
Ensaio - Da Cruz ao Martelo: A Fé Capturada — A Igreja Católica, a Ideologia e o Silêncio dos Fiéis
10/07/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
1. Preâmbulo — Quando a oração toma partido
No último domingo, durante a oração dos fiéis, católicos foram convidados a rezar: “para que os governantes promovam ações legítimas que superem a cultura das falsas notícias nas redes sociais”.
A princípio, pode soar como um apelo à verdade. Mas, infelizmente, não é disso que se trata. Quando essa frase é proclamada dentro da liturgia, ela já não carrega a neutralidade da súplica — carrega o peso de uma palavra de ordem.
Sob a aparência de prudência, esconde-se uma rendição. A CNBB, ao incluir tal prece na missa, não está apenas orando: está aderindo a uma retórica que tem servido para justificar censura, cerceamento da crítica e vigilância ideológica travestida de zelo democrático.
É a linguagem do poder disfarçada de piedade. A verdade, como nos lembra Platão, não se impõe por força externa, mas se revela à alma bem formada.
Entretanto, toda vez que a verdade precisa ser protegida por decretos ou tribunais, ela já não é luz — é sombra projetada.
A fé não nasce do medo — e o discernimento espiritual jamais pode ser delegado ao Estado. “A liberdade é filha do espírito”, escreveu Viktor Frankl.
Quando a Igreja ora para que os governantes façam o que compete à consciência dos fiéis, ela já não guia — ela terceiriza.
Esse episódio não é um desvio pontual. É sintoma de uma metamorfose inquietante: a esquerdização progressiva da linguagem eclesial, que há décadas vem corroendo, de forma quase imperceptível, a fidelidade evangélica ao substituir a missão profética por engajamento político.
É o altar que se transmuta em palanque. E os pastores que, em vez de alimentar o rebanho com o Verbo, passam a repetir slogans moldados em gabinetes seculares.
Heráclito já advertia: “O senhor do oráculo não diz, nem oculta: sinaliza.” E os sinais estão por toda parte.
Este ensaio propõe um olhar firme, mas sereno, sobre esse processo. Não é um ataque à Igreja — é um ato de fidelidade.
Pois quando os pilares da fé, da família e da liberdade são corroídos pela linguagem da conveniência, é dever do fiel lembrar que o Evangelho não negocia sua essência.
O que está em jogo não é apenas uma oração mal formulada — é a integridade da fé cristã diante do risco de se tornar irreconhecível por dentro, mesmo continuando a parecer piedosa por fora.

2. A guerra cultural e o cerco à transcendência
Desde o Manifesto Comunista, publicado em 1848, a doutrina marxista declarou guerra aberta às colunas que sustentavam a civilização ocidental: a propriedade privada, a família tradicional, a moral judaico-cristã e a fé como princípio transcendente.
Ao identificar a religião como “ópio do povo”, Marx não apenas criticava seus abusos históricos. Ele a via como obstáculo à revolução materialista, pois onde há sentido espiritual, há resistência à total submissão ao Estado.
Essa aversão à transcendência gerou, nos regimes socialistas do século XX, algumas das mais brutais perseguições religiosas da história.
Na União Soviética, estima-se que cerca de 100 mil clérigos ortodoxos tenham sido mortos entre 1918 e 1943.
Na China, a repressão ao cristianismo segue até hoje, com prisões, igrejas demolidas e monitoramento digital em massa.
No Camboja de Pol Pot, 50 mil monges budistas foram assassinados. Na Albânia comunista, todas as religiões foram formalmente proibidas em 1967.
Na Nicarágua e em Cuba, sacerdotes foram expulsos, silenciados ou perseguidos.
Não se trata de desvios. Trata-se de um padrão sistêmico: o totalitarismo socialista vê a fé como ameaça, porque onde há fé viva, há um princípio anterior ao Estado — e um povo que crê não se dobra com facilidade.
Com o tempo, os estrategistas marxistas perceberam que a repressão direta gerava resistência. Era preciso algo mais sutil: a conquista simbólica.
