestado aqui poderá, amanhã, ser usado como precedente em fóruns internacionais, plataformas digitais globais e acordos de governança digital. A toga brasileira, neste exato momento, está sendo convertida em rascunho para tratados internacionais sobre “segurança informacional”.

É um processo meticuloso e lento. Mas não é novo. Assim como em outros momentos da história o Brasil serviu de campo de testes — para planos econômicos fracassados, reformas importadas e estratégias de manipulação midiática —, agora se presta a algo ainda mais perigoso: testar os limites da obediência social diante do esvaziamento progressivo da liberdade.

E como toda experiência de laboratório, os resultados são cuidadosamente mensurados: o nível de apatia, a reação das mídias, a resistência popular, o silêncio das instituições.
Cada gesto de indiferença é anotado como sinal verde.
Cada omissão, como confirmação do sucesso da fórmula.

Mas os que conduzem esse experimento ignoram uma variável essencial: o espírito humano não é totalmente previsível. E por mais que tentem regular o discurso, silenciar a crítica e algoritmizar o pensamento, sempre haverá uma brecha — e por ela passará a liberdade.

A pergunta é: quando o Brasil acordar desse experimento, ainda haverá país?
Ou seremos apenas um caso de estudo bem-sucedido — de como destruir uma República sob o pretexto de aperfeiçoá-la?

6. Conclusão: Quando o Juiz Recusa o Espelho

Toda autoridade que teme ser julgada revela sua rachadura interna. A legitimidade não nasce do exercício do poder — mas do reconhecimento do outro. E esse reconhecimento depende, sempre, da aceitação do julgamento público como elemento vital da convivência democrática.

O verdadeiro poder democrático não se esconde da luz — vive dela. Sabe que sua razão de existir repousa sobre o juízo contínuo da sociedade. Fugir desse olhar é abdicar da fonte originária da soberania: o povo que observa, que interroga, que reage.

Quando ministros da Suprema Corte — e aqui não se trata apenas de Cármen Lúcia — recusam esse julgamento e se protegem em redomas simbólicas, deixam de se comportar como servidores da República. Passam a agir como sacerdotes de um templo onde não se entra com perguntas — apenas com reverências.

A toga, então, deixa de ser símbolo de responsabilidade e torna-se véu de infalibilidade. O tribunal, que deveria ser ágora da escuta racional, converte-se em santuário dogmático — onde a palavra não é mais dialogada, mas decretada.

Era isso que Platão temia em sua República: o momento em que o logos — o discurso compartilhado, a razão comum — cede lugar ao noûs ensimesmado, à certeza que já não se põe à prova. O juiz que se recusa a ser julgado perde o contato com a justiça — e com a realidade.

Heráclito dizia que o oráculo de Delfos “nem revela nem oculta — apenas sinaliza.” O juiz moderno, ao rejeitar qualquer interpelação pública, rompe essa função simbólica. Não sinaliza — sentencia. Não escuta — silencia. Não responde — se esquiva.

Na tradição judaica, o Talmude ensina: “todo juiz que julga com verdade faz Deus habitar entre os homens.” Mas para isso, é preciso julgar com humildade — e aceitar, antes de tudo, que também o julgador deve ser julgado.

Quando o espelho social é rejeitado, o juiz passa a viver de imagens internas — e não da realidade externa. E como dizia Lao-Tsé, “aquele que não conhece o povo, não conhece a si mesmo.”

O autoengano institucional é o mais perigoso dos delírios: porque se protege com a linguagem da legalidade e se alimenta da ausência de crítica. Um juiz que não suporta o julgamento do povo já não julga com justiça — apenas com vaidade.

E a vaidade, como advertia Marco Aurélio, é o mais sutil dos venenos: finge grandeza enquanto oculta fragilidade. Onde deveria haver prudência e escuta, há agora medo disfarçado de autoridade — e silêncio disfarçado de liturgia.

7. Epílogo — Quando o Direito Esquece sua Fonte e a Toga Evita o Espelho

“A censura é proibida.” Assim começou a fala da ministra Cármen Lúcia. Mas logo depois, o alerta: não se pode permitir “213 milhões de pequenos tiranos soberanos” — como se o problema do Brasil fosse o excesso de voz, e não sua supressão.

