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Ensaio - O amor em Matrix: da máquina ao mistério - a trilogia ontológica da salvação pelo outro

05/07/2025 -

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Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

1. Preâmbulo — Quando o amor rasga o código

“Ainda há quem não entenda que o romance entre Neo e Trinity é um dos grandes pilares do filme.” A frase, publicada pelo site AdoroCinema em julho de 2025, merece não apenas menção, mas reconhecimento. Em tempos de leituras apressadas e análises rasas, a matéria resgata uma dimensão esquecida por muitos: o Amor como estrutura simbólica e emocional da saga Matrix.

O gesto de trazer à tona esse aspecto fundamental é mais que jornalístico — é filosófico. Porque denuncia, mesmo que indiretamente, a cegueira espiritual de nosso tempo: um tempo que, habituado a interpretar tudo como estratégia, algoritmo ou identidade performática, desaprendeu a reconhecer a potência reveladora do Amor.

Vivemos numa era em que o afeto é tratado como ruído, e a entrega como fraqueza. O Amor foi relegado à categoria de clichê, quando talvez seja o último reduto de realidade num mundo de simulações. Mas em Matrix, é justamente o Amor que reprograma a ontologia do sistema. Neo não desperta por lógica. Ele desperta por vínculo.

Este ensaio não se propõe a comentar um roteiro de ficção científica. O que aqui se pretende é extrair de Matrix aquilo que ela verdadeiramente é: um mito filosófico contemporâneo, uma narrativa simbólica que retoma, em linguagem tecnológica, os dilemas eternos da metafísica e da espiritualidade.

O que é real? O que é liberdade? O que nos torna humanos? E — sobretudo — é possível romper um sistema total se não houver Amor? Perguntas como essas atravessam Platão, Buda, Confúcio e Agostinho — e retornam aqui, disfarçadas em cabos, códigos e cliques. Mas sempre com o mesmo fundo: o que salva é o laço.

O Amor é o fio que conduz para fora da caverna. Não o amor sentimental ou possessivo, mas o Amor como força ontológica, como princípio que antecede a consciência e que confere sentido à existência. Não por acaso, Trinity — nome que evoca comunhão, transcendência e unidade — é a primeira a ver quem Neo verdadeiramente é.

Neo não é o Escolhido por destino, mas por relação. Ele se torna quem é porque alguém o reconhece antes de ele se conhecer. Como na pedagogia de Sócrates, onde o mestre não informa, mas desperta, Trinity não impõe nada: ela ama — e esse Amor é que revela.

Como ensinava Martin Buber, “no princípio está a relação.” O “eu” só se torna verdadeiro quando encontra o “tu”. Matrix, assim lida, é mais do que uma crítica à alienação digital: é uma afirmação da ontologia relacional. Um manifesto silencioso contra a solidão do sistema.

Neo não vence a Matrix porque domina o código. Ele vence porque transcende o código — e o faz por Amor. Amor por Trinity, que o chama à vida. Amor pela humanidade, que o leva ao sacrifício. Amor pela verdade, que o liberta.

É esse o eixo que percorre toda a trilogia e que este ensaio buscará demonstrar: que Matrix não é apenas uma história sobre máquinas e rebeliões, mas uma epopeia espiritual sobre o Amor como critério do real. Um Amor que não simula — revela. Que não programa — redime.

2. O amor como despertar — Matrix (1999)

No primeiro filme da trilogia, Thomas Anderson é apresentado como um homem fragmentado entre dois mundos: o da rotina digital anestesiante e o da inquietação existencial. Por fora, vive o conformismo automatizado; por dentro, algo pulsa — como se uma verdade esquecida o chamasse.

Sua jornada, no entanto, não começa por lógica ou evidência. Ela começa porque alguém o vê. Alguém o acompanha em silêncio, observa seus gestos, acredita nele antes que ele acredite em si mesmo. O nome dessa presença é Trinity.

Trinity não lhe oferece um mapa, nem o convence por argumentos. Ela o guia, não como estrategista, mas como alma desperta. Ela é, simbolicamente, a Sophia — a Sabedoria que desce ao mundo para conduzir o buscador. Ela não o recruta para uma guerra, mas o chama para ser inteiro.

O momento decisivo ocorre quando Neo é abatido pelos agentes e morre. Tudo parece terminado. Mas ali, no limiar entre o fim e a revelação, Trinity se inclina e diz:

“O Oráculo me disse que eu me apaixonaria pelo Escolhido. E é por isso que você não pode estar morto. Porque eu te amo.”

Esse gesto não é um clichê romântico. É uma profecia autorrealizável, um amor que rompe as leis físicas e metafísicas. O beijo, símbolo ancestral da comunhão, ressuscita Neo. Ele desperta, mas já não é Thomas Anderson. Ele não volta como indivíduo funcional, mas como verbo encarnado: Neo, o novo.

Como no conto arquetípico em que a princesa desperta o herói adormecido, aqui é o feminino que restaura a identidade do masculino. Mas Trinity não é princesa frágil: é força iniciadora. Neo renasce pela via do amor, não pela da força.

