
Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito -17 - Urbanismo e Cultura
10/07/2025 -
Por Milton Botler
No início da década de 1980, quando ainda era um jovem estudante de arquitetura, durante uma viagem pernoitamos numa pequena aldeia situada no nosso caminho em direção às ruínas de Cesareia, uma joia arqueológica romana, na beira do Mediterrâneo de Israel. Era sexta à noite, o Shabbatou sábados judeus e logo não haveria mais transporte público, nenhum serviço ou estabelecimento aberto.
Descemos numa estação de ônibus mal iluminada e uma senhora de aparência religiosa, que pelas vestes poderia ser muçulmana ou uma judia sefardita, nos abordou e nos ofereceu abrigo para o pernoite. Não hesitamos e acertamos o valor de um cômodo com banheiro e duas beliches para o nosso grupo.Seguimos a mulher através de um beco igualmente mal iluminado, num percurso relativamente tenso. Não dava para entender exatamente o que era aquele corredor estreito e comprido, onde as portas, que se sucediam num determinado ritmo de alguns passos,pareciam um tanto largas para as proporções do beco.
Era um ambiente desconhecido e a minha experiência espacial era ainda muito limitada, assim como os meus conhecimentos sobre arquitetura e urbanismo.
O Recife que eu conhecia era uma cidade em “modernização”, de ruas largas, construções novas, já com uma expansão imobiliária para boa viagem, na zona sul da cidade, quando ainda não havia a avenida Agamemnon Magalhães ligando o Recife à Olinda. O Recife era dividido entre centro, subúrbios e zona rural,um município em que todos os ônibus se dirigiam para o centro, onde se localizava o porto que deu origem à cidade.
Nasci e me criei no bairro da Madalena, mas também vivi o Recife dos meus pais e avós, nos bairros de Santo Antônio, de São José e, sobretudo, da Boa Vista,onde os imigrantes judeus estabeleceram uma espécie de território judaico aos moldes de suas aldeias da Europa Oriental.
Nesse Recife, havia a imponente avenida Guararapes, que fora um grande centro moderno onde meus pais trabalhavam em um vasto ambiente de renovação de construções consideradas obsoletas. Num centro ainda repleto de becos e prédios decadentes, o Bairro do Recife era o porto, os serviços financeiros, o movimento dos marinheiros, dos estivadores e do baixo meretrício.
Velhos edifícios
Seus “velhos” edifícios eram como “bolo de noiva”, enfeitados num ecletismo de inspiração francesa,até então símbolo de um mau gosto e trazido tardiamente para cá na primeira metade do século XX.Em poucas décadas esse conjunto eclético se tornaria um dos acervos mais importantes do nosso patrimônio edificado. Tinha frequentado uma Olinda do bar Ecológico, do frenético alto da Sé, do Homem da Meia Noite, Pitombeira, Acho é Pouco, Ceroulas, Elefante e tantos outros blocos que ainda proporcionam a mais autêntica consagração do espaço público, que é esse tipo de carnaval de rua praticado em Recife e Olinda.
Tinha passado também um curto período de experimentos modelo suburbano americano e conheci uma Manhattan Taxi Driver de Scorcese, suja, decadente,caótica e amedrontadora. Era uma Manhattan anterior à gentrification pela qual passou, quando o prefeito Rodoph Giulianni, e sua política de tolerância zero, retirou de lá os prostíbulos, os homeless e “limpou” as ruas de todos aqueles que representassem ameaça à segurança do “cidadão novaiorquino”.
A mulher abriu a larga porta e tive a impressão de reconhecer algo que se assemelharia ao “domus romano”: A porta dava acesso a um pequeno pátio a céu aberto para onde se voltavam alguns poucos recintos ou compartimentos. Era um ambiente de clausura, mas acolhedor. Amedrontados, trancamo-nos no nosso abrigo e chegamos a mover um armário para proteger a porta egarantir alguma segurança.Na manhã seguinte,quando saímos para continuar a jornada, para nossa surpresa, descobrimos que estávamos numa aldeia remanescente do período romano e não havia dúvidas: aquele lugar onde havíamos pernoitado era um “domus romano”.