O soberano, conclui a Ministra Cármen, “é o direito brasileiro”. A frase soa prudente, mas carrega uma inversão perigosa.

Ao condenar a censura de modo abstrato, mas ao mesmo tempo criticar a multidão que se expressa, a ministra opera uma transição simbólica: do reconhecimento da liberdade ao temor da liberdade em uso.

E então, desloca o foco: do abuso estatal para o suposto excesso popular.

É exatamente esse tipo de manobra que, ao longo da história, precedeu os regimes do silêncio.

Toda censura começa assim: com a fala que diz proteger a ordem, enquanto tenta calar a crítica que revela a desordem real.

Quando a ministra afirma que o soberano é o direito — e não o povo —, revela uma desconexão com a própria genealogia da legitimidade democrática.

O direito não é uma entidade autônoma pairando sobre a sociedade. Ele é, como ensinava Rousseau, a expressão formal de uma vontade viva, que nasce da consciência coletiva e se materializa em regras justas.

Sem essa origem, o direito deixa de ser soberano — torna-se instrumento de contenção.

Na prática, confunde-se ordem com sossego, como se o ruído da cidadania fosse incompatível com o funcionamento das instituições.

Todavia, como ensinava Confúcio, “o bom governo não teme o barulho do povo — teme a perda da virtude”. O que ameaça a República não é a crítica em excesso, mas a escuta que se fecha.

Não é a crítica que ameaça a democracia — é o poder que não suporta ser visto.

O verdadeiro risco institucional não vem da pluralidade de vozes, mas do fechamento das consciências que já não se deixam interpelar.

A autoridade que teme a escuta está, no fundo, perdida de si.

Em todas as tradições sapienciais, o julgamento é um espelho: não apenas do réu, mas do juiz.

Julgar é expor-se à medida que se aplica. É isso que torna a justiça sagrada — não a toga, mas a reciprocidade. Não a liturgia, mas o olhar que responde ao outro com verdade.

O ministro que rejeita o escrutínio público não protege a República — protege-se da vergonha de não estar à altura dela.
Porque o olhar do povo não humilha: desperta. E quem verdadeiramente serve à justiça sabe que a grandeza de sua função está em ser medido por ela todos os dias.

O tempo das muralhas acabou. O poder do século XXI não pode mais se esconder atrás de símbolos que já não reverberam. É julgado em tempo real, por vozes reais, em espaços onde o ritual deu lugar à transparência.

Negar isso é negar o próprio chamado da história: o de um mundo que clama por autenticidade, responsabilidade e verdade.

Quando a toga se fecha ao julgamento popular, ela não se eleva — ela se esvazia. Torna-se ornamento sem sentido, autoridade sem alma.

E como ensina a Cabala, “a luz só habita os vasos que se quebram.” O juiz que não teme ser julgado é o que permite que a luz atravesse sua função.

Pois não há autoridade legítima sem vulnerabilidade — e não há justiça sem o risco de ser tocado pela verdade do outro.

O julgamento que mais assusta alguns ministros não vem das ruas, mas do silêncio íntimo da própria consciência — quando os efeitos de suas decisões finalmente baterem à porta.

Porque quando o espelho se impõe, já não basta o cargo, o título ou a toga. Só resta o que se é. E nisso, só os justos permanecem de pé.

8. Pós-escrito — Realismo Jurídico: Quando o “Direito” Vira o Nome Fantasia do STF

Permitam-me começar com uma história real, vivida por mim, que sempre me arrancou risos — mas que, com o tempo, também me ensinou algo profundo sobre o poder, o direito e o teatro silencioso das decisões judiciais.

Era 1999. Fui até o Presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas, Desembargador José Baptista de Vidal Pessoa, egresso da OAB pelo quinto constitucional.

Pessoa era um jurista de votos brilhantes, redigidos à mão com uma caligrafia que faria inveja a qualquer escriba clássico, e também de um humor cortante, tão afiado quanto sua inteligência jurídica.

Eu estava ali para cumprir uma missão ingrata: convencer o Presidente a deferir um Pedido de Suspensão de Liminar que tentava reverter decisão de primeiro grau, a qual determinava o pagamento imediato de vantagens pessoais a servidores, suprimidas por ato legítimo do Executivo em tempos de ajuste fiscal.