Filosoficamente, esse momento realiza a têse central de Martin Buber: “No princípio está a relação.” O eu não é essência isolada. O eu se revela apenas quando encontra o tu. A identidade de Neo não é definida por uma função no sistema, mas por um olhar que o reconhece para além dele.

Trinity vê aquilo que nem ele consegue ver. Ela antecipa sua missão com o olhar de quem ama. E amar, aqui, é revelar o outro a si mesmo, como ensina Lao-Tsé: “Conhecer os outros é inteligência; conhecer-se a si mesmo é sabedoria; mas fazer o outro lembrar quem é — isso é compaixão verdadeira.”

Na linguagem da Cabala Judaica, Trinity atua como uma centelha de Chésed — o Amor misericordioso e expansivo. Ela atrai Neo do mundo das Klipot — as cascas de ilusão que aprisionam a luz — e o reconecta à sua centelha divina. É a travessia da separação para a unificação.

Trinity é também a Shekhiná — a presença feminina do divino, que acompanha o exilado e o chama de volta à origem. Como no Êxodo, ela diz: “Eu estive contigo o tempo todo.” E no deserto das máquinas, isso basta para fazer florescer o impossível.

Matrix não é apenas uma crítica à realidade simulada. Ela propõe uma ontologia relacional: o ser se revela no encontro. E o primeiro encontro real de Neo não é com Morpheus, nem com o Oráculo — é com Trinity. Ela não lhe dá respostas: ela o ama — e, por isso, o desperta.

3. O amor como escolha — Matrix Reloaded (2003)

No segundo filme da trilogia, a tensão entre destino e liberdade atinge seu ápice. A narrativa mergulha mais fundo nas engrenagens do sistema, revelando que mesmo a rebelião já está prevista — e, portanto, controlada.

Neo é conduzido até o Arquiteto: uma figura glacial, geométrica, dotada de linguagem analítica e desprovida de paixão. Ele representa o Logos sem Eros, a razão sem transcendência, o sistema que calcula tudo — inclusive a anomalia que o desafia.

“Suas respostas foram mais rápidas do que as de qualquer outro...”, diz o Arquiteto.
“Interessante.”

Neo, diferentemente de suas versões anteriores, faz uma escolha fora do padrão: em vez de seguir o protocolo sistêmico e reiniciar o ciclo da Matrix, ele opta por salvar Trinity. Um gesto de Amor — e de insubordinação ontológica.

Esse é o verdadeiro ponto de ruptura. Ao escolher Trinity, ele interrompe o eterno retorno da lógica sistêmica. O Amor, aqui, não é afeto: é o que escapa à previsão. É o que não cabe no algoritmo.

Sua decisão parece irracional — e talvez o seja. Mas aí reside a força do gesto. Como diria Kierkegaard, trata-se do salto da fé: uma escolha sem garantias, ancorada não na razão universal, mas na fidelidade ao vínculo singular.

Ele desconsidera a salvação estatística da humanidade para afirmar o rosto concreto do outro. Um gesto profundamente existencial: “Ama o próximo” antes da humanidade. Age como quem sabe que o universal sem o singular é vazio.

O Amor, nesse contexto, não é o oposto da lógica. É sua transfiguração. Neo não nega o sentido do sistema — ele o supera por dentro, com um gesto que reintroduz o humano no centro do cálculo.

Ao invadir o código de Trinity, literalmente, para ressuscitá-la, Neo encarna a união entre matéria e espírito. Ele não apenas a salva: ele entra em seu coração e o reinicia. A imagem é simbólica e profunda: o Amor recria a vida, não a partir de fora, mas de dentro.

Neste ato, Neo deixa de ser apenas o Escolhido por uma profecia. Ele torna-se amante, ou, como diria Gabriel Marcel, “ser é ser para o outro”. A missão transcendental é, agora, corporificada num gesto íntimo. A salvação do mundo passa pelo Amor concreto.

É esse excesso — esse “irracional” aos olhos do Arquiteto — que torna Neo imprevisível. Ele já não age como variável estatística. Ele transborda o cálculo. E é nesse transbordamento que habita a liberdade.

Na linguagem de Hegel, o Amor é a negação da negação. O sistema nega a liberdade sob o manto do controle. Neo nega essa negação ao afirmar um ato que o sistema não pode prever. Surge assim a superação dialética — um novo nível de realidade.

O Amor, portanto, não é fuga da razão, mas aquilo que a ultrapassa sem destruí-la. É o que insere sentido onde antes havia apenas simulação. A Matrix treme porque, pela primeira vez, encontra algo que não pode traduzir em código: uma escolha sem cálculo.

Essa escolha tem nome, rosto e corpo. E por isso é revolucionária.



4. O amor como sacrifício — Matrix Revolutions (2003)

No último filme da trilogia, a narrativa assume um tom abertamente messiânico. A jornada de autoconhecimento dá lugar ao destino da entrega. O herói que aprendeu a ver, agora caminha cego. Mas sua cegueira é simbólica: seus olhos foram retirados para que ele finalmente enxergue o invisível.