É nesse contexto que surge Antonio Gramsci, pensador italiano que inverteu a estratégia revolucionária.
Em vez de tomar o poder pela força, Gramsci propôs a ocupação lenta das instituições culturais, incluindo a mídia, as escolas e — sobretudo — a religião.
Gramsci defendia a ideia de hegemonia cultural: não basta controlar a economia; é preciso moldar o imaginário das pessoas. E para isso, a Igreja — com sua liturgia, sua linguagem, sua doutrina — era um alvo inevitável. O objetivo não era destruí-la, mas transformá-la por dentro.
Foi assim que, ao longo das décadas, a Teologia da Libertação ganhou espaço. Utilizando palavras do Evangelho e categorias marxistas, ela introduziu na Igreja um novo discurso: já não se falava do pecado pessoal, mas da “estrutura opressora”; já não se falava de redenção, mas de “libertação social”; o inferno foi substituído pela desigualdade, e a cruz pela luta de classes.
Hoje, muitas das lideranças eclesiásticas que ocupam cargos de destaque cresceram nesse ambiente. Muitos seminários foram formados sob essa influência. O resultado?
Uma cúpula que, em não poucos casos, repete palavras de ordem do progressismo secular com a naturalidade de quem recita versículos sagrados.
Mas a Igreja, nesse processo, não corre o risco de perder algo essencial?
Se ela abandona sua linguagem própria para adotar a do mundo, ainda poderá distinguir-se dele?
Se seus pastores falam mais de “regulação da mídia” do que de conversão do coração, a quem realmente estão servindo?
Se a liturgia se transforma em plataforma para a doutrinação ideológica, resta espaço para o sagrado?
E, mais profundamente: pode a fé sobreviver quando se torna ferramenta de um projeto político?
Estas não são perguntas retóricas. São perguntas urgentes. E é com elas que precisamos continuar.

3. João Paulo II: o penúltimo bastião contra a ideologia na Igreja
A história recente da Igreja Católica no Brasil — e, em larga medida, da América Latina — não pode ser compreendida sem o contraste com aquele que foi, talvez, o penúltimo grande escudo contra a ideologização da fé: São João Paulo II.
Não apenas um papa carismático. Um gigante moral e espiritual que ousou enfrentar, com coragem, a tentativa sistemática de capturar a linguagem religiosa por regimes totalitários — à direita e à esquerda.
João Paulo II não combatia a Teologia da Libertação por aversão aos pobres, como quiseram acusá-lo.
Combatia porque sabia que nenhuma libertação verdadeira pode nascer de uma mentira antropológica.
A fé não é um instrumento de luta de classes — é uma via de redenção pessoal e comunitária.
Para ele, a justiça social era inseparável da verdade do ser: homem e mulher criados à imagem e semelhança de Deus, dotados de liberdade e responsabilidade, chamados não à revolta, mas à santidade.
Sob seu pontificado, o discurso católico ainda conservava um centro de gravidade moral: a defesa incondicional da vida, da família, da liberdade religiosa e da dignidade da consciência.
Sim, havia compaixão pelos marginalizados. Mas jamais cumplicidade com os tiranos.
Foi assim que ele enfrentou o comunismo. Não com ódio, não com armas, mas com a fé firme de quem sabe que a verdade não precisa gritar — só resistir.
E por isso venceu. Sua presença em Varsóvia, seu apelo à liberdade, sua autoridade espiritual foram elementos decisivos na queda do bloco soviético.
Mas onde estão hoje os herdeiros desse espírito?
Quem, dentro da CNBB, ainda fala com a clareza com que ele falava?
Por que, em vez de denunciar os novos totalitarismos digitais e culturais, nossos pastores parecem ecoar sua linguagem?
Que silêncio é esse — que parece pastoral, mas tem gosto de cálculo?
Nos últimos vinte anos, assistimos à erosão lenta e sistemática dessa herança. Em seu lugar, emergiu uma retórica branda, “inclusiva”, mas ambígua. Um discurso pastoral, mas ideológico. Social, mas cada vez menos cristão.
