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Ensaio - Liberdade, Imprensa e o Câncer da repressão Institucional

23/07/2025 -

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Entre a mutação institucional, a sobrevivência da imprensa e o colapso de um pacto civilizacional

Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

1. Preâmbulo — O dia em que o susto atravessou as redações

Durante anos, o Brasil assistiu, entre aplausos e silêncios cúmplices, à escalada do poder concentrado nas mãos de Alexandre de Moraes. A cada censura, bloqueio ou inquérito sigiloso, dizia-se que era preciso “defender a democracia”. E assim, muitos aceitaram que, para proteger a liberdade, fosse necessário calar o outro.

A imprensa, majoritariamente alinhada ao progressismo, endossou esse raciocínio. Viu com bons olhos a supressão de vozes que destoavam da narrativa dominante, sobretudo quando o alvo era a direita, o conservadorismo ou o bolsonarismo. Havia um conforto tático em ver a guilhotina operar do lado oposto da trincheira.

Mas ontem, algo essencial se quebrou.

A decisão que proibiu Jair Bolsonaro de conceder entrevistas com possibilidade de retransmissão nas redes não feriu apenas o indivíduo — feriu o princípio mesmo da imprensa livre. Não era mais o cidadão anônimo que seria silenciado, mas o jornalista que ousasse transmiti-lo. O alvo, enfim, deixava de ser o “inimigo político” e passava a ser o próprio ofício de informar.

Pela primeira vez desde o início da era da censura judicial, a imprensa não pôde mais fingir que se tratava de um problema “dos outros”. O veto atingiu a liberdade de ouvir, de reproduzir, de noticiar. Foi uma bofetada no espelho — e o espelho devolveu o rosto do medo.

Por trás desse gesto não está apenas um homem. Moraes é a ponta do aríete que rompe os pilares da república. Mas também é o bode expiatório cuidadosamente inflado por seus pares. Os sete ministros que o sustentam permitem que ele avance, desde que estejam resguardados pela névoa do “esprit de corps” — sempre prontos a abandoná-lo, no momento certo, como se fossem apenas espectadores de seus excessos.

A tragédia é que Moraes parece ter feito um all in. Não se sabe se por vaidade, ambição ou convicção, mas jogou todas as fichas na tentativa de ocupar o espaço simbólico que já foi de Sérgio Moro — o herói de uma nação órfã de justiça.

Mas ao contrário de Moro, que despertou apoio popular transversal e fez até lulistas se calarem de vergonha, Moraes jamais unificou o país em torno de si. Agrada apenas aos que toleram a autocracia, aos que flertam com a ditadura, aos que confundem autoridade com arbítrio.

E mesmo Moro, com todo o seu capital simbólico, acabou reduzido a um senador isolado. Amordaçado por dentro, pactuou com o silêncio — talvez para sobreviver ao próprio sistema que o derrubou.

E então, ao perceberem que a censura agora feria não apenas a liberdade do outro, mas o próprio corpo da imprensa, o susto atravessou as redações. Não foi por princípio. Foi por instinto.





2. A tríplice convergência: quando a liberdade une os opostos

Há momentos em que a história suspende suas polarizações. Quando o risco não é mais de perder um argumento, mas de perder o chão. Esse é um deles.

O episódio protagonizado por Alexandre de Moraes revelou um alinhamento improvável — e, justamente por isso, revelador. Pela primeira vez, jornalistas progressistas, empresários da mídia e pensadores liberais ou conservadores se veem do mesmo lado da trincheira. Não por afinidade ideológica, mas por instinto de sobrevivência.

A liberdade, que há tempos vinha sendo negligenciada como luxo burguês ou instrumento do adversário, reaparece agora como última linha de defesa de todos — inclusive daqueles que, até ontem, celebravam sua limitação em nome de um bem maior.

A pergunta, então, emerge com força:

O que pode unir figuras tão divergentes, senão a iminência de um colapso que a todos ameaça?

A resposta é simples e antiga: a liberdade ameaçada em sua raiz mais profunda. Como ensinava Confúcio, “quando os nomes deixam de corresponder às coisas, a ordem se rompe”. E hoje, liberdade virou nome oco na boca de quem a persegue.