O clima era delicado. O então governador Amazonino Mendes e o Desembargador Pessoa eram adversários declarados — de mau a ferro e fogo, como se diz no linguajar amazonense, expressão reservada a rivalidades que ultrapassam o campo institucional e se enraízam em disputas antigas, quase míticas.

Para simplificar, Pessoa se referia a Amazonino como “o Imperador”.

Cheguei ao gabinete com um calhamaço de mais de duzentas páginas, cuidadosamente preparado por colegas da PGE.

Argumentação robusta, doutrina farta, jurisprudência alinhada — um verdadeiro monumento técnico. Agradeci a gentileza de me receber. Pessoa me olhou fixamente e, sem rodeios, lançou a pergunta:

“Pinho, o que é Direito?”

Na tensão do momento, recorri ao meu melhor recurso: o humor que desarma.

“Desembargador, sou filho de padeiro, neto de padeiro e bisneto de padeiro. Quem sabe o que é Direito é o senhor!”

Ele sorriu com ironia e devolveu:

“Isso mesmo, português! Direito é o que eu digo. Não o que tu dizes.”

“Pega esse pedido, resume em três páginas e volta.”

Obedeci. O pedido foi deferido. E naquela tarde, entre uma risada e um despacho, aprendi — na pele e a favor do meu cliente — o que os manuais não ensinam: o Direito é meio, nunca fim em si mesmo.

A letra da lei é apenas uma das personagens. O veredicto, muitas vezes, já caminha na alma do juiz antes mesmo da leitura.

O que o Desembargador Pessoa expressou com franqueza e humor é aquilo que muitos tentam ocultar sob camadas de solenidade e tecnicismo: o poder de julgar não nasce apenas da lei, mas da interioridade de quem a interpreta.

A toga não anula o humano — apenas o reveste. E é por isso que toda decisão judicial carrega, mesmo que disfarçadamente, a sombra da subjetividade e o peso do lugar de onde se fala.

Este é o centro nervoso do chamado realismo jurídico: a constatação de que o Direito não é um código neutro pairando sobre o mundo, mas um campo de forças onde razão, linguagem, vontade e poder se entrelaçam.

O que se diz jurídico nem sempre é o que é justo — e o que é justo nem sempre pode ser dito como jurídico.

Por outro lado, o que se torna “jurídico” é, muitas vezes, aquilo que pôde ser enunciado por quem detinha o monopólio da interpretação.

Nas democracias maduras, essa tensão é reconhecida.

Por isso o juiz é limitado por revisões, críticas públicas e, sobretudo, pelo constrangimento ético de responder perante aqueles em nome de quem julga.

Entretanto, no Brasil, quando o Supremo Tribunal Federal passa a se declarar última instância de tudo e de todos — inclusive da verdade, da linguagem e da moral pública —, ele deixa de decidir: ele passa a performar o monopólio da realidade.

É nesse ponto que o Direito deixa de ser expressão de justiça — e passa a ser nome fantasia de um poder que já não presta contas a ninguém além de si mesmo.

Como empresas que operam sob razão social distinta da atividade real, o STF opera sob a marca “Direito”, mas entrega — cada vez mais — ativismo normativo, engenharia institucional ou política disfarçada de jurisprudência.

Quando uma ministra da Suprema Corte afirma que “o soberano é o Direito brasileiro” — e não o povo —, está realizando uma transposição simbólica gravíssima: a fonte da soberania deixa de ser a comunidade e passa a ser o texto — ou pior, quem o interpreta.

E, por consequência, o soberano torna-se o intérprete supremo — e não mais o cidadão comum.

Essa operação não é apenas jurídica — é semiótica, política e ontológica. Substitui-se a vontade viva da comunidade por uma abstração formal controlada por poucos.

E, paradoxalmente, ao fazer isso, cria-se uma soberania que já não responde ao povo, mas apenas a si mesma.

O Direito, que deveria ser a expressão formal da consciência coletiva, torna-se novo dogma, e seus intérpretes, sacerdotes de um templo que exige reverência, mas não admite interrogação.

