
Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito -19 -Reflexões sobre cultura musical
15/07/2025 -
Por Maria Aida Barroso
Que poder a música exerce sobre nós? Longe de uma resposta simples, nossa relação com o que denominamos “música” leva a caminhos de ramificações complexas que podem ser percorridos de diferentes maneiras, seja pelo viés das ciências, pelos estudos de cultura, pela filosofia ou pelos estudos da própria música em suas diferentes especialidades.
Esses caminhos podem nos levar à compreensão do papel exercido por ela em nossa construção como seres humanos, ampliando nosso olhar para além de seu entendimento apenas como expressão artística.
Diante de tantas possibilidades, é preciso a compreensão de que, embora a música seja inerente ao ser humano, é identificada em todas as culturas, as formas como cada uma delas se relaciona com o fenômeno e a ele se referevariam consideravelmente.
Assim, ao falar sobre cultura musical, não pretendo dar conta da universalidade do termo, mas apenas refletir como ela se constrói nos grupos sociais com que nos relacionamos direta ou indiretamente. Em geral, ao nos referirmos à recepção da música, colocamos o foco nas questõesabstratas relacionadas às emoções e interpretações pessoais.
No entanto, componentes essenciais da música como ritmo e som originam-se de vibrações que percorrem o espaço e nos tocam fisicamente. Esse contato não se dá apenas por meio do aparelho auditivo, mas também pela pele, nosso maior órgão sensorial.Essa possibilidade de percepção da música na integralidade do corpo redimensiona nosso entendimento sobre a maneira com que sons e ritmos, em suas diferentes combinações, podem nos afetar física e psicologicamente.
A música
O neurologista Oliver Sacks (2007) afirma que a música exerce um poder sobre nós, mesmo que não nos consideremos particularmente musicais.
Para ele, essa inclinação para a música – a que ele chama de “musicofilia” – “revela-se na primeira infância, é manifesta e essencial em todas as culturas e provavelmente remonta aos primórdios da nossa espécie.”
Segundo Sacks, ela está tão arraigada em nossa natureza que pode ser considerada inata, podendo ser desenvolvida por fatores como a cultura em que vivemos, circunstâncias da vida e nossas características como indivíduos reveladas por nossos talentos ou deficiências específicas.
Autores como Daniel Levitin (2010) e Robert Jourdain (1998) tornaram-se referências para o estudo da atuação da música em nosso cérebro, discutindo as formas como ela é processada e como afeta nossas emoções. Ela tem o poder de nos afetar biologicamente, o que faz com que seja utilizada inclusive como meio terapêutico.
É nesse sentido que a música, enquanto fenômeno resultante de vibrações que geram ondas sonoras que nos tocam fisicamente, nos afeta para além das abstrações geradas por sua interpretação no âmbito da estética.
Para Sekeff (2007) a música pode induzir calma e relaxamento, propiciando sentimentos de bem-estar e colaborando para nosso equilíbrio afetivo e emocional. Segundo ela,
O poder da música remete assim à biologia e à psicologia do som, às vibrações e às relações sonoras repercutindo no indivíduo todo, induzindo ecos e ressonâncias.
Seu estímulo abala o sistema sensorial, motor, afetivo, mental; provoca mudanças no metabolismo, acelera e altera a regularidade da respiração, determina efeito acentuado mas variável sobre o volume sanguíneo, o pulso e a pressão arterial, abaixa o limiar em relação a estímulos sensoriais de diversos tipos, participa das bases fisiológicas da gênese das emoções, repercute sobre as glândulas de secreção interna, atua sobre o córtex cerebral, o sistema neurovegetativo, o ritmo cardíaco, a amplitude respiratória, o sistema neuroendócrino, e no caso de sons mais agudos, evoca um efeito mais positivo nos ouvintes; motiva, emociona, move a química cerebral e influencia a conduta.
Relação tão próxima
Sob esse ponto de vista, pode-se compreender o porquê de nossa relação tão próxima com a música. Mesmo que todos esses efeitos não sejam percebidos conscientemente, é evidente que a música, seja ela utilizada em rituais religiosos,como estímulo ao trabalho, como forma de entretenimento, como terapia ou como fruição e expressão artística, nos afeta emocionalmente e atua como elemento de importância para nosso comportamento social.
Para Timothy Rice (2014), a música é um recurso para o reconhecimento de grupos sociais, funcionando como um identificador simbólico de um grupo tanto para seus próprios membros quanto para estranhos. Pela música podemos reconhecer grupos religiosos, etnias, lugares, categorias sociais. Sobre a música como identificador simbólico, Rice exemplifica:
“Nas tradições da música popular, como punk ou death metal, por exemplo, músicos e fãs mantêm uma adesão estrita a uma estética particular – tanto indumentária quanto musical –que serve para identificá-los uns aos outros e delinear quem é e quem não é membro da subcultura.”