A experiência ficou guardada na memória para nutrir a formação acadêmica de um jovem estudante de arquitetura,guiado por alguma curiosidade e imbuído de um certo sentido de justiça social, atento à desigualdade e à diversidade que encontramos nas cidades.Alguns conteúdos foram aos pouco sendo acrescentados na tentativa de entender o processo de produção do espaço e da expressão estética da arquitetura e do urbanismo: a forma como os grupos sociais constroem e se apropriam de espaço,o universo de trocas entre aquilo que se considerava oficial ou erudito e aquilo que se considerava popular, vernacular ou até mesmo vulgar.
Período de globalização
Era o período de globalização da economia e os paradigmas modernistas estavam em xeque. A crise da a pós-modernidade, dentre outras coisas, sinalizava com o fim das utopias,com a vitória da diversidade e da multiculturalidade, com a obsolescência do estruturalismo marxista e a recuperação da dimensão do sensível, um turbilhão de dúvidas para se repensar o contexto das novas transformações.
A arquitetura kitsch, parte importante desse universo de diversidade que povoa as cidades, foi um primeiro tema,uma possível chave para se adentrar no universo dessa crise. O Recife e seus subúrbios ofereciam um vasto material emblemático e, com alguns elementos da semiologia e semiótica,teríamos uma primeira aproximação.Dos subúrbios, por exemplo, destacamos uma casa inspirada nos arcos do Palácio do Alvorada de Oscar Niemeyer.
Outra residência,inspirada na arquitetura gótica das fortificações e castelos medievais. Edificações em contextos de periferia urbana, sem nenhuma preocupação com cânones estéticos da arquitetura, fosse a escala, a proporção, os materiais, as tecnologias ou quaisquer outros tipos de códigos e informações que indicassem pertencer ao universo do erudito, mas exatamente por isso expressando suas singularidades–e toda a carga simbólica que pudesse compor um imaginário de ascensão social, de modernidade, de progresso ou de poder.
Toda informação tem um custo quando traduzida de um código para outro, em dinheiro ou trabalho, como bem observou Décio Pignatari, tomando como exemplo uma breve análise pós-ocupação do Conjunto Pedregulho. Ali,a piscina, projetada semântica e sintaticamente como equipamento coletivo de esporte e lazer, foi traduzida para o vocabulário dos moradores como mictório público.O conjunto Pedregulho, no Rio de Janeiro,é um arrojado projeto modernista do arquiteto Afonso Reidy.
Concluído em 1952 para abrigar moradores de baixa renda, segue os melhores fundamentos do urbanismo modernista inspirado pelas utopias do falanstério de Fouriere pela máquina de morar funcionalistade Le Corbusier. Pedregulho é um complexo com 328 unidades residenciais, dotado de toda uma infraestrutura de equipamentos relacionada à educação, saúde,esportes,lazer e ao comércio.
Casa Navio
No Recife havia a Casa Navio, construída por um importante empresário local na orla do bairro classe média de Boa Viagem,de frente para mar,onde passou a residir uma boa parcela da elite da cidade.Esse exemplar da arquitetura kitsch do Recife era uma referência de orientação das pessoas da cidade. Próximo, depois, antes, na frente, por trás da Casa Navio eram referências comuns àquilo que hoje atribuímos aos monumentos, ao patrimônio edificado.
De alguma forma, as pessoas assimilaram a excentricidade daquele edifício e, mesmo após a sua demolição, na década de 1980, permanece como um importante ícone na memória patrimonial da cidade, da sua história. O edifício Casa Navio,substituto da edificação original,está,por sua vez, mimetizado no alinhamento contínuo e homogêneo de arranha-céus, sem representar nenhuma referência na paisagem ou para a orientação das pessoas.
Mas, essas trocas não se dão via mão única. Quando me graduei arquiteto e tive a oportunidade de trabalhar com favelas,atravessamos aquele desmoronamento dos paradigmas modernistas e tomávamos como trunfo da crise pós-moderna o resgate do popular, do vernacular, do singular, do sensível. De forma intuitiva,queríamos produzir um urbanismo que contestasse a visão sanitarista e funcionalista que eram hegemônicas dentro do pensamento da disciplina urbanística e de suas ferramentas projetuais.
Queríamos trabalhar o contexto na arquitetura,incorporar os elementos vernaculares e entender a lógica de construção daqueles assentamentos aparentemente caóticos, mas que tínhamos a certeza de que não se desenvolviam ao acaso porque aquela forma precária de habitar era, sobretudo, demonstração de resistência.