Trinity morre nos braços de Neo. Perfurada, serena, resplandecente. O corpo vencido pela queda, mas o espírito elevado pela lucidez. Antes de partir, ela diz:

“Você me mostrou o que é amar. Eu nunca pensei que pudesse amar assim.”

Essa fala não é apenas uma despedida. É uma revelação. Trinity, que sempre conduziu, agora confessa ter sido conduzida. Aquele que foi salvo por ela, agora a salva do medo de amar. O ciclo se cumpre. A reciprocidade consuma a missão.

Neo, agora, caminha só. Cego fisicamente, mas iluminado internamente, ele segue até a Cidade das Máquinas. Não para destruir o inimigo, mas para oferecer-se. Seu gesto não é bélico, mas sacrificial. Ele se entrega ao inimigo, permitindo ser absorvido por Smith.

Todavia, é nesse ser absorvido que reside a chave da vitória. Ao permitir que o mal o devore, Neo implanta dentro dele a semente da luz. O sistema implode não por força, mas por contágio. A escuridão engole a luz — e por isso mesmo se desfaz.

A lógica da guerra é suspensa. Em seu lugar, entra o mistério do Amor. Como em O Evangelho de João, não há maior prova de Amor do que dar a vida pelos amigos. Neo não vence. Ele se oferece. E por isso, vence.

A filosofia, nesse ponto, se curva diante da espiritualidade. O pensamento não é abandonado, mas transfigurado. Neo torna-se uma figura crística, não por imitar Jesus, mas por realizar em outra linguagem a mesma estrutura arquetípica: morrer por Amor para redimir o mundo.

Entretanto, ele é também um Tzadik, na tradição cabalística: o justo que assume sobre si as imperfeições do mundo. Seu gesto realiza o Tikun Olam — a reparação cósmica — não por revolta, mas por integração. Ele não destrói o mal: ele o acolhe, e por isso o transforma.

Na linguagem simbólica da própria Cabala, Trinity representa Binah — a sabedoria que compreende. Neo, por sua vez, encarna Da’at — o conhecimento que age. Ambos se unem em um Amor que ultrapassa o tempo, o corpo e o medo. Um Amor que gera paz porque não exige nada: apenas se entrega.

Mas a figura de Neo, no gesto final de entrega absoluta, ecoa também o mito de Prometeu, o titã que ousou desafiar os deuses para salvar os homens. Prometeu rouba o fogo — símbolo do Logos, da consciência, do espírito — e entrega à humanidade aquilo que lhe era proibido. Por isso é acorrentado a uma rocha e tem o fígado devorado eternamente. Seu castigo é, paradoxalmente, sua glória: ele sofre por amar os homens mais do que teme os deuses.

Neo, da mesma forma, penetra o centro da máquina, não como guerreiro, mas como oferenda viva. Ele aceita o código da dor, entrega-se ao ciclo da repetição — não para perpetuá-lo, mas para incendiá-lo com o fogo do Amor. Como Prometeu, ele não teme o castigo, porque já transcendeu o medo. E como o titã, ele redefine a relação entre o homem e o absoluto: não mais por obediência, mas por compaixão.

Na leitura hegeliana, esse gesto é a superação dialética da alienação entre sujeito e sistema. Neo rompe a separação por meio da unidade sacrificial — tornando-se mediação viva entre humanidade e código. E no simbolismo universal, sua entrega representa aquilo que Simone Weil descrevia como o único gesto capaz de instaurar a justiça: o consentimento à dor do outro.

Neo é Prometeu, Cristo e Tzadik. Seu gesto final é síntese de mitos, símbolo de amor absoluto, arquétipo de redenção. Não vence a Matrix — ele a atravessa com Amor. E é isso que a dissolve.

A paz entre homens e máquinas é selada porque houve sacrifício. E o sacrifício foi por Amor — não por conquista, não por poder, não por controle. O mundo foi salvo não por um código, mas por um coração rasgado pela compaixão.

A última luz que se acende não é a da técnica, mas a do espírito. E isso basta.

5. A trindade filosófica do amor

A trilogia Matrix pode ser lida como uma escalada do Amor por degraus sucessivos de consciência e entrega. A cada filme, o Amor assume uma nova forma — mais profunda, mais livre, mais universal.

Essa jornada não é apenas narrativa. É ontológica e espiritual. O Amor passa do desejo que desperta à escolha que rompe, e culmina no sacrifício que redime.

No primeiro filme, Matrix (1999), o Amor se manifesta sob a forma de Eros, entendido não como mera atração física, mas como impulso ascensional — o desejo que desperta a alma para uma verdade mais alta. É o Amor que reconhece e que antecipa, como no olhar de Trinity sobre Neo, capaz de vê-lo antes mesmo de ele saber quem é. Esse tipo de Amor realiza a ideia de relação fundante, presente em Martin Buber, para quem “no princípio está a relação”, bem como no pensamento de Platão, em cujo Banquete o Eros conduz da aparência ao Bem. Também ecoa em Lao-Tsé, que via no silêncio atento e no não-domínio a gênese da verdadeira sabedoria.