Como advertia Rousseau, a lei não é soberana — é instrumento da soberania. Confundir o instrumento com a fonte é como confundir a água com o cano: o que corre nas normas deveria ser a vontade popular.

Quando isso se inverte, o Estado deixa de ser democrático e passa a ser hierocrático: governo não dos sábios, mas dos intérpretes do sagrado jurídico.

É por isso que a frase, aparentemente inofensiva, é, na verdade, o sintoma de um drama profundo que atravessa nosso tempo: o risco de que o Direito deixe de ser linguagem da justiça — e se converta em linguagem da dominação.

Quando o povo já não é soberano — e o juiz já não se deixa julgar —, não estamos mais em uma República. Estamos diante de um novo regime: o da sacralização do veredicto como substituto da verdade.

O problema não é apenas normativo — é civilizacional.

Porque nesse modelo, o juiz já não serve à justiça — ele a preside como oráculo, consagrado não pela escuta, mas pela autoridade de quem interpreta o que ninguém mais pode ousar questionar.

A crítica vira pecado. O dissenso, blasfêmia. E o Direito — antes linguagem comum — torna-se idioma sagrado, restrito aos iniciados.

A liturgia se impõe sobre a escuta. A forma sobrepõe-se ao conteúdo. E, como na história que abri este capítulo, volta a ecoar, agora não mais com humor, mas como sentença simbólica:

“Direito é o que eu digo. Não o que tu dizes.”

8.1 – Quando o Direito se Torna Dogma, o Juiz se Torna Oráculo

A tragédia do realismo jurídico não está apenas no fato de ele existir — mas em sua naturalização. O escândalo não é o juiz ser humano, mas fingir que não o é.

O perigo não é o Direito conter margens de interpretação, mas o intérprete se tornar imune à crítica, impermeável à escuta e refratário à dúvida.

Em sua forma mais sutil, o realismo jurídico se transmuta em teologia normativa: o texto legal perde sua função instrumental e passa a ser tratado como escritura sagrada.

O tribunal, antes lugar de debate racional, converte-se em altar. E o juiz, ao invés de servidor público, passa a atuar como oráculo — não aquele que busca a verdade com humildade, mas aquele que a proclama com infalibilidade autoconcedida.

Essa mutação não é apenas jurídica, mas ontológica. Pois onde o juiz se torna oráculo, a justiça desaparece como processo dialógico e ressurge como decreto sacerdotal.

A sentença já não precisa convencer — basta que se cumpra. O fundamento se dissolve na autoridade, e a autoridade, por sua vez, já não precisa mais de legitimidade: basta-lhe a liturgia.

É nesse ponto que o Direito se desconecta de seu eixo civilizacional. Deixa de ser construção coletiva da razão pública para se tornar imposição hierática da vontade de poucos.

Não se busca mais a justiça — busca-se a confirmação da autoridade. E o povo, destinatário último da norma, passa a ser tratado como profano: indigno de compreender o mistério jurídico, incapaz de questionar os seus guardiões.

O STF, em sua fisionomia recente, tem encarnado com perfeição essa transformação.

Ao recusar o contraditório público, ao deslegitimar qualquer crítica como “ataque às instituições”, ao blindar seus membros de toda responsabilização prática e simbólica, a Corte caminha para além da República — rumo à hierocracia togada.

Essa hierocracia não se apresenta como tirania, mas como virtude. Usa a linguagem da democracia, mas nega sua alma: o princípio da deliberação plural, da vulnerabilidade institucional e da humildade epistemológica.

Eis o paradoxo: quanto mais se afasta do povo, mais o Supremo invoca o povo em sua retórica. Quanto mais se isola na bolha dos iniciados, mais fala em nome da coletividade.

O resultado é um simulacro de escuta, onde a participação popular é tolerada apenas como plateia — nunca como interlocução real.

Mas não há justiça onde não há escuta. E não há escuta onde a autoridade se converte em dogma.

A função filosófica da Justiça é, sempre, uma mediação entre a verdade que se busca e o poder que se exerce. Quando esse poder se julga dono da verdade, o que sobra é idolatria — não jurisprudência.

E o juiz, que deveria encarnar a dúvida responsável, transforma-se em sumo sacerdote de um templo onde a linguagem jurídica deixou de ser ponte para se tornar muro.