Queríamos respeitar o sentido das relações de vizinhança, de comunidade porque não conhecíamos nada daquelas relações que eram ignoradas pela “boa técnica”. Tudo aquilo que não queríamos era desenvolver um trabalho de urbanização de favelas que se resumisse a tirar todo mundo, apagar tudo, para depois construir “tudo certinho, racional e organizado”, formato comum à prática estatal de intervenção nas favelas.
Numa visita técnica à comunidade do Entra Apulso,no bairro de Boa Viagem, seguíamos algumas lideranças locais para conhecer o assentamento, as condições de moradia dos
seus residentes.
Adentramos por uma via estreita, com pouquíssima insolação onde algumas das portas,que se sucediam no ritmo de alguns passos,aparentavam demasiado largas para as proporções do beco.E o incrível, claro, era a sensação de ter vivenciado aquele espaço, muito próxima à sensação que tivera poucos anos antes, no pernoite a caminho de Cesareia. Pedi licença, então,para que abrissem uma daquelas portas.
O acesso dava num pequeno pátio para onde se voltavam algumas habitações ou compartimentos, tudo muito similar a um domus romano de anos atrás no oriente médio.
Posto isso, veio naquele momento a pergunta fundamental: Como seria possível, então, encontrar aquela mesma configuração do domus romano do oriente médio, em pleno século XX, numa favela do nordeste brasileiro?
O caminho para decifrar a presença local do domus romano seria um percurso introdutório às origens de nossa experiência de habitar, do “viver nos traços deixados da vida passada”, nas palavras Ivan Ilich. Essa busca, no entanto, compreende uma abordagem dessa experiência cuja abrangência é ainda limitada, conseguindo reunir apenas algo aprendido da visão ocidental de cidade, eurocêntrica e relativamente bastante codificada.
A abordagem não chega a incorporar como necessário aprofundamento as contribuições das demais culturas que formam os mosaico de nossas
cidades, sobretudo as culturas indígenas e africanas que o cotidiano revela estarem bem presentes sem a devida codificação, mas estão lá, naqueles espaços segregados, periféricos e degradados. Mas devem estar presentes também nos espaços das elites locais, seja em gestos, formas de apropriação do espaço ou quaisquer outras representações ainda não necessariamente codificadas.
Universo amplo da antropologia
Entramos, portanto, no universo amplo da antropologia e, dentro dele, no conceito de cultura.Para Gilberto Velho (1987), o problema central da antropologia consiste no cruzamento do social com o individual, no politeísmo de valores, na pluricausalidade, na questão da unidade e continuidade dos sistemas sociais, ou seja: “Como estabelecem pactos? Como se efetiva a dominação? De que forma são socializados e incorporados os indivíduos? Como é possível exercer o poder e que padrões de reciprocidade sustentam as redes de relações sociais”
Tomando emprestado de Muniz Sodré (1983), o conceito de cultura consiste "num complexo diferenciado de relações de sentido, explícitas e implícitas, caracterizadas em modo de pensar, agir e sentir".O autordelimita ainda o conceito através da noção de campo,"o espaço próprio e distintivo de um modo específico de relacionamento com o sentido e com o real", que remete ao relacionamento com a diferença, "ao movimento de um conjunto de indivíduos na busca dos momentos constitutivos de uma coesão grupal, de sua autonomização, de sua identidade social".
O conceito de cultura é aí abordado como uma estrutura de trocas de significações e como uma realidade vinculada a outras instâncias da vida social, política, econômica etc. incorporando a noção de diversidade no interior de um mesmo campo cultural eestabelecendo"subcampos culturais", zonas de especialização de códigos.
São nessas fronteiras e inter relações culturais e seus subcampos, portanto,onde ocorrem particularizações e universalizações das experiências, conforme nos ensina Gilberto Velho(1987).
As particularizações,restritas a certos segmentos, categorias, grupos e até indivíduos. As universalizações,expressas culturalmente através de conjuntos simbólicos homogeneizadores como paradigmas, temas etc.
A partir dessas fronteiras, então, o antropólogo nos traz de volta àquilo que julga ser o problema básico da cultura: “o que pode ser comunicado? Como as experiências podem ser partilhadas? como a realidade pode ser negociada e quais são os limites para a manipulação de símbolos? Qual o grau de impermeabilidade a mensagens e como se mantêm subculturas? O que significa o desvio, o comportamento desviante enquanto manipulação ou rejeição de normas e regras dominantes? qual a eficácia potencial da universalização de códigos particulares?”.