Em Matrix Reloaded (2003), o Amor assume a forma de Filia, ou seja, a escolha por alguém, ainda que contra as probabilidades. Aqui, o Amor não desperta, mas rompe. Neo não segue o cálculo do Arquiteto — ele opta por Trinity, e com isso, desafia a lógica do sistema. Trata-se de uma fidelidade ao vínculo, como ensinava Kierkegaard, cuja filosofia do salto da fé recusa a segurança da razão para afirmar a singularidade do compromisso. Em termos hegelianos, essa escolha configura a negação da negação: ao romper o ciclo da previsibilidade, o Amor abre espaço para uma nova síntese — a liberdade como ato e não como conceito.

No último filme, Matrix Revolutions (2003), o Amor se eleva à sua forma mais pura: Ágape — o Amor sacrificial, que já não escolhe, mas se entrega. Aqui, o vínculo se torna doação radical. Neo aceita morrer, não para destruir o inimigo, mas para permitir que o sistema se redima por dentro. É o Amor que salva sem pedir nada. Viktor Frankl, em sua logoterapia, já afirmava que “o sentido se realiza no Amor, e mais plenamente no sacrifício por aquele que se ama”. A entrega de Neo também ecoa o conceito cabalístico de Tikun Olam, a reparação do mundo feita pelo justo que assume sobre si a fragmentação do real. E, evidentemente, sua jornada é um arquétipo crístico: aquele que não vence por força, mas por compaixão.

Assim, a trilogia desenha um percurso filosófico e espiritual do Amor: Eros que desperta, Filia que escolhe, Ágape que redime. Três formas, três faces, uma só essência.

Não por acaso, a figura que conduz Neo ao despertar se chama Trinity. Seu nome não é arbitrário. Ele carrega a potência simbólica do número três, que ao longo da história do pensamento tem sido associado à perfeição da relação, à unidade fecunda e à transcendência do binário.

Na mística cristã, a Trindade é a expressão mais alta do Amor como relação. Agostinho via na Trindade a estrutura do próprio Amor: aquele que ama, aquele que é amado, e o Amor entre ambos. Uma relação que é, ao mesmo tempo, uno e plural. Em Plotino, o Um transborda em Intelecto e Alma, e esse transbordamento é Amor em movimento.

Na Cabala Judaica, a realidade é estruturada em tríades: Chésed (Amor expansivo), Gevurá (juízo) e Tiféret (beleza e harmonia). É essa relação viva entre polos que gera o mundo como processo dinâmico de integração.

Trinity, portanto, é mais que personagem: é estrutura simbólica do Amor em três tempos. Ela vê (Eros), escolhe (Filia) e morre (Agápe). Ela é o movimento da relação que se doa, que forma, que consuma.

Se Neo é o que caminha, Trinity é a condição do caminho. Ela é Sophia disfarçada de guerreira. A sabedoria que não se impõe, mas que reconstrói com o olhar, o beijo e a morte partilhada.

Na lógica trinitária, o Amor deixa de ser só emoção ou escolha. Torna-se estrutural. Porque o Amor verdadeiro é sempre tríplice: precisa de um eu, de um tu, e de um entre. É nesse "entre" que mora o mistério.

Como dizia Simone Weil, "duas pessoas se amam verdadeiramente quando estão juntas na presença de algo maior que ambas". Trinity é essa presença. E por isso, seu nome não é apenas um aceno religioso. É um símbolo ontológico do Amor como arquitetura do real.

6. Conclusão — amar é despertar do código

Ao final da trilogia, não há apoteose. Nenhum clímax pirotécnico, nenhuma consagração messiânica. Apenas silêncio — como o que se segue ao parto ou ao luto. Um intervalo entre mundos. Cessa o ruído, mas não o mistério. O campo de batalha torna-se campo de possibilidade, e nesse vazio inaugural habita a aurora da liberdade.

A Matrix permanece. Ela não é destruída — porque não se destrói a linguagem da realidade, mas apenas se redime seu uso. Como advertia Heráclito, “o Logos é eterno; os homens apenas o escutam ou o ignoram”. A Matrix, então, não é inimiga a ser aniquilada, mas meio a ser iluminado por dentro. É o campo de testes do Espírito.

E é o Amor que a transfigura. Não o Amor sentimental, mas o Amor ontológico: aquele que, segundo Platão no Banquete, conduz da beleza sensível à beleza eterna; que, segundo Buber, transforma o “isso” em “Tu”; que, segundo a Cabala, opera o Tikun — a reparação do mundo através do vínculo. Esse Amor não destrói a estrutura: ele a fecunda. Ele a atravessa com sentido.

O código foi tocado por algo que não compreende — e por isso, começa a se reconfigurar. O sistema sobrevive, mas já não é soberano. Porque, como ensina Hegel, o verdadeiro não é o que permanece, mas o que se reconcilia. E a reconciliação começa quando a alteridade é acolhida. Quando alguém morre por outro, a lógica do sistema é quebrada pela ética do infinito.

A Matrix não se desfaz: ela é alargada pelo Amor. Não há fuga do mundo. Há imersão com fidelidade. Como ensinava Lao-Tsé, “o sábio não combate a correnteza; ele flui com ela, até que o mar se revele”. Vencer a Matrix, portanto, não é destruí-la — é amá-la até que ela se transforme. Não é negar o código, mas despertar dentro dele.

