
Memória viva - Dionary, uma lutadora que desafia o tempo, por Natanael Sarmento*
04/07/2025 -
O espetáculo teatral “Lady Tempestade” é monólogo extraído do diário da advogada pernambucana Mércia Albuquerque. Atuação magistral da atriz Andréia Beltrão premiada com Sucesso de bilheteria. O jornalista e arquivista Roberto Monte - DHNET –RN - guardião do diário nos informou que o nome de Dionary jovem estudante de Direito da FDR sequestrada e torturada em 1973 é mencionada mais de uma vez no monólogo.
Nos bastidores
Longe dos palcos, em junho passado, Dionary completou 80 anos. Comemoramos a data emblemática com ela em Vitória – ES – onde vive nas últimas quatro décadas. Aproveitamos a 27ª Conferência de Solidariedade a Cuba, realizada na capital capixaba. Dionary proliferou. São quatro filhos, nove netos e 12 bisnetos. Jovens e velhos camaradas da Unidade Popular Pelo Socialismo e do PCR – Partido Comunista Revolucionário, prestaram justa homenagem à combatente veterana que mantem viva a chama da juventude insurgente.

Na real
A trajetória política e ideológica em defesa da vida e do socialismo de Dionary vem de longe. Nela desenvolveu talentos de jornalista, propagandista e aprendeu a falar com plantas e animais – a floresta no quintal da sua casa abriga um míni zoológico. Essa figura ímpar pinta, borda e cozinha muito bem. Adora música, vinhos e literatura. Lê tudo que lhe cai nas mãos, desde cedo. Com 16 anos foi 2º lugar em concurso nacional de literatura da embaixada lusitana sobre a obra de Luís de Camões. Mas vou datar 8 abril de 1964, quando ela paria a filha Rosa, em quarto do Avenida Hotel. Era a nossa casa. Na esquina da Av. Duque de Caxias com a rua Sachett, bairro da Ribeira, Natal. Cercada por numeroso contingente do Exército. Invadem o hotelzinho arrendado por Salomão Morais e dona Rosa, nossos pais. O grotesco aparato militar do cerco do Avenida Hotel daria para invadir o Paraguai. Caçavam o comunista Salomão, que se evadiu, logo depois da consumação do golpe do 1º abril e da queda, sem resistência, do presidente João Goulart. Salomão Morais foi preso três anos depois, no Ceará. E passou temporada preso no 16º RI em Natal.
Ordem e disciplina
Nem a parteira podia sair, nem o menino podia entrar em casa. Ordens superiores. A segurança nacional se sentia ameaçada em partos caseiros e voltas de crianças da escola, dez anos incompletos tinha o escriba. Em polvorosa e completa desordem ficaram hóspedes e o hotelzinho. Revirado de ponta cabeça, cada gaveta. Nem sinal das armas, panfletos subversivos, muito menos do “ouro de Moscou”.

Insubmisso
Na idade do alistamento militar obrigatório comparecemos ao Quartel indicado 17º Regimento de Obuses das Rocas, 1970. Considerado apto ao serviço recebemos ordem para incorporação no Batalhão de Engenharia e Combate de Nova Descoberta. No consenso da célula familiar entendíamos que servir ao Exército era desservir à pátria. Militares brasileiros capachos do imperialismo americano oprimiam o povo e dilapidavam a Nação. Na data aprazada da apresentação no Becom estávamos no autoexílio do Recife. Tipificado no CPM – Código Penal Militar como “insubmisso”. Não é o mesmo que desertor, ou refratário, pois não atrasou o alistamento, tampouco deserta quem não se apresenta.
Recife
O acolhimento foi na casa da irmã Dionary, no Recife. Ela estudava direito e tocava a vida na companhia do também estudante da Faculdade de Direito do Recife Leonardo Trindade Cavalcanti. O pai da última rebentação do quarteto filial. O minúsculo apartamento da Rua dos Emboabas não comportava 3 adultos e 4 crianças. Mudamos para a rua Leopoldo Lins, 85, Edifício Magnus, Boa Vista. Servia de aparato ecumênico e abrigo temporário de opositores da ditadura. Fazíamos reuniões e tomávamos decisões de ações práticas. Provam isso os jornais semiclandestinos “Reflexo” destinado aos estudantes e o “Hora Extra” distribuídos nas fábricas. Nos tempo da maldade, todos corriam riscos.
Segurança de quem?
Estudamos os dois últimos anos do então Curso Clássico (2o grau para a área de Humanas) no Ginásio Pernambucano - 1972/73. O percurso do Ginásio Pernambucano ao apartamento da rua Leopoldo Lins, fazíamos em caminhadas noturnas. Na calçada da avenida Visconde de Suassuna, em frente ao quartel da Companhia de Guardas do Exército, a baioneta em pedestal de cimento do “Monumento ao fuzil”. Certa vez, paramos para acender cigarro e ler a plaqueta do esdrúxulo monumento. Incontinenti surgiu a sentinela, arma em punho. Não podíamos ficar parados na calçada, área de “segurança”. O gatilho da memória do episódio disparou décadas depois. Na democracia, com os grupos de “manifestantes” bolsonaristas acampados nos portões dos quartéis pelo país afora. A boiada de golpistas do 8 de janeiro de 2023, dos 101 acampamentos mantidos por empresários com a cumplicidade dos comandantes militares. E estímulo de golpistas de pijama, como o General Villas Boas, ex-chefe do Exército. Defender o AI5, elogiar torturadores e pedir anistia numa democracia é moleza. Difícil é defender a democracia num regime ditatorial militar fascista.