Na esfera concreta,dos assentamentos construídos pelo homem, estamos nos referindo à forma como ele demarca o seu espaço, estabelece fronteiras e como esses limites são legitimados pela comunidade (Da Matta, 1985). Podemos concluir, nesse momento, que a cultura de habitar um território pode ser traduzida como resultado de uma dinâmica espacial permanente,frequentemente conflituosa, de estabelecer domínios e limites sobre ele.
Dessa forma, portanto, criamos em praticamente todas as cidades os espaços de representação das elites e os espaços de representação da massas, em diversos níveis de inclusão e de exclusão.Os sistemas de representação são entendidos aqui, como propõe Muniz Sodré, como elementos mediadores entre os códigos culturais e a realidade.
Ao observarmos a diversidade dentro de um mesmo campo cultural, encontramos aspectos de homogeneização e de particularização,simultaneamente,relativos aos domínios e limites estabelecidos por cada grupo social. O compartilhamento de um padrão semelhante de consumo,como fator de identidade grupal das elites globalizadas, por exemplo,compreende dentre muitos aspectos, manter domínios e limites em territórios dotados das melhores infraestruturas, serviços e espaços, inclusive públicos.
Mas, em cada cidade, esses mesmos territórios estão impregnados pelas particularidades locais,repletas de elementos que buscam estabelecer uma identidade própria de constituição de um “lugar”,um espaço cujo valor é socialmente atribuído. Neste caso, um lugar distintivo das elites locais e de suas memórias, que são estendidas e legitimadas para o reconhecimento de toda a cidade do seu patrimônio histórico e imobiliário: seja os centros históricos como o bairro do Recife ou bairros valorizados como Casa Forte e Boa Viagem.
Bem documentada e codificada, a cultura hegemônica estende, também, todo um sistema de oficial de normas urbanísticas com formas específicas de ocupare construir seus assentamentos.As ocupações e construções produzidas por outros subgrupos culturais, portanto, vão sendo paulatinamente absorvidas ou substituídas, mesmo considerando a permanência de fragmentos de resistência no processo de tradução de um repertório de um código para outro.
As cidades estão repletas dessas sobreposições. Em toda história das cidades vamos encontrá-las, para deleite dos arqueólogos. Do aprendizado sobre o tema, destaco o compêndio de Norbert Schoenauer (1984) sobre a história da habitação. O trabalho trazia duas belas gravuras medievais francesas retratando os anfiteatros romanos de Nîmes e de Arles. O curioso em ambas as gravuras era a ocupação urbana no interior dos anfiteatros, convertidos em fortificações durante a idade média, como pequenas cidadelas construídas no interior das muralhas.
Conhecer essas localidades, com suas sobreposições da antiguidade romana com a fragmentação e o isolamento medieval,tornou-se para mim uma meta, quase uma obsessão que realizei anos mais tarde. Para minha decepção, no entanto, as duas “cidadelas” foram transformadas novamente em anfiteatros romanos, sem deixar vestígios das construções medievais no seu interior. Tratava-se de um procedimento comum de “preservação” do patrimônio histórico, utilizado até bem recentemente e oriundo ideário romântico e historicista dos séculos XVIII e XIX, onde a arqueologia preconizava encontrar os elementos clássicos originais e remover as deturpações introduzidas ao longo do tempo:o ideário de se “reconstituir” o patrimônio original.Esse ideário foi transposto aqui para nossas terras e esteve presente na nossa cultura de preservação até o último quarto do século XX.
Postura mimética
Não tardou para se consolidar numa postura mimética de “reconstruir” um estilo original como forma de preservação de um passado que não mais existia. E assim, tivemos a destruição das cidadelas medievais de Nîmes e de Arles, e aqui em Olinda, no final da década de 1970, com a “reconstrução” da fachada da catedral da Sé para recuperar o estilo original, maneirista, tendo sido apagados os elementos barrocos que lhes foram introduzidos ao longo do tempo.
Essas posturas mudaram. A cultura urbanística de preservação passou a incorporar as demandas dos historiadores e antropólogos. O bem patrimonial, quando pertencente a uma cultura viva, deveria agora contar a sua história, guardar os registros das transformações ocorridas ao longo do tempo. Exatamente por isso,deve estar aberta às intervenções contemporâneas, sujeito à contribuição sensível e criativa de arquitetos e artistas com a capacidade que têm de valorizar o passado com elementos do seu tempo, a exemplo da Pirâmide do Louvre, da Pinacoteca de São Paulo, do SESC Pompéia, dentre uma infinidade de obras notáveis.
