
É Findi - Eu, Ricardo Ramos e Graciliano - Resenha em formato de crônica, por Romero Falcão*
12/07/2025 -
Escola de Carpintaria
Desde jovem sou tiete do incrível escritor, Graciliano Ramos. Na releitura do livro, "Angústia" - lançado com o autor na cadeia - pela enésima vez, descubro não se tratar apenas de alta literatura, também é canteiro de obra, manual de estudo para quem se atreve a escrever obra complexa ou costurar linhas no tecido urbano, banal, corriqueiro. Não só "Angústia", toda criação do "Velho Graça" é oficina literária. Escola de carpintaria, entalhar o escrito até arrancar todo excesso, rebarbas, enfeite. Graciliano combatia o adorno, a frase árvore de Natal. Por exemplo, diante de "olhou de soslaio", dispararia enfezado: Puta que pariu, escreva com precisão, concisão, objetividade. Diria mais: Ser crítico. Se preciso, ferino. Covarde, jamais.
DNA dos Ramos
Chega de delongas, vamos ao que interessa - se é que interessa. Soube pela internet da biografia de Graciliano Ramos, dessa vez escrita pelo próprio filho, Ricardo Ramos. Já havia lido outra, "O Velho Graça", feita por Dênis de Moraes. Mas essa deve ser especial, imaginei. Ninguém mais do que o filho pra contar por dentro e por fora a vida do pai. Ainda mais um filho escritor cujo DNA dos Ramos se revela em cada frase enxuta, irônica, contundente. Ricardo Ramos não é filho de, "peixe é peixinho". Ricardo é um tubarão. No afã de ler a tal biografia, poderia ter feito o pedido pelas lojas virtuais. Os algoritmos farejaram o meu desejo. Bastava abrir as redes sociais e Graciliano pipocava na tela do celular. Dispensei a tecnologia, o conforto de receber o exemplar em casa. Marchei para a livraria física - sem preparo físico, resistindo como pode. Afinal, se não houver comprador, restará a última pá de areia sobre a sepultura.
Zanzando no Shopping
Vou à cidade - como se dizia nas antigas. Apanho o ônibus, fábrica de suor. Ah, infelicidade, na primeira livraria, nada de biografia. Partir pra outra, nada, mais uma, também não. Desilusão, voltei pra casa, cabisbaixo. Outro dia, nem lembrava dos Ramos de Quebrangulo - Alagoas. De repente, zanzando no shopping, entrei numa livraria. Um único volume me esperava - não sei se foi lábia de vendedor. Peguei, paguei, botei debaixo do sovaco, "Graciliano,"retrato fragmentado", uma biografia"- assim, em minúsculas. Capa cinza prateado. Graciliano de terno e óculos, fumando, cigarro pendurado pelo indicador e polegar. Na contracapa o rosto emoldurado em bico de pena, cuja perfeição dos traços é arte de um dos amigos mais chegados, o excepcional pintor, Portinari. O qual caprichou nas linhas angulosas, destacando o prognatismo.
Um Carro Tira Fino
Saí pelas ruas trocando passos vagarosos. Ricardo Ramos aberto na mão, sapato topando nos buracos, nas perfeitas e bem acabadas calçadas da Veneza Brasileira. Numa pernada só botei pra dentro 28 páginas. Nem nas travessias os olhos se descuidavam da suculenta narrativa. Um carro tira fino, faltou pouco, o motorista me lança sublimes adjetivos. Seria morte bonita, atropelado, agarrado ao criador de Paulo Honório, vazando sangue sob o apetite dos celulares, das lentes sensacionalistas.

"Vivente Alienígena"
Darei relevo às intimidades do genial escritor. Escreve Ricardo, o filho: "Sua toalete era meticulosa e demorada: limpar a nicotina dos dedos à custa de pedra-pomes, lixar as unhas, escanhoar-se. Depois no chuveiro duas ou três ensaboadas, esfregando-se todo(as orelhas exigiam cuidados pacientes), afinal enxugar-se ou, melhor, friccionar-se longamente com a toalha. Ao vestir-se estava de um vermelho arroxeado". Suas roupas imaculadas. Seu cheiro nenhum. Se não usava colônias, nem mesmo loção de barba, lavado e escovado ao exagero, que odor poderia ter"? Mais que tudo, o lavar das mãos. Sou testemunha, e admito que me divertindo, das ocasiões em que lhe apertavam a mão, dentro de casa, e ele disfarçando saía pra lavá-la. Antes disso nem acendia um cigarro. Era Graciliano asséptico, disciplinado, nos aparece extravagante. Vivente alienígena. "Nunca vi meu pai de camisa esporte". Ele dizia: "Tenho cinco ternos estragados". "Tinha nada. Era o seu viés, o mesmo com que se referia à sua obra, reduzindo-a".
"Escrevia a Lápis"
"Levantava antes das seis, a primeira tarefa era cuidar da sua mesa. Mais que limpa, a qualquer hora parecia envernizada. E posta em ordem: os dicionários à esquerda, as pastas e pilhas de folhas à direita (o peso do papel no mesmo lugar), os lápis apontados, os maços de cigarros, o cinzeiro. De preferência escrevia a lápis, sem usar borracha, mas cortando palavras, frases ou trechos indecisos, imprecisos, insuficientes, para seguir ou sobrepor mais definitivo. Pelas margens, nada. O essencial das mudanças nas entrelinhas".