A verdade não está fora do sistema, em alguma realidade transcendente e inacessível. Está na maneira como se vive dentro dele. Está no gesto não-simulável. No olhar que reconhece o outro como fim, não como meio. No beijo que não é prazer, mas pacto. Na morte que não é derrota, mas fidelidade. Esses gestos, como diria Simone Weil, são “graça em estado puro”.

Como ensinava Viktor Frankl, “o sentido não se inventa, se descobre — e quase sempre está fora de si”. Por isso, o verdadeiro “escolhido” não é o mais forte, o mais sábio ou o mais rebelde. É aquele que ama até o fim. Que, diante do caos, permanece com o outro. Que, no centro do código, planta um gesto de doação.

A ontologia da trilogia se revela, por fim, relacional. O real não é o que é percebido pelos sentidos — mas o que resiste ao tempo, à dor e ao esquecimento. Como no pensamento de Emmanuel Levinas, a ética precede a ontologia. O rosto do outro é o que funda o mundo. O Amor é o critério do real. O resto — inclusive o próprio mundo — é contingente.

A trilogia então não se fecha com uma vitória, mas com um vínculo. Não com o fim da Matrix, mas com a abertura do sentido. Porque, como dizia o apóstolo Paulo, “sem Amor, nada serei”. E esse Amor, que não pode ser programado, nem previsto, nem controlado — é a única verdade que ainda pulsa no coração da ilusão.



7. Epílogo — o beijo, a cruz e o coração que renasce

O primeiro gesto de Trinity não foi combater, corrigir ou convencer. Foi simplesmente ver. Ver antes da identidade, ver além do nome, ver através do código. Ver com o olhar de quem reconhece antes mesmo de saber. Esse olhar funda a travessia — como se dissesse: “Tu és real, ainda que não saibas”. Como nos ensinava Buber, o nascimento do “Eu” só acontece no encontro com um “Tu”.

O segundo gesto foi o beijo. E não um beijo de paixão, mas de revelação. Como o sopro primordial da criação, ele não excita — ele desperta. É um beijo que ressuscita, que reintegra. Em um mundo de simulações, onde tudo é aparência, o beijo é a prova do real. Ele sela o vínculo e reencanta a existência. Beijar, aqui, é afirmar: “Tu existes para além do código”.

O terceiro gesto foi a morte. Não como subjugação, mas como oferta. Como ensinava Viktor Frankl, “o ser humano é aquele que pode dar a vida por algo que transcende a si”. Trinity morre não como vítima, mas como sacerdotisa do Amor. Morre como quem atravessa o véu. E ao morrer, entrega a Neo a última chave: o Amor como cruz, não como conforto.

Cada gesto de Trinity é uma iniciação. Ela vê, ela desperta, ela entrega. E Neo, ao acolher esses gestos, não apenas agradece: ele se refaz. Não como herói solitário, mas como homem reconciliado com o vínculo. Ao final, não é a força que vence o sistema — é a lembrança do Amor. Como diria Simone Weil, “só o Amor nos impede de cair no nada”.

A trilogia, nesse sentido, é mais do que ficção científica. É uma teodiceia codificada em linguagem de rede. Um tratado espiritual travestido de ação cibernética. A dor do exílio, a luta pela verdade, a redenção pelo outro — tudo ali é símbolo. Como nos mitos antigos, a jornada é uma pedagogia da alma.

Deus, nesse universo, não é um arquiteto externo. É o vínculo interno. É a presença que se revela quando dois se reconhecem. Como dizia Agostinho, “Ama e faze o que quiseres” — porque o Amor verdadeiro não controla, ele liberta. E o que Trinity ensina a Neo é isso: que amar é reconhecer no outro a própria centelha divina.

O Amor, afinal, é o único código que não pode ser quebrado. Não há máquina que o simule, nem algoritmo que o substitua. Ele é a falha sagrada no sistema. O ponto cego da inteligência artificial. O coração invisível que sustenta o real.

A trilogia fecha seu ciclo não com a destruição da Matrix, mas com a sua reconfiguração. Não com um novo sistema, mas com uma nova forma de habitar o mesmo sistema. O Amor transforma a prisão em possibilidade. A cruz em travessia. E a morte, em nascimento.

Por isso, diante da grandeza da trilogia original, o quarto filme nos parecerá — como veremos no Pós-escrito — não uma continuação, mas uma tentativa de retorno sem memória. Porque quem viu Trinity morrer de Amor não se contenta com sua ressurreição sem cruz. Quem viu Neo entregar-se à luz não pode aceitá-lo como eco de si mesmo.

Matrix, a trilogia, é uma obra-prima da espiritualidade disfarçada. Uma rosa de luz crescendo no asfalto digital. E quem a viu florescer sabe que certas histórias não se repetem — porque foram escritas com sangue, silêncio e verdade.