Outra gravura importante, também trazida por Schoenauer, apresentava a transformação de uma avenida romana com colunatas clássicas num bazar islâmico. Esse tipo de sobreposição não constitui simplesmente a apropriação de um espaço para mudança de uso. Mais do que isso, envolve uma relação de ordem e de organização, de uso e de sentido de lugar entre culturas distintas.
Numa outra ponta, nos espaços de representação das massas, os registros tendem a ser mais precários.
As memórias tendem a desaparecer à medida que a urbanização vai substituindo e apagando todo um processo de construção cotidiana da cidade e de absorção de sua população a ela,no anonimato da sociedade organizada em Estado.
Quando foi removido o Mata-Sete, favela que ocupava as margens do Canal do Jordão, no bairro de Boa Viagem, seus moradores migraram para uma outra área estuarina nas proximidades.Assentaram-se sobre um manguezal na bacia do rio Jordão e, naquele local, começaram a erguer uma nova ocupação conhecida até nossos dias como Entra Apulso.
O nome é expressão de perseverança e de resistência da população excluída. Procurava enaltecer a identidade para com o ato heroico de ocupar terra urbana em meio a todos os tipos de adversidades, como o fizera a população da também heroica “Brasília Teimosa”, ali próximo, no bairro do Pina. E, mais do que isso, era a representação de uma enorme parcela da população que, às duras penas, ainda vem tentando conquistar um pedaço de solo urbano, se estabelecer dentro dos limites da cidade e aproveitar de seus benefícios.
As áreas estuarinas onde se assentou o Entra Apulso consistiam em propriedades já parceladas em lotes para fins de urbanização, embora ainda fossem mangues sem qualquer tipo de benfeitoria. O que existia era apenas o registro cartorial de loteamentos onde a urbanização ainda não tinha chegado, embora já estivesse próxima, não tardaria pressionara favela com a chegada do Shopping Center Recife e os investimentos imobiliários que o acompanhavam. E não era pouco: O conjunto urbano projetado a partir do shopping center consistia na reprodução do modelo de cidade rodoviária, do urbanismo baseado no espraiamento da cidade, consagrado pelo hegemonia do automóvel.
Sobre aquele parcelamento virtual, então, a população do Entra Apulso iniciou a demarcação de seus domínios, dividiu,aterrar o mangue e ergueu seus barracos.Naquele ambiente sem infraestrutura e de construções precárias se formava um conjunto compacto, denso e aparentemente caótico.
Foi naquele local que encontrei não apenas o domus romano, mas um fragmento ou um tipo de cidade em plena construção, com usos e tipologias diversificadas.Uma forma urbana e um modo de produzi-la divergente daquilo tido como racional ou formal, com um repertório espacial complexo e diversificado composto por vãos,correr-de-quarto, becos,passagens, travessas, largos e pátios. Um tipo de espaço construído sob uma noção aparentemente complexa e gradativa das relações entre o público e o privado.
Território
Tudo isso disposto num território como se houvesse uma espécie de intenção coletiva de sobrepor ao loteamento existente, com toda a sua racionalidade,um outro sistema de ordem e de organização. Como se a intenção coletiva de exercer um domínio próprio implicasse apagar, propositalmente, os vestígios deixados da cultura hegemônica que lhe negava a permanência naquele ambiente.
Aos poucos a urbanização trazida pelo shopping ia avançando e, também, aos poucos os limites e domínios da favela iam tomando configuração. Em contraste com a estrutura de ruas largas e ortogonais, muros, grades e prédios altos do seu entorno, as proximidades do Entra Apulsojá anunciavam uma espécie de zona de transição entre a favela e a cidade formal.
Um tipo de relação simultânea de barreira de separação e de espaço de integração entre dois mundos. Tal qual as muralhas medievais europeias, nessa região de transição se estabeleciam os serviços utilizados pelos transeuntes: borracheiros, estofadores, cabeleireiros, encanadores, eletricistas, chaveiros, marceneiro etc.
Entra Apulso se institucionalizou como uma Zona Especial de Interesse Social, de acordo com as normas urbanísticas do município, com o objetivo promover a sua integração à estrutura da cidade, isto é,trazer a infraestrutura, a melhoria habitacional e a regularização fundiária.