"Um Erro de Pensamento"
"Graciliano escrevia à mão, nunca bateu à máquina" Ricardo tem as primeiras lições do pai - exigente, analítico : "Não escreva "algo", é crime confesso de imprecisão. Reticências? É melhor dizer do que deixar em suspenso. Exclamações? Ninguém é idiota para viver se espantando à toa" - Ah se Graciliano vivesse no tempo do Zap. Continua Ricardo: "Certa vez, a propósito de um parágrafo em que eu empregara diferentes tempos de um verbo-passado, presente, futuro - recomendou: "Não faça isso, resisti, Machado de Assis fazia, até numa frase. Estava certo. Diz Graciliano, "Era um erro, sim, não gramatical, mas de pensamento. Ninguém raciocina aos pulos. E arrematou: "O importante é escrever duas páginas no condicional sem ficar monocórdio, nem dar eco, sem que se perceba". Prossegue Ricardo: "Esmoreci, confessando: Não vou conseguir isso nunca". Ele me animou: "Vai, sim. Com suor, paciência, vai". No que tange aos personagens, numa conversa com a cria, falou: "Minhas personagens não são seres idealizados, e sim homens que eu conheci".
Inigualável Romancista
"Papai era cuidadoso, ponderado, medido nas suas manifestações públicas, em particular era dado a rompantes. Quando casou pela segunda vez com uma mulher 18 mais nova. A mãe questionou a futura fera literária: "Graciliano, você nunca mais me falou de mulher moça e marido velho". O velho Graça soltou essa: "Minha mãe, não se fala de corda em casa de enforcado". Sempre surpreendente nas respostas, não era incomum numa roda de bar, na redação do jornal, na alta cúpula da política, do partido, dentro das grades, alguém sair nocauteado pelo cérebro mordaz, inteligentíssimo, ágil, cáustico, do inigualável romancista.

Uma dúzia de Graciliano Na Política Atual
Ricardo conta que viu o pai chorar duas vezes: pela morte do irmão Márcio e de Stalin. Márcio praticou suicídio. "Todos nós sentíamos a inclinação, a preferência de papai por Márcio. Talvez por ser o primeiro, com mais tempo na sua afeição. Talvez por ser o mais inteligente de todos nós, precoce, brilhante, inesperado naquela sua organização intelectual". Quanto a entrar na ABL, mandou o torpedo. Segue o diálogo:
- Você não foi benevolente com a Academia, por quê?
- Aquilo de ser diferente. Não é pouco?
- Não, acho que não. Eu não podia atacá-la, tenho amigos lá. Seria uma grosseria
- Não me vejo lá por dois motivos. Primeiro aquele negócio de visitação, mendigando votos. Se me conhecem, é chover no molhado. Se não me conhecem, é pura bobagem. Eu não sou de beijar a mão. O fardão me lembra folclore, fantasia de guerreiro ou Mateus, o sujeito todo enfeitado de espelhos, vidrilhos e miçangas. Ao vestir aquilo, eu me sentiria um século mais velho. Anacronismo. Li que Graciliano detestava música e futebol. Era ateu, mas sabia a Bíblia de trás pra frente, só por interesse literário. No que se refere aos dois anos como prefeito de Palmeiras dos Índios - Alagoas, deu um show às avessas, fez tudo contrário a boa e velha política. Brilhou o verdadeiro espírito público, incorruptível, blindado a vantagens, conchavos. Cortou na carne, multou o próprio pai, contrariou os poderosos, os coronéis. Foi perseguido, ameaçado. Como assim, aquela farinha não pertencer ao mesmo saco? A pressão chegou ao ponto de desistir do mandato. Cá com os meus botões, Ah!!! Se tivéssemos ao menos uma dúzia de Graciliano na política atual. A coincidência das datas e da causa mortis são impressionantes.
O autor de Memórias do Cárcere morre no dia 20 de março de 1953, de câncer no pulmão. Ricardo Ramos morre em 20 de março de 1992, de câncer no fígado. A poetiza, Elizabeth Bishop disse - salvo engano: "Não queira conhecer de perto os grandes escritores". Eu digo: gostaria de ter conhecido Graciliano, de perto, de perto, muito perto.
*Romero Falcão, é um cronista que se arrisca a fazer poema torto, autor do livro: Asas das Horas, com prefácio do Prof. José Nivaldo.

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