Quando o Direito se torna dogma, o juiz deixa de servir à lei — e passa a exigir adoração.


8.2. Quando Nem o Ar do Pensamento Está a Salvo

A frase “o soberano é o Direito” já foi desmontada acima em sua ambiguidade simbólica.

Mas ela se torna ainda mais inquietante quando lemos o presente à luz de seu subtexto tecnológico e geopolítico.

Estamos atravessando um momento em que o território do discurso já não é apenas físico ou jurídico — é algorítmico.

E o novo soberano não é apenas o Estado — são os códigos que definem o que será ouvido, o que será silenciado e o que será nunca sequer exibido.

O que antes era censura explícita agora se esconde sob o verniz da automação.
Posts são apagados sem explicação, canais desmonetizados sem apelação, vozes excluídas sem julgamento. E o mais grave: tudo isso parece natural — e, por isso mesmo, torna-se invisível.

Mas agora, o cerco se fecha ainda mais: os próprios controladores dos algoritmos — as big techs — estão sendo forçados a se ajoelhar diante do novo Leviatã institucional.

E o STF, que já não se comporta como última instância, reivindica o direito de decidir quem pode falar, onde se pode falar e o que pode ser dito. Não mais como juiz de litígios, mas como curador do discurso público.

A distopia digital brasileira não está no futuro — ela já começou. E o dilema agora é outro:
Será preciso emigrar digitalmente para ser livre?

Será necessário fingir que estamos em Nova Iorque, via VPN, para que possamos debater Brasília com liberdade?

O episódio do X (Twitter) no Brasil revelou uma brecha paradoxal e quase absurda: para ter liberdade de expressão em solo brasileiro, foi preciso “sair” do país virtualmente.

Como nos regimes mais autoritários da história, o pensamento passou a ser refugiado.

E se a ameaça do Google deixar o país se concretizar, talvez vejamos algo inédito:
uma nação de consciências exiladas dentro do próprio território.

Brasileiros que precisarão migrar digitalmente com suas contas, suas vozes e sua linguagem para plataformas hospedadas fora do país — um êxodo algorítmico, silencioso e cada vez mais necessário.

A história é implacável com quem se esquece de seus ciclos. Quando se comprime a voz, ela muda de canal. Quando se espremem ideias, elas vazam pelos poros da tecnologia.

Quando se oprime o capital humano e financeiro, ele muda de destino. E quando o poder se encastela demais, não ouve o rumor da multidão que se agita do lado de fora.

Luís XVI, Ceau?escu, Kadhafi...
Não são fantasmas — são alertas.
Não são exemplos de justiça popular — são consequências da recusa em escutar.

Não defendo a violência. Defendo a escuta.
Mas a história mostra que, quando a escuta falha, a força se impõe — e todos perdem.
Especialmente os que se imaginavam invencíveis.

É por isso que insisto: a liberdade não é apenas um direito. É uma válvula civilizacional. Quando ela entope, o sistema não se aquieta — explode.

O que virá depois, ninguém sabe. Mas se hoje restar ainda um juiz, um ministro, um governante ou um cidadão que ainda consiga olhar-se no espelho, que saiba: não é o povo que deve temer o julgamento — é o poder que precisa reaprender a escutar.

8.3 — O Choro de Toffoli e a Ilusão do Vitorioso

A emoção de Dias Toffoli ao final do julgamento do Marco Civil da Internet poderia ter múltiplas origens — e talvez todas atuem simultaneamente.

Pode ter sido gratidão aos pares, que o ajudaram a colocar um freio simbólico na identificação desconfortável como "o amigo do amigo do meu pai".

Talvez tenha sido alívio institucional, por ter sido novamente acolhido no ventre protetor da unanimidade suprema.

Pode ainda, sim, ter sido também o prazer velado de uma vitória sobre a liberdade de expressão, agora ainda mais subordinada ao poder que ele próprio representa.

Mas o que Toffoli — e tantos outros como ele — talvez não percebam é que esse choro de emoção pode muito bem ser o prenúncio de uma dor ainda maior: a dor de quem não viu o mundo virar contra si.

A dor de quem acredita ter vencido o tempo, mas apenas conseguiu adiar o julgamento da história.