Quando iniciamos nosso trabalho de assessoria técnica de urbanização para a comunidade, estávamos literalmente diante do mito do Minotauro, procurando um fio de Ariadne capaz de nos guiar no labirinto. Tratamos logo de mapear o sistema viário para codificar aquilo que entendíamos como domínio público. Para os urbanistas, ordenar o espaço, isto é, separar o público do privado, consiste no principal procedimento de regulação, porque é uma ferramenta que permite introduzir o Estado como mediador dos conflitos entre essas duas esferas. E, a partir daí, define-se o domínio público,por onde se distribui a infraestrutura coletiva que, ao final,atende ao domínio do privado.
Mas, estamos falando da mediação do Estado num território construído à margem de sua regulação. As relações ou “os laços de solidariedade”, conforme definiu Philippe Ariès (1988), consistiam nos arranjos de mediação direta entre os habitantes de uma cidade, antes do advento do Estado.Numa sociedade em que a vida social se organizava, sobretudo,a partir de vínculos pessoais, de dependência e de ajuda mútua.
O percurso
Para o autor, o percurso de transformação das relações da solidariedade ao anonimato é que marca a passagem da idade média europeia para uma era regulada pelo Estado Nacional. Mas, apesar da regulação estatal como fator hegemônico, Ariès nos lembra que continuam existindo sobreposição de formas de solidariedade como relações intraestatais na sociedade contemporânea.
Ao entrarmos no Entra Apulso, percebemos que entre o espaço público e o privado havia uma espécie de gradação. O espaço era público, ou talvez de um público restrito à comunidade.Ali, todos notavam a presença de estranhos, assim como havia outras formas de controle social sobre aquele território constituindo espaços semipúblicos, semi privados, com servidões de passagem, espaços exclusivamente privados e espaços privados compartilhados. E nós percebíamos que éramos notados.
No percurso, novamente aquela sensação que tivera no pernoite a caminho de Cesareia: O beco estreito, o ritmo da sucessão de portas e, dentro delas,o pequeno pátio para onde se voltavam algumas habitações ou compartimentos.Lá estava ele novamente, o domos romano!
À medida que adentrávamos no assentamento, percebíamos, e até reconhecíamos,algumas das várias formas de organização desse tipo de espaço e seus múltiplos arranjos de compartilhamento. Na cidade formal, os logradouros, vias e espaços livres, separam o espaço público do privado, deixando nosso repertório de urbanistas reduzido à delimitação entre essas duas esferas. Aqui, o espaço público é o remanescente deixado das ocupações. Mas, tudo isso já havia sido regulado pelo direito romano: O'Direito de passagem, a servidão e a figura do espaço exclusivo, destinado ao descanso do guerreiro, o espaço privado por excelência.
Nossas ferramentas para interpretar o espaço da favela eram ainda muito restritas, procurávamos alguma referência que nos orientasse naquela escala do espaço construído que era essencialmente do pedestre. Abordagens que já pertenciam ao universo dos clássicos do urbanismo, mas que a nossa escola não nos tinha ensinado.
Utilizamos, por exemplo, os mapas mentais de Kevin Lynch e a visão serial introduzida por Gordon Cullen (1974), uma metodologia mais voltada para analisar as qualidades estéticas, tipológicas e morfológicas a partir de percursos. De caminhar pela cidade, criando referências a partir da diversidade, da particularidade e das surpresas que ela nos oferece.
Distinto, portanto,da escala da cidade dos veículos motorizados que dominam a paisagem urbana. Como buscávamos reunir e organizar outros elementos de análise e de interpretação daquele universo em construção, Berger e Luckmann (1978) nos abriu a porta para analisar a vida cotidiana. Aquilo que Michel De Certeau (1985) denominou "práticas cotidianas", com as noções de "itinerários heterogêneos" e de "trânsito",elementos chave para organizar um sistema onde a cidade é algo praticável,de utilização múltipla pelos habitantes. Consiste na ótica do uso pelos atores sociais,que são simultaneamente produtores e praticantes da cidade.Eles Transformam o espaço que lhes é imposto e ali estabelecem seus domínios e limites.
Esse processo resulta no que Geertz (1978) denominou como “morfologia da prática". Ocorre segundo uma lógica de ocupação e de construção incremental cuja rede de operações são objeto de nossa análise.
