
Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito -21 - Pelo Amor que me Resta: Imagens para uma conversa sobre Cultura e Cinema-Experiência
17/07/2025 -
Por Maria Tereza Didier
Existem muitas maneiras de nos aproximarmos do que nomeamos cinema: como entretenimento, como arte, como possível experimentação filosófica, ou mesmo como uma abertura para outros registros que não se restringem à forma canônica das grandes produções.
Cinema é também o que fica em nós, a partir de nossas lembranças e em nossas palavras, mesmo que estas sejam muito diferentes das imagens mostradas. Assim, o filme pode ser um mundo compartilhado, bem além da materialidade de suas imagens.
Isso me faz recordar Rancière, quando comenta sua escolha de ser amador. O amadorismo é também uma posição teórica e política que renuncia à autoridade dos especialistas, preocupados em analisar o modo como as fronteiras entre suas áreas são estabelecidas no cruzamento das experiências e dos saberes.
Na política do amador, o cinema pertence a todos e permite que cada um faça seu itinerário próprio (RANCIÈRE, 2012). Escolhi o caminho dos saberes sensíveis, sob a forma do que gosto de chamar de Cinema-Experiência – aquele que, para além da técnica e da narrativa, nos toma pela afecção ou pelo modo particular de nos fazer pensar e sentir.
Partindo da exaustão que me assombra e, também, de certa alegria pelo amor que me resta, retomo alguns atravessamentos provocados por filmes. Começo com um trecho do filme Onde fica a casa de meu amigo?, de Kiarostami (1987), que me acordou.
A cena do diálogo
Era a cena do diálogo entre o velho que fazia portas de madeira e o menino que procurava a casa de um amigo para entregar um caderno. "Dizem que uma porta de ferro dura a vida inteira. Não sei quanto tempo é isso", murmura o velho. "
As portas de madeira não são mais vendidas, porque as pessoas só querem as de ferro", continua ele. Essa citação me chegou por meio de um amigo, que havia sonhado com a cena. Em mensagem de WhatsApp, perguntou se eu estava bem. Achei bonito que, no medo de me perder e diante da finitude que nos aflige, ele me tivesse chamado com um filme e me tivesse feito sentir uma sensação de inquietude, como se o cinema houvesse sempre habitado as ruínas do mundo que avança.
A finitude e o tempo parecem roçar o cinema, seja seguindo uma narrativa clássica que prioriza a montagem contínua ou operando na desmontagem da linearidade, tornando o tempo visível. Dizem que as imagens – e também as palavras – tomam parte daquilo que nós, mortais, mobilizamos para lidar com nossa finitude.
Não se trata de uma simples representação, de uma imagem que copia e falseia a realidade. A imagem faz aparecer, numa mesma dimensão, as várias superfícies de inscrição dos sentidos e sentimentos, das verdades e existências.
O filme
O filme faz surgir um mundo e as imagens são “aquilo de que o cinema se serve para pensar. E o pensamento é sempre uma criação…
A imagem é cinza. É a sobra de um mundo que queimou – quase – por inteiro. Entre excessos e ausências, restam vestígios que exigem a tessitura dessas cinzas. Como essas imagens nos chegaram? Como elas fabricam quem somos ou quem nos tornamos? Não nos interessamos em como elas testemunham uma essência, mas em como elas formulam uma existência precária e provisória que chamamos eu.
A partir das lacunas e do demasiado (ou da abundância) desses vestígios, podemos tocar o real e criar mundos possíveis. Juntar as imagens – estes trapos de tempo, aparentemente desconexos e descontínuos – é o desafio e o risco daquele que opera uma montagem. Não se trata de fazer com que as imagens ganhem um sentido, mas sim de fazê-las operar em conjunto na difusão de sentimentos e políticas que possam produzir novas metáforas que anunciam diferenças.
Em um segundo momento, certo encontro com a alteridade aconteceu em um congresso acadêmico, cujo foco era a cena educativa e o cinema. Estavam lá professores, estudantes de pós-graduação, cineastas. Professores cansados, exauridos.
Sem elã, corpos alquebrados, abandonados, talvez ávidos por algo que fizesse sentido. Palavras sem cor, sem sal. E lá estava ela, uma mulher guarani, Patrícia Ferreira, sentada na mesa com os professores. Sua presença silenciosa incomodava.
De alguma maneira aquilo me fez pensar. O passado ressurge como prisioneiro daquilo que nele cristalizamos ou como interrogação e elaboração aberta vinda do presente? Parecia que dessa vez nós não iríamos salvar o outro com um projeto de civilização, ou com a nostalgia de uma autenticidade perdida. Era o outro que talvez pudesse nos salvar.
Era isso? Nós professores, citando alguns filósofos europeus para sermos lidos e ouvidos e ela tentando vencer pelo silêncio. Disse apenas que apresentaria um trecho de filme inacabado e que deixaria as palavras surgirem depois dele.
No filme, aparecia outra mulher, velha, também guarani, lembrando-se da dor do extermínio. Mexendo um caldeirão, pronunciava algumas palavras, como se estivesse rezando. Um corpo-palavra, corpo-cheiro, corpo que nos tirava do lugar, que também era refugiado em sua própria terra, que também vivia sob forma de violência.
Aquilo rasgou a minha carne e me fez sentir a dimensão do meu deserto. O corpo-outro demonizado, massacrado, romantizado, surgiu pelo fogo; o corpo devir, o devir feiticeira. Aquela mulher guarani dizia: “eu não falo para branco ouvir. Eu falo para o sagrado. Eu medito diante do fogo sempre, independente de estar na casa de oração ou não. Eu faço fogo para manter a força do meu sorriso imperfeito”.