A dor de quem confunde o silêncio ao redor com aprovação — quando, na verdade, é apenas o silêncio que antecede a tempestade.

É sempre assim com os que se sentem donos do tempo: confundem o eco dos próprios gestos com a aclamação do universo.

Aqueles que hoje celebram o silenciamento do outro, amanhã conhecerão o silêncio por falta de escuta.

E mais, esses que hoje impõem medo, amanhã verão o medo voltar em forma de insurreição. A vitória sobre a liberdade é sempre uma vitória provisória — e, no fundo, trágica.

Por último, o que chora o juiz que impôs silêncio à sociedade? Será júbilo? Alívio? Ou será o início silencioso do arrependimento que ainda não ousa se nomear?

Ao contrário do que parece, a vitória que se obtém sem escuta nunca é total. Ela é instável, vigilante, e carrega consigo o fardo de ter vencido não por persuasão, mas por imposição.

O poder que se sustenta pela mordaça pode calar bocas — mas não cala consciências. E o silêncio que se conquista à força ecoa, mais tarde, como culpa tardia ou vergonha não confessada.

A história é paciente, mas implacável. Foi generosa ao permitir que um juiz se emocionasse diante de uma conquista simbólica — mas será severa quando essa emoção se revelar miopia.

Porque o poder que não escuta é o mesmo que não percebe o chão se movendo. E enquanto comemora o controle sobre as palavras, deixa escapar os sentidos.

A realidade, porém, já bate à porta: o Google, uma das maiores empresas do mundo, ameaçou deixar o Brasil diante do novo regime de censura judicial.

Se essa saída se confirmar, ela poderá levar consigo o pedido de sanções internacionais — com apoio do governo americano — sob a justificativa da violação sistêmica à liberdade de expressão.

E aí, o choro de emoção poderá se converter no choro de uma elite jurídica isolada, confrontada por um mundo que já não aceita o autoritarismo travestido de jurisprudência.

Nem a toga, nem os votos, nem a mídia amestrada serão escudo suficiente.

E nesse ponto, talvez aquele que hoje verteu lágrimas de emoção, verta lágrimas de espanto. E, quem sabe, nesse momento, compreenda — tardiamente — o que dizia Marco Aurélio:

"Tudo o que é erguido sem verdade, desaba com o tempo."

Em todas as tradições sapienciais — do Evangelho à filosofia estoica, da Cabala à tragédia grega —, o julgamento é visto como espelho.

Não revela apenas o réu. Revela, sobretudo, o juiz. Julgar é sempre uma forma de exposição: quem aplica a medida se revela por ela.

E quando essa medida é desproporcional, injusta ou disfarçada, o veredicto se volta — ainda que com atraso — contra quem o proferiu.

Toffoli talvez não tenha chorado pelo que fez — mas pelo que teve que silenciar em si para poder fazer. E esse silêncio interior é, com frequência, o prenúncio da verdadeira sentença: aquela que não vem dos tribunais, mas da consciência.

E, ao fim, a frase que resume esse ciclo trágico pode não ser jurídica — mas sapiencial:

"Aquele que fecha os ouvidos ao clamor da verdade ouvirá o grito da realidade mais adiante."

Porque não é possível vencer a liberdade sem, em algum momento, ser vencido por ela.

8.4. A Última Batalha é Simbólica: Retomar o Significado do Direito

Não é a extinção do Supremo que salvará a justiça. Tampouco o ataque às instituições, ou o ódio aos juízes.

O que está em jogo é mais profundo: é o sentido do próprio Direito — esse pacto invisível que sustenta o edifício civilizacional e que, quando corrompido, não destrói apenas leis, mas dissolve a própria linguagem da justiça.

Retomar o significado do Direito é, antes de tudo, um ato simbólico. É devolver às palavras jurídicas o peso da verdade — não como dogma, mas como medida partilhada entre razão, ética e comunidade.

Porque o Direito sem verdade se torna instrumento de manipulação. E o Direito sem comunidade se torna ritual de casta.

É por isso que a luta fundamental de nosso tempo não é entre poderes — é entre sentidos.