A fé foi sendo recoberta por slogans. A verdade, dissolvida em consensos. O Evangelho, submetido à pauta.
E João Paulo II, o último que ousou dizer ‘não’ com grandeza, vai sendo esquecido nos corredores onde hoje se reverbera, sem pudor, a linguagem do mundo — enquanto sua voz profética ecoa apenas nos corações que ainda resistem em silêncio.
4. A inflexão: de Bento XVI à ambiguidade de Francisco
Se João Paulo II foi o último grande escudo visível contra a captura ideológica da Igreja, Bento XVI foi o guardião do seu alicerce invisível.
Teólogo refinado, filósofo rigoroso, pastor silencioso — Bento XVI não governou pela força da presença midiática, mas pela fidelidade intelectual à doutrina.
Em um tempo em que a linguagem eclesial começava a ceder às pressões culturais, Bento XVI insistiu que a caridade sem verdade degenera em sentimentalismo.
E que a Igreja não poderia servir ao mundo moderno sem antes permanecer fiel ao Cristo que não pediu aceitação, mas conversão.
Foi ele quem denunciou, com precisão, a “ditadura do relativismo” — essa forma moderna de totalitarismo que não persegue com violência, mas com escárnio; que não proíbe com armas, mas com algoritmos; que não mata, mas dissolve.
Sua renúncia — gesto inédito e profundamente humano — deixou o trono de Pedro sob uma sombra de inquietação. Ao abdicar, Bento abriu caminho para uma nova inflexão: a passagem da clareza à ambiguidade.
Com o Papa Francisco, o estilo mudou radicalmente. A linguagem tornou-se mais acessível, mais simbólica — e, também, mais imprecisa.
O foco deslocou-se: menos ênfase na doutrina, mais ênfase na narrativa; menos afirmações teológicas, mais apelos sociais.
A opção preferencial pelos pobres se mantém — e deve, desde que fiel ao Evangelho e não subordinada a ideologias políticas.
Mas agora associada, com frequência, à linguagem de movimentos políticos, organismos internacionais e agendas multilaterais, muitas das quais colidem frontalmente com os princípios perenes da fé.
A compaixão segue presente. Mas por vezes sem distinção entre o pecador e o pecado. E, nesse ambiente, a verdade já não soa como rocha — mas como argila maleável.
Quando um papa recebe de Evo Morales um crucifixo fundido a uma foice e um martelo, o que está sendo celebrado: o diálogo ou a rendição?
Quando o silêncio do Vaticano é ensurdecedor diante das perseguições religiosas em Cuba, na China ou na Nicarágua, o que está sendo preservado: a prudência diplomática ou a omissão profética?
Quando se fala mais de ‘meio ambiente’ do que de sacramentos, mais de ‘fake news’ do que de conversão, mais de ‘inclusão’ do que de arrependimento, quem ainda reconhece o Evangelho?
Nada disso é acusação. É inquietação.
O que está em curso não é um cisma externo — é uma diluição interna da linguagem da fé, até que o sagrado se torne indistinto do secular, e a Igreja, indistinguível da ONU.
O risco maior não é a ruptura. É o esquecimento.
Bento XVI, ao defender que “a fé deve procurar a inteligência”, sabia o que estava dizendo: uma fé que se recusa a pensar, logo será pensada por outros — e transformada em instrumento de um mundo que não crê.
5. A CNBB: do compromisso cristão ao ativismo político
Durante décadas, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil foi uma referência pastoral de peso.
A CNBB promoveu campanhas de solidariedade, defendeu a vida desde a concepção, fortaleceu comunidades e levou o Evangelho às periferias do país — não como ideologia, mas como presença viva.
Era, em sua origem, um instrumento de unidade espiritual e de serviço ao povo. Tinha no coração a fidelidade ao Evangelho e nas mãos o gesto concreto da caridade.
Mas algo mudou.
A partir dos anos 1980 — e com mais intensidade nas décadas seguintes — a CNBB foi sendo progressivamente capturada por uma visão de mundo ideológica, cada vez mais próxima das pautas da esquerda latino-americana.