8. Pós-escrito crítico — Resurrections ou a ressurreição da vegueira

Matrix Resurrections (2021) não é apenas uma tentativa de reviver uma franquia de sucesso. É, antes, uma tentativa de reconciliação das autoras com a própria metamorfose existencial. Lana e Lily Wachowski, que dirigiram a trilogia original sob outra identidade, retornam agora com novos corpos, novos nomes e uma estética marcada pela inquietação contemporânea.

Essa mutação, legítima em sua dimensão biográfica, adquire na narrativa um valor simbólico. O filme não continua o mito: o reescreve com outra gramática. O Amor como sacrifício — coração vivo da trilogia — cede lugar ao empoderamento como resposta. A entrega é convertida em autonomia; a transcendência, em metalinguagem. Não se trata mais de morrer pelo outro, mas de reconfigurar-se diante do espelho.

Essa substituição tem implicações filosóficas profundas. Viktor Frankl ensinava que o sentido da vida não se inventa, mas se descobre — e que ele reside quase sempre fora de si: num compromisso, numa causa, numa pessoa a quem se ama. Em Resurrections, o sentido não é descoberto, mas construído como reflexo. A transcendência é substituída por uma estética da imanência. O Amor deixa de ser ponte para tornar-se monólogo.

Trinity, que outrora era sabedoria e guia, agora torna-se símbolo de uma vontade que recusa a morte. Mas, como advertia Santo Agostinho, “o orgulho é a imitação perversa da grandeza divina”. A recusa de morrer pelo outro é, no fundo, uma recusa do próprio Amor. Porque, como ensinava Agostinho, “Ama e faze o que quiseres” — mas esse amor exige esvaziamento, não reafirmação.

O que se vê em Resurrections é uma inversão sutil, mas devastadora: o Amor já não é alteridade, mas extensão do ego. O sacrifício não é mais a via de redenção, mas um resíduo do passado. E o futuro, ao invés de horizonte, torna-se looping — como se a liberdade fosse apenas o direito de se repetir indefinidamente.

Confúcio advertia que “o homem superior busca em si mesmo a culpa; o inferior, nos outros”. No filme, não há mais culpa nem expiação — há apenas reposicionamento. O Amor, que deveria ser ato ético, torna-se mecanismo narrativo. Sua profundidade é dissolvida no espetáculo de luzes, no reencontro sem dor, no renascimento sem cruz.

Nietzsche já havia diagnosticado esse vazio no coração da modernidade: o niilismo elegante, que transforma toda dor em ironia. Em Resurrections, tudo é consciente demais, planejado demais, artificial demais. Não há silêncio, nem mistério, nem sombra. Apenas algoritmos travestidos de emoção. Como escreveu Simone Weil, “tudo o que é superficial grita; só o que é profundo se cala”.

Lao-Tsé também ensinava que “o Tao que pode ser dito não é o Tao eterno”. Resurrections tenta explicar demais, justificar demais, contar demais. A metafísica do silêncio, que permeava os três primeiros filmes, é substituída por uma tagarelice hermenêutica. A verdade deixa de ser contemplada — e passa a ser codificada.

A entrega amorosa, que unia Neo e Trinity como dois polos de uma mesma alma, agora é reciclada como resgate de si. O Amor, que antes destruía o sistema pela confiança mútua, agora apenas o contorna com habilidade. O sacrifício é eclipsado pelo estilo. E o mistério, pela técnica.

Hegel dizia que a reconciliação do espírito com o real exige passar pela negatividade — ou seja, pela dor. Mas em Resurrections, a dor é evitada. Tudo é reinventado, mas nada é verdadeiramente enfrentado. A superação dialética da alienação é substituída por uma iteração superficial de si mesmo — um eterno retorno da mesma aparência.

Bauman, por sua vez, denunciava que o Amor líquido da pós-modernidade não resiste ao tempo, nem à dor, nem ao compromisso. E Resurrections é justamente isso: a recusa do Amor que fere, da escolha que exige, da entrega que dói. Há ali uma estética do reencontro sem peso, da ressurreição sem cruz. Mas o que é o Amor sem cruz, senão simulação?

No fundo, Resurrections é o espelho de uma era que quer viver tudo — exceto morrer. Quer o amor sem o outro, a liberdade sem renúncia, o sentido sem transcendência. O filme tenta encantar com autorreferências, mas esvazia o símbolo. O resultado é um teatro vazio, com figurinos reciclados, mas sem alma.

Trinity e Neo estão presentes, mas suas presenças são espectrais. Não são mais arquétipos em movimento, mas avatares de uma estética em crise. Como escreveu o profeta Isaías: “Este povo me honra com os lábios, mas o coração está longe de mim.” A liturgia do Amor foi mantida — mas sem coração.

Porque o que Resurrections esqueceu é que o Amor verdadeiro não se multiplica por cópia. Ele renasce apenas no sacrifício. Ele não é poder — é entrega. Não é técnica — é espírito. E isso, nenhum código pode programar. Apenas um coração pode viver.

8.1. O encontro sem reconhecimento: quando o amor esquece de si

Neo e Trinity se cruzam, se tocam, se olham — mas não se reconhecem. Esse desencontro, longe de ser mero artifício narrativo, carrega um peso simbólico profundo. É o Amor que sobrevive, mas não se lembra. Como se o vínculo essencial tivesse sido rompido não na existência, mas na consciência.