Entre o que o Direito deveria significar e o que dele se tem feito. Entre a justiça como escuta e a jurisprudência como performance. Entre a lei como laço e a norma como laçada.

Como advertia Viktor Frankl, "entre o estímulo e a resposta, há um espaço". E é nesse espaço que mora a liberdade — inclusive a liberdade de interpretar.

Mas quando esse espaço é tomado por estruturas que se autojustificam, que se absolvem preventivamente e que se blindam contra qualquer interpelação, o que resta não é o Direito — é a sua caricatura.

A tarefa, portanto, é filosófica. Mas também espiritual. Porque exige não apenas refutar o erro, mas curar a fratura simbólica que o erro causou.

Exige lembrar que o Direito é um espelho: devolve à sociedade o reflexo do que ela aceita como legítimo. Se esse espelho for distorcido, não é a imagem que deve ser corrigida — é o espelho que precisa ser refeito.

É por isso que, como dizia Santo Agostinho, “uma lei injusta não é lei”. E como ensinava Martin Buber, “tudo depende do entre”.

Entre o juiz e o povo, entre o texto e o sentido, entre a toga e a consciência — ali é que se joga a verdadeira dignidade do Direito.

O que hoje se apresenta como crise jurídica é, no fundo, uma crise ontológica: a ruptura entre o nome e a essência, entre a autoridade e o vínculo que a legitima.

O STF já não é contestado por suas decisões apenas — mas pelo vazio simbólico que começa a cercar seus enunciados.

E é aqui que a filosofia, a poesia e a espiritualidade podem reencontrar seu papel: o de devolver alma à linguagem, centro ao logos, vínculo à função.

Talvez o papel de quem escreve, resiste e denuncia — como este texto pretende — não seja o de vencer, mas o de recordar.

Recordar que o Direito não nasceu para proteger os fortes, mas para limitar seus abusos.

Que a Justiça não se expressa pela força do gavel, mas pela coragem de escutar. Que a verdade não se impõe — mas resiste.

E, além disso, que todo sistema, por mais blindado que esteja, ruirá se esquecer do que o justifica.

Porque, como ensina a Cabala, “quando o vaso se quebra, a luz encontra por onde escapar”. Que nossas palavras, então, sejam rachaduras — e não ruínas.

Porque onde houver ainda uma rachadura, há esperança de luz. Onde houver escuta, ainda haverá justiça.

E que, no silêncio entre uma decisão e outra, ainda reste alguém que se pergunte: o que é, afinal, o Direito?

(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.

NR - Os textos assinados refletem a opinião dos seus autores. O Poder é contra qualquer forma de censura e controle dos meios de comunicação, sejam tradicionais ou digitais.
imagem noticia-5

Deseja receber O PODER e artigos como esse no seu zap ? CLIQUE AQUI.

Confira mais notícias

a

Contato

facebook instagram

Telefone/Whatsappicone phone

Brasília

(61) 99667-4410

Recife

(81) 99967-9957
Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nosso site.
Ao utilizar nosso site e suas ferramentas, você concorda com a nossa Política de Privacidade.

Jornal O Poder - Política de Privacidade

Esta política estabelece como ocorre o tratamento dos dados pessoais dos visitantes dos sites dos projetos gerenciados pela Jornal O Poder.

As informações coletadas de usuários ao preencher formulários inclusos neste site serão utilizadas apenas para fins de comunicação de nossas ações.

O presente site utiliza a tecnologia de cookies, através dos quais não é possível identificar diretamente o usuário. Entretanto, a partir deles é possível saber informações mais generalizadas, como geolocalização, navegador utilizado e se o acesso é por desktop ou mobile, além de identificar outras informações sobre hábitos de navegação.

O usuário tem direito a obter, em relação aos dados tratados pelo nosso site, a qualquer momento, a confirmação do armazenamento desses dados.

O consentimento do usuário titular dos dados será fornecido através do próprio site e seus formulários preenchidos.

De acordo com os termos estabelecidos nesta política, a Jornal O Poder não divulgará dados pessoais.

Com o objetivo de garantir maior proteção das informações pessoais que estão no banco de dados, a Jornal O Poder implementa medidas contra ameaças físicas e técnicas, a fim de proteger todas as informações pessoais para evitar uso e divulgação não autorizados.

fechar