Mantra
Mexendo o caldeirão, repetia os gestos e as palavras numa espécie de mantra; deixando penetrar em mim a verdade de que para ela as palavras, as ações e os sorrisos são imperfeitos... E ela continuava a fazer fogo para manter a força de seu sorriso imperfeito. Não havia diálogo, nem história.
O trecho de dez minutos de filme mostrava a repetição dessas palavras como se fosse um canto. Um canto que faz rumorejar a língua, de maneira rara, impregnada de gozo. E como disse Barthes (2004, p. 97), para uma “cena sonora é preciso uma erótica (no sentido mais amplo do termo), o impulso, a descoberta, ou o simples acompanhamento de emoção”.
Naquela cena, no canto da guarani havia um sopro, uma tensão, e aquilo me fez lembrar o passado que não é requisitado para compreender o presente. O passado que vem como escrita do corpo, como gesto de violência, como gesto de amor erótico, um Eros que também é melancolia. A mulher que também resiste/incide pelo canto como um lugar onde amor e poesia podem roçar o que nomeamos de catástrofe.
Catástrofe como interrupção, como descontinuidade. De repente, a guarani anunciou que as palavras acabavam ali. Não tinha mais nada a dizer. Fez um buraco no tempo. Mexendo um caldeirão trazia-nos uma sensação, afetava-nos com o fogo e seus gestos. Afetava-nos com seu corpo gozoso que não dualizava, nem rivalizava, com o que nomeamos de espírito. Um público cansado de reuniões, de exigências de produtividade, de linguagem usada para comunicar, pôs-se a chorar. A palavra como gesto e ato.
Talvez ali não mais estivessem as propostas românticas de sensibilizar a razão, mas a presença de Antonin Artaud (2006, p. 46-47), quando sugere servir-se da linguagem de modo a restituir sua possibilidade de abalar fisicamente, “tomar as entonações de uma maneira concreta absoluta e devolver-lhes o poder que teriam de dilacerar e de manifestar realmente alguma coisa”, “voltar-se contra a linguagem e suas fontes rasteiramente utilitárias, [...] suas origens de animal acuado”, enfim, “considerar a linguagem sob a forma de Encantamento”.
Pensar as imagens, através e por elas, requer o deslocamento da própria noção de pensamento. “O que o cinema pode é o que pode o corpo, pois é pelo corpo que o cinema se une... com o pensamento”.
Por último, em meio à pandemia, onde a morte se tornou protagonista, também sob forma de encantação, um filme convidava para uma coreografia estranha. Simples e sem grande orçamento, me fez dançar e pensar não no que é o cinema, mas no que ele faz conosco. Com uma estética ensaística e poética, o filme homenageia um “eu-criança que pedia licença para entrar na roda de coco, o eu-criança que ainda me habita.
Habita esse corpo estranho, que não é o mesmo de outrora” (SILVA, 2020). Assim como o corpo de Rairan condensava diferentes tempos – o de sua infância e o de sua adultidade, além do futuro que ele esperava e produzia –, o corpo de seu filme adensava diferentes imagens através de uma sobreposição. Contrastando a mata e o morro, a pipa no céu e o pé no chão, a sombra e a luz, as pessoas de diferentes lugares e o arsenal de formas que se instaura nos modos de viver das pessoas, o filme nos mostra o “movimento de pequenas constelações de pessoas, espalhadas... gente que faz e desfaz mundos” .
O filme-ensaio de Rairan sugere um modo estranho de canibalizar as regras e transformar o plano central dos saberes, tomando o corpo em suas possibilidades de afetos e conexões, chamando para a postura epistêmica onde para conhecer algo é preciso personificar: tomar o ponto de vista daquele que deve ser conhecido.
Não está, nesse sentido, afinado com um relativismo cultural, pois “uma perspectiva não é uma representação porque as representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vista está no corpo” .
Rairan invoca uma resistência, a criação numa linguagem ampliada de corpos falantes encantados. Como Stengers (2017) nos faz pensar, talvez aí possamos lidar com práticas possíveis para encarar o cenário devorador que se apresenta. Práticas possíveis de encantamento, não como remédio ou redenção, mas como uma acontecência que, sem negar o sofrimento, traz uma certa alegria.
Pequeno compilado
Este pequeno compilado de filmes talvez possa mostrar outras formas de ver o que nomeamos de real. Diferentemente das produções da grande indústria cinematográfica, parece permitir nos deslocarmos dentro de uma precariedade cotidiana.
Por isso, possibilita uma aproximação com as miudezas da vida. Um lugar outro, diante desse mundo de caos e perdas. Desmanchando o óbvio, nos faz ver o mundo por um espaço mais vasto, atraindo-nos com os pés no chão para o céu aberto, com toda a força e risco que isso provoca. Talvez possamos pensar em presença e Eros, quando somos tomados por uma sensação que não podemos explicar.
A experiência de epifania inaudita com os trechos de filmes mencionados trouxe-me o que a vida nos apresenta de maneira inesperada e me faz perguntar se é possível habitar as imagens de forma imprudentemente amorosa. Não no sentido romântico, nem como salvação, mas por meio de sensações, do risco implicado, dos sorrisos imperfeitos... Este tipo de aproximação com a imagem pode acender um olhar que desconcerta, renovando nossa linguagem e nosso pensamento. Por isso me deixo atravessar pelo cinema, como motivo de existir e pelo amor que me resta.
Maria Tereza Didier é Professora da UFPE