Em nossa sociedade, identificamos grupos exatamente como os citados por Rice. Temos os roqueiros, os sambistas, os funkeiros, os rappers, os sertanejos, entre tantos outros.
Em cada um desses grupos, a música exerce um papel fundamental como identificador, tendo forte relação com questões da atualidade.Temos, por outro lado, aquela música que pertence a outra época ou a outra cultura e que é consumida como iguaria, estando relacionada a grupos sociais mais heterogêneos. Podemos identificar ainda grupos sociais que se relacionam com as expressões musicais de tradição oral.
É exatamente no ponto de contato entre esses diferentes grupos, no campo da fruição artística, que trago minha reflexão, inspirada em Antônio Cândido (2011) e seu “Direito à Literatura”, onde ele relaciona literatura e direitos humanos. Embora cada um dos diferentes grupos sociais viva em seu meio a música com a qual se afiniza, será que é dado a seus membros, individualmente, o pleno direito de “participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes” 4 , conforme preconiza o artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos?
No momento atual, há forte valorização da música como forma de entretenimento. Nossa vida cotidiana é inimaginável sem a presença de uma trilha sonora contínua. No carro, na TV, nos centros comerciais, nos consultórios médicos, nas academias de ginástica, nos restaurantes.
A música é consumida permanentemente e, com a facilidade da Internet, está disponível a um toque na tela do celular. Mas quanto desse manancial inesgotável de música paramos de fato para ouvir e apreciar? Quanta música conhecemos verdadeiramente, a ponto de estabelecer uma relação mais aprofundada para além da sensação de conforto, alegria ou estímulo gerada por essa trilha sonora cotidiana?
Artista
Como artista e, principalmente, educadora, me pergunto constantemente de que forma posso contribuir para que esse direto à fruição das artes seja plenamente alcançado. Me identifico em um lugar de privilégio, pela formação musical e facilidade de acesso a músicas para além das que me são dadas socialmente nos locais onde circulo.
Conheço os meios por onde acessar um cardápio musical eclético onde posso conhecer e apreciar todo tipo de música, criando para mim mesma uma ampla gama de experiências estético-musicais. Quanto dessas maravilhas gostaria de apresentar às pessoas, conversar sobre suas histórias, discutir sobre os timbres, comparar interpretações!
No entanto, me questiono até que ponto as músicas que me tocam e fazem parte de minhas experiências individuais podem interessar a outras pessoas. Será que um jovem criado em determinado grupo social, com sua identidade marcada por certo tipo de música, indumentária, vocabulário, se interessaria em ouvir outras músicas para além daquelas que o cercam? E a pergunta que me faço, estendo às pessoas que se colocam em lugares semelhantes:qual nosso papel como artistas e educadores musicais na mediação entre esses diferentes universos?
Antônio Cândido (2011), em suas reflexões, mostra um caminho. Mais que uma questão de interesse, é uma questão de direito. Se é dado a todos acesso à fruição de diferentes músicas, serão seus interesses pessoais por um ou outro gênero ou estilo, suas identificações e experiências estéticas que formarão para cada um sua própria cultura musical.
No entanto, é necessário estender esse direto inclusive àquelas coisas que aparentemente não seriam tão indispensáveis a certas pessoas,como assistir a uma peça de teatro, ler um bom livro ou ouvir uma música em uma sala de concertos.
Porque pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo. Esta me parece a essência do problema, inclusive no plano estritamente individual, pois é necessário um grande esforço de educação e autoeducação a fim de reconhecermos sinceramente este postulado.
Para Cândido, a fruição se dá segundo as classes sociais, ficando as camadas mais populares restritas a suas próprias expressões. Trazendo as reflexões dele para o campo da música, a essas camadas ficariam reservadas as músicas de massa e entretenimento, as relacionadas às festas populares e as manifestações da tradição oral.
Embora ele reconheça na literatura categorias semelhantes a essas como importantes e nobres, considera grave que sejam consideradas suficientes para a grande maioria. De fato, no campo da música, não só a chamada música de concerto, mas alguns gêneros da música popular não estão igualmente acessíveis a todas as camadas da população.
Contribui muito para isso a maneira como os veículos de mídia apresentam essas diferentes músicas, principalmente para os jovens em formação, justo quando estão mais suscetíveis aos fatores externos na construção de suas identidades. Nos filmes, séries ou novelas da TV, as personagens mais populares são identificadas com os gêneros musicais da moda.
Outras músicas que não se enquadram nesse padrão são muitas vezes ridicularizadas e adjetivadas negativamente, não importando aqui se falamos de música de concerto de tradição europeia, música brasileira da chamada MPB – cujo texto necessita uma escuta mais intelectualizada e não apenas corporal–, ou ainda gêneros musicais relacionados a outras épocas ou lugares.
