
É Findi - Rua do Imaginário, conto, por Lília Gondim*
12/07/2025 -
Desde muito pequena ela ouvira as pessoas comentarem que era uma criança com muita imaginação. Verdade! Bastava um segundo de liberdade e sua mente começava a viajar.
Assim, incorporara muitos personagens de gibis e revistinhas infantis que tivera contato na infância. Das histórias do imaginário popular então, nem se fala: o curupira, a mula sem cabeça, a comadre fulôzinha, o joão galafoice foram meros fantoches a quem ela dera vida e criara situações e brincadeiras. Ora sozinha, ora com outras as pessoas. Era divertido, emocionante, até!
Adolescente, adorava viajar na pele de estrelas de cinema e das suas cantoras preferidas. Saltava sempre de uma para outra personagem, a seu bel prazer, quando lhe interessava e fazia bem. Até se imaginou freira beneditina, como as do colégio onde estudara. E vestida de branco, véu preto de tecido fino, mãos brancas e delicadas cruzadas sob o escapulário, caminhou pelos claustros proibidos e nunca visitados na vida real.
Mas dessas partidas imaginárias sempre voltava; na brincadeira havia isso de bom: Poder colocar-se em qualquer parte do mundo, viajar no pensamento; sempre voltara quando queria ou achava que devia. Isso era o que a mantinha segura e transformava o retorno, sempre, numa esperança de novas viagens, buscas e achados.
As estantes, em casa e nas casas dos amigos, foram fonte permanente de material para sua mente viajante. E quando, mais tarde, adquiriu o gosto pelo romance histórico, enriquecera suas idas e vindas através dos séculos, viajando pelas diversas dinastias reais europeias e orientais. Adorara viajar pela idade média e ser contraventora perante a inquisição. Aliás, essa era uma certeza que guardava lá no fundo do coração: em vidas passadas fora uma feiticeira condenada às fogueiras acesas nas ocasiões dos escabrosos autos de fé, sempre promovidos, em nome de deus, pela igreja. Ninguém lhe tirava isso da cabeça: fora uma bruxa no passado. Às vezes, pensava que ainda era, um pouco.
Então vieram os filhos e chegaram os netos. Sua mente criativa continuava a trabalhar na invenção de brincadeiras e histórias intermináveis. Inventava personagens que os faziam delirar e gritar pedindo “vai vovó, conta mais”.
Um dia viajou de verdade. Outro mundo, outra cidade. deliciou-se com a poesia dos nomes das ruas: das peras, das gatas, da cozinha de sua alteza, dos frades grilos, das amas do cardeal, do capado, das donzelas..., mas nunca esperara encontrar-se, de repente, diante da rua do imaginário.
O que seria aquilo? Imaginário de quem? Invenções de outras pessoas? Criação de personagens alheios à sua própria imaginação? Pensares desconhecidos surgidos na cabeça de outros povos com diferentes culturas? Era demais ver diante de si, de forma concreta, o que costumeiramente era fantasia, pedaços de sonhos que, alinhavados, criavam uma história...
Buscou uma mesa, na esplanada de um bar próximo, ao mesmo tempo atraída e embaraçada. De lá, podia enxergar o círculo amarelo pintado com letras pretas que indicava o nome daquela rua. Pediu um café e perdeu-se a imaginar se a percorria ou não entraria na rua? Sumia dali sem verificar as possibilidades contidas naquele lugar? a Vontade de entrar era grande, mas continha certo risco: se passeasse no imaginário dos outros, tudo aconteceria à sua revelia. Descontroladamente! Poderia não ser capaz de determinar a volta, o bendito e sempre certo retorno à vida real.
Ponderou as alternativas: entrar seria visitar o real imaginário concretizado naquela rua; não entrar seria inimaginável para alguém como ela! As pessoas sempre sabem que de uma viagem se volta ou não, mas não deixam de viajar por isso! Sempre há o risco, mas sempre se vai! Hesitou um pouco pensando nos netos que talvez nunca mais ouvissem suas histórias...
Pagou o café, levantou-se, inibiu com a mão uma lágrima que estava a ponto de saltar. Cortou um súbito sentimento de medo e entrou na rua do imaginário.
*Lília Gondim, é economista, funcionária pública estadual aposentada, escreve contos, crônicas e poemas.