Mais do que Bolsonaro, mais do que eleições, plataformas ou algoritmos, o que está em jogo é a própria ideia de república democrática — aquela que se sustenta no tripé clássico: liberdade de expressão, pluralismo político e separação dos poderes.

Tocqueville advertia que democracias morrem não quando o povo perde o voto, mas quando perde o hábito de pensar livremente e o direito de ouvir o outro. E é precisamente esse hábito que está sendo extirpado, com bisturi jurídico e anestesia narrativa.

Essa tríplice convergência — entre a esquerda realista, a direita vigilante e o empresariado ameaçado — talvez seja a última chance de reativar os anticorpos da liberdade antes que o organismo institucional entre em falência.

Não há aqui nobreza pura. Mas há lucidez estratégica. E, como diria Edgar Morin, “num sistema complexo, a sobrevivência depende da cooperação entre elementos que antes se excluíam”.

Se a imprensa está recuando não por virtude, mas por cálculo, ainda assim o recuo é necessário. Pois onde não há liberdade de imprensa, nem a crítica nem a autocrítica são possíveis — e, sem elas, nem o poder, nem a verdade, nem a dignidade sobrevivem.


3. A célula mutante: quando a Corte se torna o tumor

Lúcia Helena Galvão ensina que o câncer nasce quando uma célula perde o senso de totalidade. Em vez de servir ao corpo, ela se torna um fim em si mesma — crescendo sem limite, sem função, sem consciência. Ao romper com o conjunto, declara guerra à própria vida que a sustenta.

Alexandre de Moraes encarna essa metáfora trágica. Foi concebido como célula de defesa — um ministro constitucional, limitado por funções específicas e cercado por freios simbólicos. Mas sob os estímulos tóxicos da política, sofreu mutações sucessivas. E passou a agir como organismo autônomo, multiplicando-se em todas as funções do poder.

Investiga, julga, pune, legisla e censura. Agora, silencia até o eco da palavra, perseguindo o espelho que a reproduz. O que deveria ser limite se tornou vontade. O que deveria conter, invade. O que deveria ponderar, impõe.

Mas Moraes não é o único. Ele é a ponta visível do tumor. Atrás dele, sete ministros lhe oferecem o manto do colegiado e o escudo do “espírito de corpo”. Não se trata mais de um erro individual — mas de um órgão inteiro do Estado que sofreu degeneração funcional.

Resta saber: que órgão é o Supremo Tribunal Federal dentro do corpo republicano?

Se for a tireoide, talvez vivamos uma disfunção crônica, um hiperativismo judicial que cause agitação e desequilíbrio, mas ainda compatível com alguma forma de sobrevida democrática.

Se for o fígado, talvez tenhamos comprometida a filtragem ética, intoxicando os demais sistemas com decisões contaminadas por interesses.
Se for o coração, há o risco de hipertrofia institucional, bombeando poder em excesso e sufocando os demais órgãos pela pressão.
Mas se o STF for o pâncreas — como tudo indica — então a situação é crítica.

O câncer de pâncreas é silencioso, avança sem sintomas evidentes, e quando se manifesta, já compromete todos os sistemas vitais. Sua letalidade não está apenas na localização, mas na dificuldade de removê-lo sem matar o corpo junto.

É essa a gravidade do momento: não sabemos mais se o STF é um órgão adoecido ou um órgão letal. E enquanto não se define, seus efeitos colaterais já se espalham por todo o tecido da república.

Como alertava Aristóteles, a justiça só existe quando cada parte do Estado cumpre sua função própria. E quando uma delas se expande além da medida, a harmonia desaparece — e a pólis adoece.

Hoje, o STF já não age como Corte. Opera como glândula normativa, polícia secreta e legislador supremo. E como ensinava Heráclito, aquilo que não respeita o limite, destrói a si mesmo por excesso.

A questão, portanto, já não é mais jurídica. É orgânica. Ou identificamos o tumor e restauramos a saúde da república — ou aceitaremos a morte institucional lenta, sob a aparência de legalidade.




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4. A imprensa diante do espelho

Certa vez ouvi entre Procuradores-Gerais amigos reunidos em Brasília, com o sarcasmo sóbrio do mineirês filosófico, a seguinte advertência de precisão cirúrgica que, infelizmente, grassa por todos os meandros da sociedade:

“No deis é bão, no mei, não.”