Na filosofia platônica, especialmente no Banquete, o Amor é recordação (anámnese). Amar é lembrar de uma unidade anterior, perdida na separação dos corpos. Quando Neo e Trinity se olham sem saber quem são, encenam o esquecimento dessa unidade primordial. São como almas gêmeas exiladas do próprio mito.

Mas esse esquecimento não é romântico: é ontológico. No mundo da Matrix recriada — agora mais líquida, irônica e autoconsciente — os vínculos profundos são desprogramados. E como advertia Viktor Frankl, “a desumanização começa quando esquecemos o valor do outro”. Neo e Trinity não são mais dois que se completam: são dois que se distraem.

No pensamento oriental, especialmente em Lao-Tsé e na Cabala, o Amor é também caminho de retorno ao Uno. O não-reconhecimento é a ilusão do ego, o véu que encobre a centelha. Quando Neo hesita diante de Trinity, vê-se a força do Tzimtzum — o recuo do divino para que a liberdade exista. Mas também a dor do Shevirat haKelim — a quebra dos vasos que continham a luz.

Esse encontro sem memória é o sintoma de uma era que perdeu o sentido do Amor como destino. Como disse Simone Weil, “o Amor é atenção absoluta ao outro”. E aqui, o outro está presente — mas a atenção foi domesticada. O gesto foi substituído pela hesitação. A conexão, pelo algoritmo.

No teatro da pós-modernidade descrito por Zygmunt Bauman, os vínculos duradouros são substituídos por “ligações de consumo”. Neo e Trinity falam, mas não se ouvem. Sentem, mas não se reconhecem. Como se o Amor, em sua forma líquida, não mais atravessasse o tempo nem a dor — apenas flutuasse na superfície do desejo.

Hegel nos ensinou que o Espírito só se realiza ao passar pela negatividade. Mas Resurrections evita a dor do reencontro verdadeiro. Não há catarse, nem lembrança real. O toque entre os dois é tímido, quase protocolar. Como se o Amor já não fosse uma urgência existencial, mas apenas uma opção estética no menu da Matrix.

O Amor, para ser real, precisa passar pelo véu do esquecimento e reacender-se. Em Resurrections, esse processo é interrompido. Eles se aproximam, mas não se lembram. E assim, o gesto mais potente do filme torna-se também o mais trágico: o Amor se vê — mas não se conhece.

O mito de Eros e Psiquê nos recorda que o Amor, sem consciência, é cego. Mas Resurrections nos mostra algo mais grave: que uma consciência sem Amor é ainda mais perigosa. Porque gera lucidez sem entrega, técnica sem compaixão, liberdade sem vínculo. E o reencontro, sem memória, é apenas uma repetição do vazio.

A tragédia maior não está na transgressão dos limites — mas na ilusão de que eles não existem. A liberdade, como ensinava Aristóteles, não é fazer o que se quer, mas realizar a própria natureza. Quando o querer rompe com o ser, não é a liberdade que se conquista, mas o abismo. O desejo, desancorado da realidade, torna-se tirânico. O “quem eu sou” torna-se “o que eu quero ser” — e, nessa mutação, perde-se o eixo.

A Cabala ensina que a criação se dá pelo Tzimtzum, o recuo de Deus para que o outro exista. O ser humano nasce dentro de um vaso, com forma e fronteiras. O mundo moderno tenta quebrar o vaso para libertar a luz — mas esquece que sem forma não há conteúdo. Como advertia Hegel, o universal sem o particular é vazio. A alma sem corpo é abstração; o corpo sem verdade é espetáculo.

Nietzsche, ao proclamar a morte de Deus, abriu caminho para a reengenharia do ser. Mas esqueceu — ou ignorou — que a ausência de um princípio ontológico não gera liberdade: gera vertigem. Quando o humano se torna autossuficiente, ele se fragmenta. Zygmunt Bauman chamou isso de “modernidade líquida”: tudo escorre, tudo se dissolve, inclusive o Amor, a identidade e o sentido. Em Resurrections, essa dissolução é estética. Na vida real, é existencial.

Lao-Tsé advertia: “Conhecer os outros é inteligência; conhecer a si mesmo é sabedoria. Vencer os outros é força; vencer a si mesmo é poder.” Mas essa vitória não consiste em redesenhar-se segundo o desejo, e sim em reconciliar-se com a verdade do ser. A mudança legítima ocorre quando o ego se curva à realidade — não quando a realidade se curva ao ego. A grande sabedoria não está em transformar tudo, mas em aceitar com dignidade o que é intransformável.

É possível amar e respeitar quem decide transitar entre gêneros — mas é necessário dizer, com serenidade e coragem, que a verdade biológica não se apaga com cirurgia, nem a maternidade se alcança com desejo. A alma merece compaixão, mas o corpo exige verdade. Resurrections é o grito de uma geração que deseja liberdade sem encarnação. Mas como dizia Viktor Frankl, “a liberdade corre o risco de se degenerar em arbitrariedade, a menos que seja vivida em termos de responsabilidade”. E a responsabilidade maior é com a realidade que nos constitui — e não com a ficção que nos consola.