A Teologia da Libertação, antes criticada por São João Paulo II por suas raízes marxistas, encontrou abrigo em muitos setores da Conferência.
A linha que separava o cristianismo da luta de classes foi sendo apagada. E o que era missão evangélica passou a se confundir com militância disfarçada de pastoral.
Quando a CNBB defende o MST, mas silencia sobre os agricultores que têm suas terras invadidas — está sendo Igreja ou está sendo comitê?
Quando organiza campanhas contra “fake news”, mas não denuncia a censura imposta pelo Supremo Tribunal Federal — está servindo ao povo ou está servindo ao poder?
Quando se cala diante da destruição da família e do avanço da ideologia de gênero — está protegendo os pequenos ou entregando-os ao lobo?
Com raras e honrosas exceções individuais, a CNBB adotou um vocabulário político travestido de evangelho.
Palavras como “empoderamento”, “justiça estrutural”, “regulação das mídias” e “cuidado com a Terra” tornaram-se expressões frequentes — enquanto termos como “virtude”, “redenção”, “santidade” e “vida eterna” foram sendo relegados ao silêncio, como se envergonhassem a nova sensibilidade pastoral.
Essa guinada não foi ingênua. Foi estratégica.
Ela reproduz uma tendência mais ampla: a substituição da moral cristã por uma moral de engenharia social — onde a linguagem da inclusão esconde o controle, e o discurso de paz justifica a repressão silenciosa da consciência.
A CNBB já não corrige os desvios da política — ela os abençoa.
Já não adverte os poderosos — ela os corteja.
Já não forma os fiéis — ela os instrumentaliza.
A oração litúrgica que suplica “ações legítimas dos governantes para combater a cultura das falsas notícias nas redes sociais” é apenas mais uma peça dessa engrenagem.
Seu conteúdo é político, mas seu tom é piedoso. E justamente por isso é tão perigosa.
Ela transforma a oração num endosso. A missa, num canal de propaganda. A fé, numa pauta. O altar, num púlpito ideológico.
Mas o que está em jogo não é apenas o conteúdo de uma prece — é a alma do cristianismo.
Se a Igreja perde sua linguagem própria, se substitui a catequese por comunicados de campanha, se troca o Verbo pela palavra de ordem, ela se torna irreconhecível até para os que ainda lhe são fiéis.
E o que é uma Igreja que já não fala a linguagem do sagrado, senão um eco sofisticado das ideologias que pretendem, sorrateiramente, ocupar seu lugar?

6. A família e a Igreja sob cerco
Se há um ponto onde a Igreja jamais poderia ceder, esse ponto é a defesa da família — não como convenção social ou contrato jurídico, mas como fundamento espiritual e ontológico da civilização cristã.
Segundo a tradição bíblica e a doutrina católica, a família é a primeira igreja doméstica, o lugar onde a vida é gerada, educada, sustentada e consagrada.
A partir dela se estruturou não apenas a moral cristã, mas toda a arquitetura simbólica do Ocidente.
Destruir a família é destruir a própria possibilidade de transcendência. E por consequência, desfigurar a missão histórica da Igreja.
É exatamente esse cerco — cultural, político e pedagógico — que se intensifica a cada dia, com o silêncio cúmplice ou a adesão disfarçada da CNBB.
Onde está a CNBB diante da imposição da ideologia de gênero nas escolas?
Onde está a CNBB quando o Estado tenta ocupar o lugar dos pais na formação moral dos filhos?
Onde está a CNBB quando se promovem políticas que desprezam a maternidade, ridicularizam a paternidade e dissolvem os vínculos essenciais da convivência familiar?
Silêncio.
Ou pior: aplausos tímidos, eufemismos diplomáticos, declarações que falam em “diálogo com a cultura contemporânea” — como se a missão da Igreja fosse adaptar-se ao espírito do tempo, e não confrontá-lo à luz do Evangelho.
O que se vê, em documentos, campanhas e pronunciamentos da CNBB, é a aceitação progressiva de conceitos que minam a antropologia cristã. A substituição de “pai e mãe” por “responsáveis legais”.
