
É Findi - Céu ou Inferno - Conto, por Maria Inês Machado*
12/07/2025 -
Noite de lua cheia. No alpendre da casa grande, amigos discutiam questões sobre transcendência, porém, as ingerências não acrescentavam nada. O local era acolhedor. As luzes espalhadas iluminavam e fundiam-se com a luminosidade da lua. Entre a agitação da cidade e o firmamento pontilhado de estrelas, estavam os três colegas investigando a essência humana, mas em especial o que nos aguarda no andar de cima.
Cinquentões, capitalistas, inteligentes. A discussão estava acalorada. De repente percebem que alguém entra, senta-se na cadeira de balanço e observa em silêncio. Embora achem estranho, atribuem a presença a algum vizinho amigo da família, ou talvez parente distante em visita.
Olhar enigmático, sorrateiro, parecia sorrir dos investigadores das coisas metafísicas.
Nicolau observava sem discutir. Figura estranha. Sessenta anos, bom nível de instrução. Discussão! Perda de tempo. Pouco serviço. Aproveitou o silêncio momentâneo e sentenciou:
— Retornamos para o andar de cima com a bagagem que carregamos na Terra.
Resposta que sempre dava quando o tema/assunto era debatido.
— Demonstra!
— Sim, mas depende do silêncio.
A conversa aportou em torno do movimento da chegada da morte. O mistério é porta para curiosidade. Nicolau vai discorrendo com sabedoria. Domínio do assunto. Os demais estranham as explicações.
— Acredito na matéria. A morte é o fim de tudo.
— É um direito seu, companheiro. O que é matéria?
— A física explica.
— A Ciência não é estática. Progride! Novos conceitos. Outras abordagens merecem atenção.
— Falta consistência no parecer, Nicolau.
—Não é opinião nem conjecturas. Uma ou outra geram desacordos. Querem ouvir?
— Sem interferências. Posso narrar o meu caso, o qual entenderão o assunto em pauta.
Silêncio tumular! Paz de cemitério. Cada criatura humana é responsável pela chegada no andar de cima. Nem céu, nem inferno. Estados de Consciência. Podem ficar espantados, abobalhados, admirados. Retornamos ao andar de cima com a bagagem que construímos na Terra. Livre arbítrio. Onde estão os pensamentos, aí sua vida. Sua morada. Casa Mental é o espelho da vida em qualquer lugar.
A alma busca a individuação e muda de estado. Quando olha para dentro, trabalha o ego, transcende, ocorre o processo de fusão Ego/Self. Quando olha para fora, se torna engessado, ego-persona.
—Onde você aprendeu isso Nicolau? Na Bíblia?
— Não interessa, vamos aos fatos.
—Nicolau, o ato de se livrar da carcaça de ossos é libertação. Porta do céu aberta. Desafio você mostrar o contrário.
— Houve aqui um acordo firmado. Ausência de conjunturas. Continuo o relato sem discussão. Paro a conversa caso haja interferências. Não é fantasia. Falo da minha experiência. De cátedra.
— Experiência! Você está vivo, falando!
— Sim! Você vai entender.
— Continuo?
—Sim! Temos interesse. Você aguçou a curiosidade.
Nicolau começou a narração:
Tinha vinte e um anos, família classe média, acabava de ser aprovado no concurso de Oficial da Aeronáutica. Aviador, piloto de avião. Salário alto. Sonho acalentado na adolescência. Preparativos para a viagem. Período de formação na Academia da Força Aérea Brasileira – AFA. A família ficou tão orgulhosa que perdera o nome. Aviador da Aeronáutica. As patentes foram chegando. A promoção era rápida conectada com o aumento do soldo. Pilotar avião: coisa dos deuses. Liberdade! Olhar o mundo de cima. Emoções indescritíveis! Acrobacias no ar nas datas festivas. Aplausos da população. Assumi comandos em diversas Bases Aéreas.
No início houve equilíbrio, porém a patente exterminara o homem. Antes, poucas mulheres, com a nomeação, mulheres cheirosas, corpos atraentes, cabelos e vestidos em alto estilo. Bons restaurantes, Carro do ano, comprei apartamento, mobília moderna, contratei funcionários domésticos.
As caminhadas ao ar livre, o cheiro da natureza, o doce da simplicidade perdera o encanto. O aviador precisava pilotar o avião da vida. Todos esperavam isso. Não importava a obliteração da consciência, o ego inflado. Apagara do currículo a humildade.
