
Como Não Aprender Nada com a História da América Latina - Crônica, por Emanuel Silva*
22/07/2025 -
A América Latina, esse terreno fértil de promessas e tropeços, parece ter um dom especial: repetir erros com entusiasmo, como se fossem descobertas inéditas. Aqui, bravatas se confundem com heroísmo, crises se resolvem com discurso inflamado, e todo vizinho vira ameaça — ou desculpa.
Não falta história. Faltam leitores. E sobra orgulho.
Enquanto o mundo segue sua marcha tecnológica, diplomática e bélica com manuais atualizados, por aqui gostamos do improviso, da retórica sem lastro e da convicção sem estudo. São séculos de independência, mas com práticas de colônia emocional — sempre culpando o outro, o passado, ou algum inimigo imaginário.
Nesta crônica em cinco atos, revisamos — com o sarcasmo que o roteiro exige — os grandes fracassos estratégicos da região. Não por prazer na desgraça, mas na esperança (vã) de que ao menos um ou outro curioso se pergunte:
"Será que vale repetir tudo de novo, só porque mudamos o uniforme?"
Parte I – 1839 a 1865: O Uruguai no Meio da Briga, Sempre Achando que é Protagonista
O Uruguai, desde o berço, resolveu ser cenário de novela com roteiro escrito por terceiros. Envolvido em guerras civis desde 1839, protagonizou a chamada Guerra Grande (1839–1851) — uma espécie de reality show com liberais e conservadores se degladiando, enquanto Brasil e Argentina faziam apostas e mandavam recadinhos armados.
Mas o ápice do teatro de marionetes ocorreu entre 1864 e 1865, quando o Brasil resolveu intervir diretamente no conflito interno uruguaio, invadindo o país sob o pretexto de proteger brasileiros e garantir estabilidade (leia-se: interesses comerciais). A Argentina, sempre querendo um lugar no palco, também entrou na festa.
E assim, num piscar de olhos, o Uruguai virou palco de intervenção, ponte para a entrada das tropas brasileiras no Paraguai, e cereja do bolo para a formação da Tríplice Aliança. Queria ser a Suíça da América do Sul, mas terminou como tábua de carne da diplomacia regional — empurrado para a guerra, pagando o preço da vizinhança ruim e da eterna mania de grandeza alheia.
Parte II – 1864 a 1870: O Paraguai, o Exército de Um Só e a Tríplice Vergonha
Tudo começou com um certo Francisco Solano López, presidente do Paraguai desde 1862, um sujeito que se achava a reencarnação de Napoleão — só que sem Waterloo… e sem juízo. Em dezembro de 1864, após o Brasil intervir militarmente no Uruguai, López viu a chance de mostrar serviço: mandou prender um navio brasileiro, rompeu relações diplomáticas e declarou guerra ao Império. Detalhe: sem perguntar aos vizinhos se eles estavam dispostos a bancar a loucura.
Pouco tempo depois, em 1º de maio de 1865, Brasil, Argentina e Uruguai assinaram o Tratado da Tríplice Aliança, prometendo varrer o Paraguai do mapa até que Solano pedisse desculpas ajoelhado ou sumisse de vez. Estava oficialmente formada a Guerra do Paraguai (1864–1870), o maior conflito armado da América do Sul.
O resultado? O Paraguai perdeu quase 90% da população masculina adulta, virou ruína e lição triste nos livros de história. E Solano López? Morreu em 1º de março de 1870, com espada na mão e teimosia no coração, gritando: “¡Muero con mi patria!”. Um verdadeiro ícone da tragédia anunciada — e patrono vitalício do clube dos tapados estratégicos.
Parte III – 1982: As Malvinas e o Carnaval Fora de Época dos Generais Argentinos
Avançamos para o século XX, quando a Argentina, em plena crise econômica e descrédito total do regime militar, comandada por Leopoldo Galtieri, resolveu distrair o povo com um espetáculo bélico. Em 2 de abril de 1982, tropas argentinas invadem as Ilhas Malvinas (Falklands), ocupadas pelos britânicos desde 1833.