A banalização do matrimônio sacramental. O apoio a políticas públicas que violam frontalmente a dignidade da vida e da identidade humana.
Tudo isso é feito em nome de uma modernidade que não busca ouvir o Evangelho, mas domesticar sua linguagem. E para isso, exige da Igreja não fidelidade — mas adesão.
Mas o preço dessa adesão é altíssimo.
Quando a Igreja abdica da defesa da família, ela abdica de si mesma. Perde sua raiz, seu rosto e sua razão.
E quando a CNBB abre espaço para ideologias que negam a diferença entre homem e mulher, que tratam o nascituro como descartável e que enxergam a religião como forma de opressão simbólica, ela não está dialogando — está sendo engolida.
A ideologia que a CNBB acolhe em suas entrelinhas não deseja reformar a Igreja — deseja substituí-la.
Não quer dialogar com o cristianismo — quer apagá-lo.
E se os fiéis não despertarem, não haverá mais altar, púlpito ou sacramento que não esteja sob vigilância do novo dogma: o da submissão à moral da desconstrução e ao Estado redentor.
O cerco não é externo apenas. É interno. E o silêncio pode custar não apenas a história — mas a fé que a sustenta.
7. Conclusão — Fé sem partido, esperança sem doutrinação
O Evangelho não tem partido. A fé não pode ser capturada por nenhuma ideologia. A esperança cristã não nasce de projetos de poder, mas da fidelidade à verdade — mesmo quando ela é incômoda, mesmo quando ela contraria o mundo.
O que se desenha hoje no interior da CNBB — e de tantas instituições eclesiásticas — não é mera inclinação política. É algo mais profundo e inquietante: uma substituição progressiva da linguagem da fé pela linguagem da ideologia.
É a tentativa de converter a Igreja não a Cristo, mas a uma nova moral pública, fabricada em fóruns internacionais, ONGs militantes e redações engajadas, onde palavras como “verdade” e “pecado” são substituídas por expressões como “narrativas” e “agendas”.
Isso não é exagero. É discernimento.
Quando uma oração dos fiéis suplica, sem pudor, para que “os governantes promovam ações contra a cultura das falsas notícias”, não se está pedindo discernimento — está se naturalizando a censura como valor evangélico, transformando o altar em instrumento de legitimação do poder.
A liturgia que deveria elevar o espírito, passa a repetir palavras de ordem. E o risco maior já não é apenas teológico — é civilizacional.
É preciso, pois, dizer com caridade, mas também com firmeza: basta.
A CNBB precisa recordar que sua missão é pastoral, não partidária. Que sua autoridade não vem da adesão às causas do tempo presente, mas da continuidade com a tradição viva da Igreja. E que, ao se calar — ou ao se curvar — diante de projetos que relativizam a vida, desconstróem a família e sufocam a consciência, ela não serve ao Evangelho: ela o trai.
Este texto não é um ataque. É um ato de fidelidade. Um gesto de cuidado. Um chamado à lucidez dos fiéis — e à coragem dos bons padres e bispos que, mesmo acuados, ainda resistem. Sabemos que eles existem. E é por eles, também, que escrevemos.
Mas chegou a hora de falar.
Pois, como alertava Sócrates, “a vida sem exame não vale a pena ser vivida” — e, na fé, o silêncio da verdade é sempre o triunfo da mentira.
Aos fiéis: permaneçam firmes. Formem-se. Rezem com discernimento. Não se deixem confundir por liturgias contaminadas. A fé que se cala diante do erro deixa de ser luz.
Aos sacerdotes: lembrem-se de que o altar não é lugar de slogans. É lugar de sacrifício, de verdade, de redenção. E que a autoridade espiritual nasce da fidelidade, não da aprovação pública.
E à CNBB: ainda é tempo de voltar ao Evangelho. Antes que seja tarde demais.
8. Epílogo — A cúpula e o rebanho: o risco da ruptura silenciosa
A Igreja Católica existe há quase dois mil anos. Sobreviveu ao Império Romano, aos cismas do Oriente e do Ocidente, às guerras de religião, à Revolução Francesa, ao Iluminismo e ao totalitarismo do século XX.