Durante anos, a grande imprensa brasileira naturalizou a censura seletiva. Quando o alvo era a direita, o conservadorismo, ou qualquer voz dissonante do consenso progressista, a tesoura do Supremo parecia um remédio legítimo para conter a desordem.

Mas agora, o bisturi se volta contra quem antes o aplaudia.

Ao proibir que terceiros divulguem entrevistas de Jair Bolsonaro, o STF ultrapassou o limite da liberdade de expressão e invadiu o campo sagrado da liberdade de imprensa. Pela primeira vez, os jornalistas se veem na mesma encruzilhada dos influenciadores banidos, dos perfis excluídos, dos cidadãos silenciados. O dilema é o mesmo: entre o silêncio cúmplice e a resistência tardia.

O espelho devolve o rosto. E nem todos gostaram do que viram.

Mas o susto não se restringe às redações. Ele chega, sobretudo, às salas onde se negociam contratos, reputações e influência. Os donos de jornais, sustentáculos financeiros do ecossistema midiático, compreendem agora que Lula e Moraes não atacam apenas ideias — atacam o próprio modelo de negócios da liberdade.

A guerra tarifária iniciada por Donald Trump em resposta aos abusos judiciais brasileiros acendeu um alarme vermelho nas mesas dos acionistas. O recado foi claro: a erosão institucional brasileira não é só um problema interno — é um risco comercial, diplomático e global.

O projeto de Lula, cada vez mais explícito, é retirar o Brasil da esfera de influência atlântica e integrá-lo de vez ao eixo China-Rússia-Irã. O problema é que, ao fazer isso, não desloca apenas alianças — subverte os fundamentos do capitalismo democrático, baseado em liberdade, transparência e Estado de Direito.

Confúcio dizia que a decadência começa quando os nomes perdem seu sentido. Hoje, democracia virou nome para censura. E imprensa livre, para imprensa dócil. Mas como advertia Tocqueville, a imprensa é o nervo mais sensível de uma república: quando ela cede, o corpo já começou a morrer.

Não se trata mais de esquerda ou direita. Trata-se de saber se a imprensa ainda deseja existir como espelho da realidade — ou se aceitará viver como máscara do poder.

5. A pergunta decisiva: quem ainda está com a liberdade?

Neste ponto da travessia, a pergunta que paira sobre o país já não é se Jair Bolsonaro poderá concorrer em 2026. Isso é apenas sintoma. A doença é mais profunda.

A verdadeira pergunta é:

Quem, no núcleo do poder real, ainda está com a liberdade — e quem já entregou sua alma à autocracia?

Porque já não se trata de espectros ideológicos, mas de integridade interior. Já não basta invocar a Constituição — é preciso encarná-la. Já não basta repetir palavras como “democracia” — é preciso amar o risco e a responsabilidade que ela exige.

A liberdade não é uma narrativa. É um compromisso com o dissenso. É a aceitação de que a verdade não pode ser imposta por ordem judicial. É a coragem de permitir que o outro exista, mesmo quando sua existência nos incomoda.

Como ensinava Viktor Frankl, o ser humano não pode viver sem sentido. E o sentido da vida em uma república está na liberdade de buscar a verdade — sem que um ministro ou um partido dite o que deve ser dito, ouvido ou calado.

A encruzilhada que se abre hoje diante de nós não é entre conservadorismo e progressismo. É entre dois projetos de civilização.

De um lado, um país livre, plural, conflitivo e imperfeito — onde errar é humano, e discordar é lícito.

De outro, um país domesticado, submisso, tutelado por ministros vitalícios e conduzido por um partido hegemônico que se traveste de democracia para disfarçar seu desejo de eternidade.

Sócrates foi condenado por “corromper a juventude” e “desrespeitar os deuses da cidade”. Mas, na verdade, foi executado por fazer perguntas incômodas — como esta. Hoje, o mesmo risco paira sobre quem ousa indagar: quem vigia os que se dizem vigilantes?

La Boétie chamava de servidão voluntária o estado de alma daqueles que, por medo ou conveniência, se adaptam à tirania até chamá-la de ordem. E essa é a tentação que assombra o Brasil neste exato momento.