Para tentar entender essa lógica de operações cotidianas, a morfologia da prática, a semiótica nos propunha abordar o espaço construído através da análise dos discursos verbal e não-verbal (Ferrara, 1988). Estes níveis de discurso definem, também,o que De Certeau (1985) chamou de "speech act do lugar" - o discurso da prática do lugar que se dá através da fala do informante, do espaço e da forma construída, trazendo “a possibilidade de expressar, de enunciar e de criar o real”.
De Certeau define, então, três aspectos analíticos para a apreensão do speech act do lugar: O aspecto estético, relacionado à forma criativa de habitar, utilizar, manejar o espaço e a ordem imposta, “ao modo específico de colocar em prática uma ordem exterior”; O aspecto ético, que está relacionado à recusa de identificação com a ordem e “fundado na vontade de criar alguma coisa"; O aspecto polêmico, que diz respeito às práticas cotidianas enquanto "defesas para a vida" e com as estratégias de “luta contra o mais forte”
As vias no interior do Entra Apulso não tinham nome e os imóveis não tinham número.
Na ausência da mediação estatal sobre a esfera pública, a relação entre espaço e ordem social se apresentava através de“formas personalizadas de orientação”, como bem observou Da Matta (1985).
Nos remetendo, neste sentido,as nossas cidades brasileiras do interior pela dificuldade de se demarcar com nitidez os limites das casas e das ruas, ocorrendo, por exemplo, o saudoso costume de se colocar as cadeiras nas calçadas para usufruir de temperaturas mais amenas e ampliar as relações de vizinhança.
Nos traz, então, a ideia de fusão entre espaço e ordem social.Uma aproximação para tentarmos entender a concepção do espaço a partir da sociedade, de suas redes de relações sociais e de seus valores.Nos referimos a essas situações em que a oposição entre casa e rua é manipulada, fragmentando a rígida hierarquia entre público e privado, onde a rua pode ser apropriada como extensão do espaço doméstico.
E, no sentido oposto também, em que zonas de uma casa podem ser percebidas em certas situações como parte da rua, onde a institucionalização de espaços como as salas de visitas representariam um mundo intermediário entre casa e rua, de exposição da memória e do status da família, separada da intimidade do lar. Isso porque o programa arquitetônico da habitação burguesa que praticamos no Brasil foi padronizado por uma hierarquia estabelecida entre as áreas social, íntima e de serviços que não deveriam se misturar.
E que a institucionalização dessa prática teve origem, talvez, na importação de determinados padrões vitorianos de privacidade pelas nossas elites. Assim, entendemos que o espaço é também uma instituição, como nos ensinou Frederico Holanda (1985), no sentido de que é nele que as práticas se tornam reais.
Lugar mitológico
Do lugar mitológico do fogo às cozinhas contemporâneas e varandas gourmet, da transformação dos padrões de intimidade vitoriana para os padrões dos aglomerado urbanos contemporâneos, como observou Habermas (1978), a forma como os espaços se institucionalizam e se transformam admite a diversidade e a sazonalidade em relação a sua apropriação e uso.
Nosso trabalho no Entra Apulso tinha o foco nas necessidades básicas de moradia dos seus habitantes. A nossa visão funcionalista e a forma hierarquizada de conceber a habitação mantinha dificuldades para incorporar a ideia de sobreposições de uso num mesmo espaço, tratando-se, sobretudo, dos espaços mais reduzidos da habitação popular.Claro que a sala e a cozinha deveriam compor um mesmo espaço.
Tínhamos dificuldade de aceitar, por exemplo, situações corriqueiras das famílias,onde o espaço utilizado como cozinha durante a maior parte do dia se transformava em dormitório durante a noite. Por esta razão, os moradores quando perguntados sobre a composição funcional da habitação, se referiam ao número de “vãos” existentes e não ao uso institucional que podiam desempenhar enquanto sala, quarto ou cozinha.
De forma semelhante, os americanos também se referem a número de “rooms” – cômodos ou vãos – de uma residência e não ao seu programa funcional.
Quando nos reunimos com os moradores do Entra Apulso buscando entender seus sistemas de orientação e suas formas de apropriação do lugar, construímos com eles alguns mapas de referência com registros de formas individuais e coletivas de representar aquele espaço onde habitavam.