Sua força nunca esteve apenas na tradição ou na estrutura, mas em sua capacidade orgânica de manter a fidelidade ao essencial enquanto atravessava as mutações do mundo. Sempre que precisou reformar-se, reformou-se — mas sem romper com sua alma.
No entanto, a atual tentativa de adaptação ao pensamento progressista constitui uma inflexão diferente. Não é apenas uma estratégia pastoral — é uma mudança de eixo simbólico, uma modulação profunda da linguagem, da missão e da identidade. E o que começa como “atualização” pode terminar como erosão.
Em vez de atrair, afasta.
Em vez de converter, acomoda.
Em vez de fortalecer, dilui.
A linguagem que hoje emana de muitos setores da cúpula eclesiástica já não nasce da fé dos fiéis — e muitas vezes os constrange. Uma Igreja que acolhe todos os discursos, menos o seu próprio, não é inclusiva — é indefinida.
E o rebanho, quando já não reconhece a voz do pastor, dispersa-se.
Nenhuma instituição sobrevive por muito tempo quando sua cabeça já não escuta o coração. E a Igreja Católica no Brasil vive hoje essa fratura: uma cúpula majoritariamente inclinada à esquerda e um corpo de fiéis dividido, com tendência crescente à direita — sobretudo entre os que defendem a família, frequentam os sacramentos e resistem aos abusos do poder estatal.
Esse desalinhamento não é apenas político. É teológico, antropológico e civilizacional.
A elite eclesiástica, imersa em categorias sociológicas e retórica globalista, insiste numa leitura de mundo que já não ressoa na alma dos fiéis — uma leitura que relativiza o pecado, dissolve a identidade sexual, transforma o Evangelho em política pública e confunde caridade com militância.
O resultado é visível — e mensurável.
Segundo o Censo 2022, a população católica no Brasil caiu de 65,1% para 56,7% em apenas doze anos. No mesmo período, os evangélicos subiram de 22% para quase 27% da população brasileira.
Essa curva não é apenas demográfica. É simbólica.
Quem fala com clareza sobre verdade, identidade e valores, cresce.
Quem hesita, se esvazia.
Quem se cala diante da desconstrução, vê seu povo buscar abrigo em outra voz.
Entre os evangélicos, há uma coerência orgânica entre liderança, fiéis e linguagem moral. Isso não os torna infalíveis, mas lhes dá coesão, propósito e força cultural. Entre os católicos, reina a dissonância: pastores progressistas tentando conduzir um rebanho conservador — e por isso disperso.
Essa tensão não será resolvida com slogans nem com apelos à “diversidade de opiniões”. O que está em curso não é pluralismo legítimo — é uma tentativa de desconstrução doutrinária disfarçada de aggiornamento.
Quando o altar começa a repetir a pauta de partidos, não há mais pluralismo: há captura.
A crise atual não é apenas um desafio pastoral. É um sinal dos tempos. Ou a Igreja reencontra sua voz profética — aquela que fala com clareza e misericórdia, sem se ajoelhar diante do espírito do mundo — ou continuará perdendo não apenas fiéis, mas autoridade moral, presença simbólica e integridade espiritual.
A verdade é que os fiéis ainda buscam a luz. Mas a luz já não emana da cúpula.
Ainda há fome de sentido. Mas os púlpitos foram ocupados por retóricas sem transcendência.
Ainda há esperança. Mas ela exige coragem — e a coragem, hoje, pode vir de baixo.
Talvez sejamos nós, os leigos, os primeiros a lembrar à hierarquia aquilo que o Evangelho jamais deixou de ensinar: que a fé nasce do alto, mas permanece viva onde ainda é vivida com inteireza, silêncio e verdade.
E não seria a primeira vez que o excesso de silêncio institucional abre espaço para rupturas profundas.
