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É Findi - Infância Interrompida, conto por Maria Inês Machado*

05/07/2025 -

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O sol queimava sem piedade. O solo árido, rachado, era retrato da morte lenta da caatinga esturricada. O gado tombara, as plantações secaram, a esperança escorria pelos vãos da terra rachada. As cacimbas cavadas ao redor do leito seco do rio já não tinham vida. No fundo do pote de barro, a pouca água restante era barrenta — como se a própria dignidade também estivesse se dissolvendo ali.

José olhava a terra calado. A família inteira perdia a fé em silêncio. Restavam a fome, a dor, a desilusão. A seca, mais do que castigo, parecia um lamento divino que ninguém mais escutava. Matava a fé, queimava os sonhos, silenciava qualquer traço de alegria.

Naquela manhã, Luzia fora chamada. O pai a observava com olhos tristes. Disse, sem rodeios, que no dia seguinte o Coronel Soares viria buscá-la. Iria para a cidade grande, trabalhar na casa dele.
Ela sentiu o mundo desabar. Uma pedra no peito. As lágrimas não pediram permissão, desceram caladas. Não discutiu. Foi até a mãe, buscando amparo.
Disse que não queria ir. Que não gostava daquele homem.
A mãe, cansada, com voz embargada, respondeu como quem repete uma reza antiga: o roçado secou, o milho, o feijão, a mandioca, tudo morreu. Nem a vaca Estrelinha resistiria muito. Só mandacaru para enganar o estômago. Quem sabe São José atendesse, ou o Padim Padre Cícero...

Luzia não respondeu. Baixou a cabeça e saiu. Morena, de olhos castanhos semelhantes os da mãe, usava duas tranças brilhantes com óleo de coco. O corpo esguio, o vestido de chita já dobrado na mala de madeira. Tinha apenas dezesseis anos. Sonhava com um cavaleiro bom, casamento na igrejinha com a bênção do padre Amâncio, uma casa de taipa, filhos correndo no quintal, o cheiro de café e pão de milho ao amanhecer.

Na manhã seguinte, o sol no rosto confirmava que não fora sonho. Era real. Era partida. Abandonar o lugarejo era queimar a alma em brasas.
Entrou na camioneta tomada pelo temor. Os olhos do homem grisalho lhe causavam medo. Esperava que a esposa dele estivesse junto. Não estava. Estranhou. Calou. Tentou pensar em coisas boas.
Talvez uma filha do Coronel tivesse sua idade. Poderiam ser amigas, brincar de boneca. As dela deviam ser de verdade. As de Luzia, a mãe fazia de retalhos. Lembrava-se das panelinhas de barro, da mesinha de gravetos, guisado de faz-de-conta cozinhado ao fogo de tijolos e lenha. Quitéria ajudava. Antônia, Francisca também.

Aos domingos, sentavam-se sob o pé de umbuzeiro. Depois, o balanço de corda. Será que na cidade havia balanços de verdade?
Perdeu-se nesses pensamentos, até acordar no escuro. Um quarto fechado. Um ronco próximo. Correu até a porta. Trancada.
A voz dele cortou o silêncio: que não gritasse, ninguém ouviria. Que, se fosse boazinha, ganharia presentes. Entregou-lhe um pacote. As mãos tremiam. Ele se dizia seu benfeitor.
Vieram os encontros forçados. A raiva corroía a alma.
Passou a cuidar da casa. Disseram que o salário seria enviado à família.

Conheceu outras meninas, de lugares diferentes, com histórias semelhantes. À noite, se reuniam e falavam baixo. Todas partilhavam a mesma dor.
Vieram convites, promessas, ilusões. Os primeiros drinks. Depois, a mudança de endereço. O dinheiro por noite — a proposta era simples e suja. Aceitou. Combinou com Tonico, o motorista do ônibus, para que entregasse o dinheiro aos pais.
Aos poucos, os olhares começaram a despir seu corpo antes mesmo da palavra. Passou a crer que havia nascido apenas para satisfazer os instintos das bestas-feras.

A vida cheirava a lama. Uma lama parecida com a da seca.
A história de Luzia não era só dela. Era a de muitas meninas do sertão, marcadas pela pobreza, pela falta de estudo, pelas responsabilidades precoces, pelos casamentos impostos, pelas mãos dos que tomam o que não lhes pertence. Histórias atravessadas pela queima cruel das etapas do corpo e da alma.
Infância interrompida.

A seca é impiedosa. Conduz à fome, destrói sonhos, devora a dignidade e apaga histórias de vida.

*Maria Inês Machado é psicóloga e escritora. Autora do livro infantojuvenil 'A Cidade das Flores'.

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