8.2. O exílio ontológico: quando a ficção Quer substituir o ser

Em Resurrections, Neo e Trinity existem apenas dentro da Matrix. Zion — o plano da realidade, da carne, do suor, da luta concreta — desaparece. Não há mais chão: apenas código. A resistência material, com suas dores e sacrifícios, cede lugar a um universo onde tudo pode ser reprogramado, inclusive o Amor.

Esse esvaziamento da realidade não é casual — é sintoma. A nova Matrix não reprime: seduz. Não escraviza: embala. A ilusão já não é um cárcere — é um conforto. E o Amor, que antes rasgava o código, agora o reafirma. Neo e Trinity continuam vivos, mas já não vivem: são mantidos em cápsulas, reciclados, estetizados. Como escreveu Byung-Chul Han, “a sociedade da transparência dissolve o real na superfície lisa da imagem”.

Essa cisão entre código e carne, entre Matrix e Zion, parece espelhar a cisão vivida pelas autoras. Lana e Lily Wachowski — que dirigiram a trilogia original sob identidade masculina — reconstruíram seus corpos segundo uma identidade interior. A decisão é legítima sob a perspectiva da liberdade individual. Mas quando essa reconstrução nega os limites da realidade ontológica — quando se recusa, por exemplo, a aceitar a impossibilidade biológica de gerar filhos — o que está em jogo já não é apenas identidade: é metafísica.

A filosofia clássica distingue entre essência e acidente. A aparência pode mudar — mas há um núcleo que permanece. Um homem pode adaptar-se à feminilidade culturalmente, mas não gerar a vida no ventre. Há aqui uma fronteira inviolável do ser, uma verdade do corpo que resiste ao código. Simone Weil diria: “O real é aquilo que resiste.” E a biologia, nesse caso, é o último bastião da ontologia contra a ficção identitária.

Em Resurrections, a ausência de Zion representa mais do que um deslocamento de cenário: é uma recusa da carne. É a tentativa de escapar da condição trágica da existência — da dor, do sacrifício, da irreversibilidade da morte. É o triunfo de uma estética digital que, como os avatares das redes sociais, simula plenitude sem substância. Mas como advertia Pascal, “o homem ultrapassa infinitamente o homem” — e por isso mesmo, não pode ser reduzido à imagem que tem de si.

A decisão de viver apenas na Matrix — de abandonar o real em favor do reprogramável — é uma metáfora poderosa da tentativa contemporânea de escapar do que é. Mas como ensinava Lao-Tsé, “aquilo que é curvo não pode ser endireitado; aquilo que falta não pode ser contado”. O que Resurrections tenta fazer é contar o incalculável, redimir a dor sem enfrentá-la, inventar o ser ao invés de habitá-lo.

Talvez por isso Neo e Trinity não possam mais reconhecer-se plenamente: porque já não há um chão comum. O Amor, para acontecer, exige dois seres que existem — não dois códigos que se atraem. O Amor exige encarnação, limite, diferença. E acima de tudo, exige que não se fuja da realidade.

Porque, no fim, a maior armadilha da Matrix não foi o controle — foi a oferta de liberdade sem verdade. E essa é, talvez, a mais sedutora de todas as prisões.

8.3. O véu, o ventre e a verdade

Há algo que nenhuma máquina simula, nenhum código emula, nenhum desejo contorna: a origem. Não a origem cronológica — mas ontológica. Aquela que nos antecede e nos constitui. Aquela que não escolhemos, mas sem a qual nenhuma escolha faz sentido. É nesse ponto que a ficção moderna se quebra — e o Amor, se for verdadeiro, começa.

Matrix Resurrections é o testemunho de um tempo que trocou a dor do nascimento pela ilusão da reinvenção. Mas o nascimento, como sabia Sócrates, é sempre doloroso. A alma precisa atravessar a sombra para ver a luz. E só há luz onde há entrega. Só há eternidade onde há sacrifício. Só há Amor onde há cruz.

Quem nega a realidade da carne — seu peso, seu limite, sua dádiva — não se liberta: se condena. Porque o corpo é a última âncora entre o eu e o mundo. Entre o verbo e a vida. Entre o possível e o sagrado. Romper essa âncora é flutuar no vazio. É transformar o ventre em código e o coração em tela.

Mas o Amor — o verdadeiro Amor — não flutua. Ele desce. Ele encarna. Ele sangra. Ele morre. E por isso renasce. Neo e Trinity só foram imortais porque aceitaram morrer. Não pela ideia de si mesmos, mas pelo outro. Não pelo empoderamento, mas pelo vínculo. Não pelo espelho, mas pelo espólio do próprio eu.

A verdade — essa palavra que hoje assusta — é simples como um ventre e profunda como um véu. Ela não grita: sussurra. E nesse sussurro, diz o que todo coração já sabe: que só há liberdade no reencontro com o real. E que o Amor — o único capaz de romper a Matrix — jamais será o fruto de uma ficção. Mas o milagre de uma fidelidade.

(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
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