Resta saber quem ainda ousa resistir. Quem ainda prefere o risco da liberdade à segurança da mordaça. Quem ainda se reconhece não como súdito, mas como cidadão.





6. Epílogo — A mutação final: do câncer ao despertar

Toda célula cancerígena nasce de um equívoco profundo: ela acredita que pode viver separada do corpo que a gerou.

Esquece que a vida exige harmonia. Esquece que a liberdade exige limite. E ao esquecer isso, cresce em desordem até sufocar o organismo inteiro.

O único modo de deter essa mutação é quando o corpo reconhece o risco — e reativa suas defesas naturais. No caso de uma república, essas defesas não são armadas nem violentas. São silenciosas, mas vitais:

O jornalismo honesto, que escolhe a verdade mesmo quando ela não serve à pauta.
O empresariado consciente, que compreende que lucro sem liberdade é servidão dourada.
O povo desperto, que sabe que calar hoje o outro é abrir mão da própria voz amanhã.
E um Congresso corajoso, que se recusa a ser caudatário de um poder que já não reconhece seus limites.

Se esses anticorpos não agirem agora, a liberdade não morrerá com um grito, mas com um murmúrio. Será silenciada com decisões sigilosas, bloqueada por algoritmos, desmonetizada por plataformas, esquecida por conveniência. E então, como escreveu Marco Aurélio, “aquilo que não é lembrado, já começou a morrer”.

Mas se houver reação — e tudo indica que ela começou ontem, quando o susto atravessou as redações — ainda há tempo. Tempo de reverter a mutação. Tempo de reconhecer que o câncer não é destino, mas desvio.

Porque a liberdade, mesmo enfraquecida, é a única célula capaz de regenerar um país doente. Ela não precisa ser maioria. Basta que permaneça íntegra.

Como ensina Lúcia Helena Galvão, o mal pode crescer mais rápido, mas o bem, quando desperta, é como luz que dissipa a escuridão em um só instante.

Cabe a nós escolher: continuar no sono das células desmemoriadas — ou acordar como consciência do corpo inteiro.


7. Pós-escrito — Quando o império corta o açúcar, mas o corpo precisa aceitar a dieta

Na medicina, algumas batalhas contra o câncer começam com a restrição alimentar. As células tumorais, ao contrário das saudáveis, não sobrevivem sem glicose abundante. É o chamado efeito Warburg: o tumor é guloso, dependente, incontrolável.

Na política, é igual.

O câncer institucional brasileiro não se expandiu apenas pela ousadia de seus agentes — mas pela abundância de açúcar em seu entorno: impunidade endêmica, acordos espúrios, silêncio midiático, alianças oportunistas, cumplicidade internacional.

Mas algo mudou.

Os Estados Unidos, sob a liderança de Donald Trump, começaram a impor restrições externas. Tarifas, advertências, vigilância diplomática e mecanismos como a Lei Magnitsky funcionam como um cerco nutricional ao tumor. Cortam o fluxo. Ameaçam os bancos. Limitam o oxigênio simbólico e financeiro da degeneração.

Mas o tratamento só funcionará se o próprio paciente quiser sobreviver.

Não basta esperar que o império corte o açúcar. O Brasil precisa recusar o banquete. Precisa mudar sua própria dieta institucional, ética e civilizatória.

Talvez o câncer que consome a institucionalidade brasileira se pareça com o câncer de estômago: ele nasce do excesso, da fermentação simbólica, da gula de poder, mas pode ser extirpado. O órgão doente pode ser removido. E o corpo, reconfigurado.

Talvez precisemos transformar o que hoje é um estômago institucional insaciável em um esôfago simples, que receba apenas o necessário, com humildade e sobriedade.

A cirurgia será dolorosa. Exigirá jejum moral. Reeducação política. Cortes. E talvez a consciência de que nem tudo o que se pode digerir deve ser engolido.

Mas essa é a escolha diante de nós:

Ou alimentamos o tumor até que ele devore o corpo inteiro e metástase, ou aceitamos viver com menos — para que possamos viver com dignidade.

(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.

NR - Os textos assinados expressam a opinião dos seus autores.
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