No século XVI, Lutero e Calvino não criaram a Reforma a partir do nada. Eles responderam a uma Igreja que já não escutava a alma da nova sociedade que surgia. Ofereceram teologias que acolheram os excluídos — especialmente os comerciantes e a nova ética dos burgos — enquanto Roma insistia em repetir fórmulas sem responder às dores de seu tempo.
Hoje, algo semelhante ocorre — mas em sentido oposto.
A linguagem dominante da Igreja Católica desconfia da liberdade, da responsabilidade pessoal, da virtude silenciosa e da ordem espiritual que sustenta a vida comum. E os fiéis que se sentem acuados por essa nova ortodoxia progressista não renegam a fé — apenas a buscam onde ainda é proclamada com clareza.
A modernidade respeita quem se assume com inteireza — não quem se dissolve para agradar.
E os fiéis, quando não encontram abrigo onde foram batizados, seguem buscando — pois o coração humano não vive sem sentido, e o espírito não se sustenta sem verdade.
9. Pós-escrito — O que permanece quando tudo se mistura
Fui criado na fé católica, mas tive minha formação escolar em uma instituição protestante. E, ao invés de enxergar nisso um conflito, sempre procurei acolher o melhor de cada uma dessas experiências espirituais.
Dos católicos, herdei o senso profundo de caridade concreta — um amor ao próximo que vai além das palavras, e se manifesta na doação silenciosa, na compaixão ativa, na hospitalidade sem alarde. Um amor que acolhe a miséria humana sem desprezar a dignidade espiritual de quem sofre.
Dos evangélicos, aprendi a ética do trabalho, a responsabilidade individual, o valor da palavra empenhada, e a convicção de que prosperar não é pecado, mas expressão legítima de esforço, talento e bênção — desde que venha acompanhada de gratidão e generosidade.
Essas duas tradições, que tantos insistem em colocar em campos opostos, me ensinaram que a verdade espiritual não está nas disputas — mas nos frutos. E foi assim que iniciei minha busca pelas grandes fontes de sabedoria da humanidade.
Estudei a Cabala judaica e o misticismo cristão. Mergulhei na espiritualidade do budismo, na disciplina do zen, na compaixão do hinduísmo, na entrega do sufismo, na clareza taoísta e na reverência dos povos originários à natureza. Em todas essas vertentes, encontrei pontos de convergência essenciais:
– A centralidade do bem,
– A importância do autodomínio,
– O dever de servir,
– E a certeza de que a verdade não se impõe — ela se revela ao espírito preparado.
Sempre caminhei com a filosofia ao lado. Não como um enfeite intelectual, mas como bússola moral. A filosofia me ensinou a distinguir aparência de essência, discurso de ação, fé de manipulação.
Por isso, diante de tudo que vi, vivi e estudei, não posso aceitar em silêncio o que ouvi neste último domingo numa missa católica.
Ali, diante do altar, foi proposta a seguinte prece:
“Para que os governantes promovam ações legítimas que superem a cultura das falsas notícias nas redes sociais, rezemos.”
Não. Assim não.
Essa oração não é inocente. Ela carrega em si a lógica da tutela. Invoca a fé para legitimar o controle. Transfere aos governantes um poder que deveria estar no íntimo de cada consciência desperta.
Se há algo a ser combatido, não é apenas a desinformação — é a preguiça de pensar, o vício de repetir, a paixão por julgar sem saber. E isso não se cura com leis. Cura-se com lucidez.
A oração verdadeira não se dirige ao poder. Dirige-se ao coração.
O mais correto — e mais cristão — seria dizer:
“Para que cada cidadão se afaste da cultura das falsas notícias nas redes sociais, rezemos.”
Simples assim.
A fé que se torna serva do Estado deixa de ser caminho para Deus — e passa a ser instrumento de engenharia social.
Quando a Igreja reza para que os governos façam o que ela mesma deveria ensinar aos seus fiéis, algo essencial se perdeu.
Mas nem tudo está perdido.
Ainda existem almas vigilantes.
E enquanto houver um só fiel que reze com o coração limpo, a verdade não será vencida — apenas adormecida.
(*) O autor é advogado, procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.

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