Os registros revelaram, sobretudo, o nível de integração do morador na comunidade, a extensão da sua rede de sociabilidade. Conforme Elizabeth Bott (1976), essas redes se consistem no meio social imediato de uma família urbana e variam na extensão dos relacionamentos que a família mantém entre si e, especialmente, nos relacionamentos informais com amigos, vizinhos e parentes.Dentre os vários fatores que definem as conexões dessas redes, o grau de dependência econômica entre os membros da família, o tipo de vizinhança as oportunidades de conexões fora das redes existentes e de mobilidade física e social.
Alguns mapas apenas conseguiam mostrar o conhecimento sobre o entorno imediato da sua habitação e uns poucos aspectos físicos mais marcantes, como situações de alagamento nos períodos chuvosos. Eram, portanto, os registros dos habitantes que constituíam redes de sociabilidade mais restritas ou até inexistentes, sobretudo inquilinos recém chegados. Outros registros demonstravam níveis de conhecimento mais completo sobre o lugar e seus moradores. Fartos em localizações dos seus parentes, vizinhos e estabelecimentos,abrangiam praticamente todo o assentamento.
Quanto mais extensa a rede, maior o nível de agregação do morador. A figura do agregado (Da Matta, 1990) compreende elementos como o filho que casa ou o parente que vem do interior para se estabelecer dentro do domínio doméstico que, dependendo da extensão da rede, pode se espalhar por todo o assentamento.
A figura do agregado é responsável, portanto, pela dinâmica de transformação dos padrões construtivos decorrentes de suas demandas por espaço, seja um cômodo ou a construção de novos pavimentos, gerando os padrões locais de verticalização e adensamento dentro do assentamento. E assim, no mapa de referência do Entra Apulso apareciam o Largo do Zé Bezerra, os becos do Aleijado, da Severina e da Suely, o salão de beleza de Mendes, a venda de Dona Cristina.
Beco do Aleijado
O "Beco do Aleijado", por exemplo,consistia numa variação do domus romano, na forma de um claustro dentro uma quadra.Um pequeno pátio de dimensões generosas ara os padrões locais cujo perímetro era definido por sete edificações. No processo cotidiano de mediação direta, de negociação por esse espaço, apenas duas das sete edificações findaram com acesso e uso direto sobre o pátio, configurando o mesmo tipo de relação de compartilhamento que convencionamos chamar de condomínio.
O Aleijado, antigo morador, tido como pessoa perigosa pelos vizinhos, exerceu domínio sobre toda a área que hoje corresponde ao pátio.Impôs este domínio inclusive de forma coercitiva, impedindo que outros vizinhos compartilhassem do mesmo acesso e do mesmo pátio. Os vizinhos excluídos do acesso ao beco do Aleijado negociaram entre si suas servidões de passagem e assim sucessivamente foram estabelecendo espaços privativos e de domínio comum, compartilhados por pequenos grupos e os espaços de servidão de passagem.
E, nessa lógica de operações cotidianas, paulatinamente se consolidam níveis de domínio coletivo, de compartilhamento do domínio público.
De forma semelhante tem sido construída boa parte dos assentamentos urbanos das metrópoles brasileiras, à margem da regulação do Estado, sem uma codificação legível e institucionalizada, mas de alguma forma reconhecida, com a intenção de ser incorporada à cultura hegemônica de se fazer a cidade formal.
Passados vários anos deste aprendizado, não sabemos dimensionar com nitidez os padrões de integração e de permeabilidade que se estabeleceram entre o Entra Apulso e o seu entorno, o nível de influência que um exerceu sobre o outro. Mesmo considerando vários aspectos que parecem ter contribuído para a transformação do lugar ao longo do tempo:A visível dinamização das atividades econômicas, a melhoria das condições de infraestrutura e de moradia dentro do assentamento, a mobilidade social das pessoas e a dissolução de várias redes de sociabilidade que contribuíram para manter os domínios e limites de um determinado grupo social naquele território.
Permanecem ali, no entanto, as referências das estruturas morfológicas e tipológicas originais, resultado de décadas de manipulação,refletidas no traçado urbano, nos padrões construtivos, de adensamento e de verticalização, bem como na forma de apropriação e uso dos espaços pelos seus habitantes.
As formas de resistência parecem ter preservado o caráter distintivo desse tipo de produção cultural do espaço em relação aos assentamentos que se avizinham na cidade. A favela, então, segregada, dissonante e consolidada, reúne os mais sensíveis elementos para representar o legítimo patrimônio cultural – material e imaterial - de nossas cidades.
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Milton Botler é Arquiteto e urbanista