Tempos de chumbo
1973, voltávamos do Ginásio Pernambucano. A rua Leopoldo Lins estava interditada por viaturas e agentes dos órgaos de segurança. Dionary foi presa em casa. Na frente dos filhos menores, apavorados. Dionary Filha 12 anos, Rosa Verônica 11, Lourival Esperidião 9 anos, Martha Cavalcanti 3, anos. Demos meia volta, procuramos Maria de Fátima Araújo, irmã do Leonardo. Leo havia sido sequestrado no mesmo dia, na rua Fernandes Vieira. Junto com Fátima recorremos aos serviços da advogada Mércia Albuquerque, que se mostrou solidária e aceitou prontamente. Eram pouquíssimos os advogados a ousar defender “subversivos” presos políticos. Muito medalhão daquilo roxo amarelava, ou só funcionava com muita grana. Dionary passou 12 dias sob torturas. Abortou na cadeia o que seria o quinto rebento. Ela sobreviveu, dignamente. Tem o respeito dos companheiros de carceragem daquela tempestade repressiva. Atestam conduta corajosa, os também presos e torturados José Nivaldo júnior, Maria do Carmo Tomaz, Leonardo Cavalcanti e Biu Vicente. Na prisão ela reconheceu os destroços humanos de Manoel Lisboa, dirigente do PCR, brutalmente torturado e assassinado nos porões do QG da 7ª RM em Recife. A ditadura forjou versão de morte em São Paulo. Ardil manjado da repressão muitas vezes utilizado. É icônico a montagem do “suicídio” de Vladmir Herzog, em 1975.
Dionary hoje
Nem heroína, nem personagem de peça. A querida irmã e camarada de lutas é uma octogenária extraordinária, permanece firme na luta pelo socialismo, nos limites da idade e da saúde. Convicta da superioridade material e moral do socialismo e da necessidade de uma civilização melhor mais humana.
Ingresso
Rosinha nascida no 8 de abril de 64 quis presentear a mãe Dionary com ingresso da peça “Lady Tempestade” em temporada de Belo Horizonte. Rosa moveu céu e terra e sua filha conseguiu o tal ingresso. A lotação da temporada mineira esgotada. Dionary prestigiará o espetáculo. Sou capaz de apostar que ela vai cantarolar no ônibus da viagem à Minas aquela música do Gil: “Há que surgir uma estrela no céu cada vez que você sorrir/ há que apagar uma estrela cada vez que você chorar/ O contrário também pode acontecer/ De uma estrela brilhar /Quando a lágrima cair”, porque afinal de contas, ainda estamos aqui.
*Natanael Sarmento é professor e escritor. Do Diretório Nacional da Unidade Popular Pelo Socialismo.
NR - Os textos assinados expressam a opinião de seus autores. No caso deste depoimento, o diretor de O Poder, José Nivaldo Junior, ratifica as informações pessoais e históricas sobre Dionary, uma pessoa admirável, uma heroína, cuja amizade começou em 1970 e dura até hoje.

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