Embora os despeitos de alguns colegas, a bajulação de alguns vizinhos, da família, de amigos, dos funcionários disponíveis nos serviços da casa. Respirava o cheiro e sentia sabor de vitória. Convites antes escassos, surgiam em profusão. Viagem contínua no carrossel dos prazeres. Juventude! Sublime momento. Aproveitar! não importa o amanhã.
—Sim! A velhice chega. Viver o presente! Juventude em ação, Nicolau.
— Meus pensamentos nutriam essa ideia.
— Queria viver!
Namoradas! Sem compromisso. Sentia necessidade de aproveitar os momentos com intensidade. Aventuras.
Havia momentos em que o pensamento paralisava, buscava entendimento para a razão da existência. Recordações do passado. Não me agradavam. Geravam inquietação. Não tinham respostas, as que encontrava estavam ali, comigo, entranhadas.
Minha alma fervia. Caldeirão de dúvidas. Horas de insônias, vazio existencial. As luzes noturnas já não apresentavam o mesmo brilho. A simplicidade do amor me convidava para os carinhos das noites na simplicidade do beijo sincero que afaga. Precisava lutar. O meu Eu exigia lugar ao sol. Os repastos sofisticados à mesa não mais ofereciam atração. Não negava a patente, mas essa não era a minha essência. Não precisava fugir. A necessidade era de auto encontro.
Os pensamentos em torvelinho. Aproveitei o sereno da madrugada. Saí a dançar na chuva. A farda encharcada pela água parecia confabular: Você é mais que panos remendados, condecorados. Importantes! Mas não o fim último da existência. Olha para o Espelho da sua vida. Registra o que observa. Dialoga com a sua sombra, sem medo. Todos têm o lado sombra. Não lute contra ela. É desigual. Abraça e convida ao diálogo com a sua essência. Você não sabe quando é o retorno para o andar de cima.
Retornei ao apartamento, banho relaxante, farda impecável. Medalhas no peito. Meu mundo!
O espelho da vida refletia as oportunidades que não podiam ser desprezadas. Mas a cegueira tomara conta do meu ser. Limpava o espelho, via a minha essência. Momentânea! O oficial das forças armadas negava a transmutação.
Momentos truculentos! Dúvidas! Incertezas. Assim, transcorreram os anos.
O cheiro da noite chamava. Precisava viver. Eu era um oficial aviador, comandante, não um homem comum. As diversas condecorações foram oportunas, merecidas. Os cargos espelhavam competência. Respeitado, bajulado, cortejado por mulheres maravilhosas.
Busquei o casamento. Maria Júlia, mulher cheirosa, afável. Companheira. A conheci numa viagem. Momentos deliciosos. Vinda dos filhos. Recolhimento ao lar. Pouco tempo.
Recatada, silenciosa! Não suportou as minhas ausências noturnas. Divórcio.
Nos raros diálogos, confidenciava:
— Que tal outro direcionamento a sua vida? Recomeçar! O nosso amor pode ser uma bússola.
—Impossível! Monotonia!
—Aproveitar a vida. A noite é magia, mistério. É uma dama de vermelho que alimenta devaneios.
Não havia argumentos que demovessem as minhas ideias.
—Sim! Aproveitar, viver. Redargui um dos amigos. Não sabemos quando a foice da morte chega.
O tempo não faz concessão! A Juventude não é eterna. Madureza, velhice. Mesmo com os recursos da Medicina, vi a transformação do meu corpo. Não respondia aos desejos. Enfermidade! Diagnóstico. As químicas das medicações são traiçoeiras. A indesejada chegou, sem convite.
— Vem! O andar de cima aguarda!
Na sala mortuária o caixão de madeira ladeado por velas acolheu o meu corpo.
O alpendre da casa grande ficou vazio. Os investigadores das coisas metafisicas saíram tremendo, correndo em disparada.
Na parede uma borboleta colorida sentenciou:
—Você escolhe a bagagem que deseja levar para o andar de cima. Voando como borboleta. Ou rastejando como lagarta.
*Maria Inês Machado é psicóloga, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental e em Intervenção Psicossocial à família. Possui formação em contação de histórias pela FAFIRE e pelo Espaço Zumbaiar. Gosta de escrever contos que retratam os recortes da vida. Autora do livro infantojuvenil 'A Cidade das Flores'.