A repetição massiva de exemplos como esses vai promovendo uma constante diminuição do interesse da população por outras músicas, muitas vezes tratadas com desprezo ou preconceito. Infelizmente, cada vez menos é dado espaço nos veículos de mídia para músicas fora do padrão comercial. Aqui não se faz uma discussão de gosto, do que é melhor, do que é mais próprio, do que é expressão cultural a que se poderia chamar “genuína”, mas de quanta música cada um acessa, de quanta música cada um conhece e de quais música os meios de comunicação ofertam às pessoas.
Fruição da arte
Sabemos como a fruição da arte é importante para a humanização que, segundo Antônio Cândido, seria o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor.
Nesse sentido, considero como um dos importantes papeis da educação o de colocar em diálogo o direito das pessoas de expressarem sua própria cultura, de acordo com suas origens, identificações e individualidades, com o direito de conhecer e usufruir dos bens culturais da comunidade. A cultura musical de cada um vai resultar dessa mediação.
Entendo que não nos cabe selecionar e indicar o que ouvir, mas chamar atenção para o fato de que para muito além das músicas que fazem parte do cotidiano de cada pessoa há um mundo de possibilidades.
Não importa qual delas serão ouvidas, mas sim que estejam acessíveis para que cada um de nós possa exercer o direito de escutá-las.
Voltamos aqui à questão apresentada logo no início do texto, de que a música se compõe de elementos que nos afetam fisicamente. A aquisição de uma cultura musical que permita diferentes experiências estéticas que transponham o limiar das dualidades bonito-feio, alegre-triste pode contribuir para o processo de humanização sempre tão necessário.
Há músicas que permitem sentir o ritmo e dançar, mas há também aquelas que trazem melancolie introspecção. Há as que nos provocam os sentidos e as que nos fazem pensar. Há aquelas que gostamos pelas belas palavras do texto e aquelas que nos provocam pela crueza do discurso. Há ainda as que não têm texto, as com sons “exóticos”, as estranhas, as grotescas.
Todas contribuem para o processo mencionado por Cândido. Todas têm potencial para serem imprescindíveis a alguém.
O surgimento da Internet abriu portas como nunca para facilitar o acesso a todo esse manancial musical. Num primeiro momento poderíamos dizer, então, que o direito à fruição musical está garantido, pelo menos para quem está incluído digitalmente.
No entanto, o acesso à rede não garante que o repertório se apresente espontaneamente. É preciso – e aqui mais uma vez ressalto o papel da educação – estimular a curiosidade, essa outra característica tão própria do ser humano. Parafraseando Eduardo Galeano (2002) em seu pequeno conto “Afunção da arte/1” 7 , desejo que a todos nós, em algum momento seja dado o direito de pedir ou de ouvir: “me ajuda a escutar”!
Referências
CÂNDIDO, Antônio. O direito à Literatura. In: Vários Escritos. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2011.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. 9ª ed. Porto
Alegre: L&PM, 2002.
JOURDAIN, Robert. Música, cérebro e êxtase: como a música captura nossa imaginação.
Tradução Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.
LEVITIN, Daniel. A música no seu cérebro: a ciência de uma obsessão humana. Tradução
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU.Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217
A III) em 10 de dezembro 1948.Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/91601-declaracao-
universal-dos-direitos-humanos.Acesso em: 01 dez 2020.
RICE, Timothy. Ethnomusicology: A Very Short Introduction. New York: Oxford
UniversityPress, 2014.
SACKS, Oliver. Alucinações musicais: relatos sobre a música e o cérebro. Tradução Laura
Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SEKEFF, Maria de Lourdes. Da música, seus usos e recursos. 2ª ed. São Paulo: Editora
UNESP, 2007.
7 GALEANO, data, p. 16.
“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o paraque descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado dasdunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas deareia, depois de muito caminhar, o mar estava na
frente de seus olhos. E foi tantaa imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediuao pai: — Me ajuda a olhar!”
Nota biográfica
Maria Aida Barroso é bacharela em Regência, mestra em Cravo (2006) e doutoranda em
Musicologia pela Escola de Música da UFRJ. É professora do Departamento de Música da
UFPE desde 2010, onde coordenou projetos como a Semana da Música, Orquestra
Experimental de Frevo e LEMEI – Laboratório de Educação Musical Especial e Inclusiva.
Dirigiu o Quarteto Colonial que realizou concertos no país em projetos apoiados pela
FUNARTE e SESC, gravando, em 2008, o CD O Sacro e o Profano na Corte de D. João VI.
Integra o Duo Frevando que gravou, em 2019, o CD Frevos para Trombone e Piano. Em
2020 lançou, em coautoria com Marcelo Fagerlande e Mayra Pereira, o livro O Cravo no Rio
de Janeiro do Século XX.