Parecia coisa de opereta: generais brindando com whisky, multidões em Buenos Aires gritando "¡Las Malvinas son argentinas!", e a imprensa anunciando a vitória antes da batalha. Mas do outro lado do oceano estava Margaret Thatcher, a “Dama de Ferro”, que não era de recuar nem em dia de neblina.
Em menos de 74 dias, a Inglaterra organizou uma força-tarefa naval, cruzou o Atlântico, retomou as ilhas e humilhou os aspirantes a conquistadores do sul. No dia 14 de junho de 1982, a Argentina se rendeu.
O saldo: 649 soldados argentinos mortos, centenas de feridos, milhares de traumas — e a certeza de que jamais se deve brincar com quem tem porta-aviões e apoio da OTAN.
Parte IV – 2020 em diante: A Burrice é Cíclica e os Tapados Evoluem em Círculo
Mas como a história não serve pra nada quando se é teimoso e prepotente, vemos no século XXI uma nova leva de valentes sem pudor querendo confronto com potências — seja no campo econômico, militar, diplomático ou digital.
Pergunta: a lição das Malvinas foi esquecida? Nem precisamos falar do Paraguai ou do Uruguai — o tempo até poderia absolvê-los. Mas a resposta é clara e atual: nenhuma lição foi aprendida.
Há uma turba de inconsequentes que acha que bravatas substituem tecnologia, que discurso inflamado derruba satélite, e que patriotismo mal-informado vira escudo contra embargos.
Tem até os que batem no peito, gritam “soberania” e desafiam tratados, blocos econômicos e até redes sociais, achando que o mundo gira ao redor de sua caneta Montblanc — ironicamente comprada justamente de quem agora se combate.
Ah, a coerência dos valentes de auditório! Ô coitados! São guerreiros de boutique, estrategistas da Torre Eiffel, sonhando com glória enquanto tropeçam nos próprios egos.
Parte V – Entre Vilões, Mocinhos e Mapas Embaralhados
E o Brasil? Ah, o Brasil! Também já teve seus surtos de grandeza, bancando o xerife civilizado do bairro, sempre pronto a dar lição de moral com a espada numa mão e um decreto de intervenção na outra. Invadiu vizinhos, plantou presidentes, derrubou outros, financiou uns tantos e ainda posou de pacificador — como se diplomacia feita à baioneta, na ponta da navalha e com fita honorífica no peito fosse gesto fraterno.
E hoje, claro, posa de bom moço, defensor da autodeterminação dos povos e do respeito mútuo. Tá certo. Mas a história, essa senhora teimosa, deve ser lida e relida, mesmo quando o enredo incomoda.
O Brasil foi à guerra no Uruguai, no Paraguai, e em muitas atas de bastidores, sempre com aquele discurso de neutralidade e benevolência — como se fosse o mocinho do roteiro continental. Mas basta a câmera mudar de ângulo e pronto: o herói vira vilão, o protetor vira interventor, e a história começa a feder sob o verniz da narrativa oficial.
Já a Argentina, por sua vez, resolveu um dia enfrentar a Inglaterra e a OTAN, achando que a briga seria de igual pra igual. Deu no que deu: 74 dias de orgulho, décadas de trauma e um manual de como não desafiar potências globais sem antes verificar o estoque de porta-aviões.
Mas é isso: na América Latina, quem conta a história escolhe o chapéu — de herói ou de canalha, conforme a ocasião. E tudo se esquece em nome da “soberania”, da “honra nacional” ou, mais frequentemente, da conveniência da hora.
Moral da história
A estupidez, quando se alia à prepotência, vira combustível para tragédia.
E tudo poderia ser evitado com uma leitura honesta da história e a humildade de se enxergar no espelho com menos maquiagem patriótica.
Mas em tempos em que se erra até o próprio mapa do país — trocando estados de lugar ao vivo em rede nacional, sem corar de vergonha — já não espanta que se repitam os mesmos erros, só com hashtags novas.
Só que os corajosos que desejam enfrentar leões com estilingue é bom relembrar: vão terminar virando exemplo — nos manuais de como não fazer.
E a história, coitada, assiste tudo de camarote, abanando um leque e murmurando:
“De novo, não…”
*Emanuel Silva, é Professor e Cronista
**Os artigos assinados expressam a opinia?o dos seus autores e na?o refletem necessariamente a linha editorial de O Poder.
