
Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito -23 - Jornalismo e Cultura (Para Iniciados) Por Ivanildo Sampaio
25/07/2025 -
“Há uns 50 anos não estavam na moda escolas de jornalismo. Aprendia-se nas redações, nas oficinas, no botequim do outro lado da rua, nas noitadas de sexta-feira. O jornal todo era uma fábrica que formava e informava sem equívocos e gerava opinião num ambiente de participação no qual a moral era conservada em seu lugar.
Não haviam sido instituídas as reuniões de pauta, mas às cinco da tarde, sem convocação oficial, todo mundo fazia uma pausa para descansar das tensões do dia e confluía num lugar qualquer da redação para tomar café. Era uma tertúlia aberta em que se discutia a quente os temas de cada seção e se davam os toques finais na edição do dia seguinte.
Os que não aprendiam naquelas cátedras abundantes e apaixonadas de 24 horas diárias, ou os que se aborreciam de tanto falar da mesma coisa, era porque queriam ou acreditavam ser jornalistas, mas na verdade não o eram”.
Foi assim que Gabriel Garcia Marques, Prêmio Nobel de Literatura iniciou, há uns 30 anos, a sua explicação para criar,na sua Cartagena das Indias, na Colômbia, um sistema de oficinas experimentais e itinerantes que se propunha a uma refundação do “novo jornalismo ibero americano”.
E nessa justificativa, ele considerava o jornalismo “a melhor profissão do mundo”, apesar das agruras e dos imprevistos pelos quais passam os que por aí se aventuraram e ainda se aventuram. Quando, pelas circunstâncias da vida, me coube dirigir, por quase 30 anos, a Redação do Jornal do Commercio de Pernambuco, tive a oportunidade de permitir que alguns dos nossos repórteres freqüentassem essas “oficinas experimentais” a que se referia o genial escritor colombiano,- jornalista por autodeterminação e talento - e não tenho dúvidas de que todos aqueles jovens profissionais que foram a Cartagena das Índias agregaram experiência e conhecimento aos seus currículos.
- Cheguei à Universidade quando estudar comunicação não era moda. Ingressei no Curso Superior de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco em 1964, sob o clima de um regime de força recém-instalado, e que dali em diante só iria piorar, até chegar ao Ato Institucional número 5, quando a ditadura militar rasga totalmente o véu, e a tortura era o prato do dia no cardápio das instituições carcerárias.
A melhor profissão do mundo
Mas, não cheguei à Universidade por entender que o jornalismo era “a melhor profissão do mundo”, até porque Gabriel Garcia Marques, naqueles anos, ainda era apenas um escritor colombiano de quem pouco se ouvira falar.
Fui estudar jornalismo muito mais por entender que pelas páginas dos jornais era possível se fazer do mundo um lugar mais digno para se viver; era o caminho para denunciar tantas injustiças que grassavam numa sociedade egoísta e desigual; seria possível se dar vez e voz à grande legião, padecente do desassossego, que dormia sob as marquises de edifícios nas avenidas das cidades grandes. Das crianças que cheiravam cola e se bandeavam para o uso do crack.
Das mães precoces tão carentes, abandonadas sem carinho e sem perdão. Ao longo de mais de meio século nunca troquei de profissão, nunca fiquei rico, jamais busquei outra alternativa de sobrevivência que não fosse pelas redações do mundo e da vida. E fui testemunha de todas as transformações pelas quais passaram os meios de comunicação ao longo da história. Ao ponto de não acalentarem nos jovens de hoje as utopias que embalaram sonhos de muitos jovens de minha geração.
Em algumas palestras que fiz para estudantes de jornalismo, quando eles ainda não desconfiavam que essa profissão era feita muito mais de realismo do que de romantismo, fui questionado, por aqueles jovens, nos primeiros tempos da Internet, se o “jornal estava com seus dias contados”. A minha resposta era sempre a mesma: o meio jornal já teve a sua morte decretada várias vezes. Mas sempre ressuscitou.
Os jornais “morreram” com o surgimento do rádio, quando a notícia podia ser transmitida de imediato e ao vivo, numa clara vantagem sobre o papel impresso. Fatos importantes ao final da Segunda Guerra Mundial foram levados aos cinco continentes pelas ondas do Rádio, com protagonismo da BBC de Londres. Os jornais não ignoraram esses fatos –mas com abordagem diferente e comentários que substituiam a atualidade da notícia.
-A “segunda morte do meio “jornal” foi antecipada com o aparecimento da televisão, que alguns ufanistas da época consideravam a “oitava maravilha do mundo”. E olhe que os telespectadores recebiam imagens distorcidas, em preto e branco, com falhas de transmissão e áudio alguns vezes ininteligível. Talvez por isso a repórter italiana, Oriana Fallaci, que escrevia para algumas das mais importantes revistas da Europa e dos Estados Unidos, quando questionada sobre a decadência do jornal impresso e o protagonismo da TV, costumava ser taxativa: “Se eu quero saber onde ocorreu um acidente de avião, eu ligo a TV.
Mas, se quero saber onde este avião caiu, a que horas e qual era a companhia, quantas pessoas morreram, quantas sobreviveram e a nacionalidade de cada uma, eu leio o jornal do dia seguinte”. E encerrava a conversa.
- A “terceira morte” anunciada do meio jornal chegou com a Internet – que a cada dia expande mais seus tentáculos invisíveis e silenciosos, tornando-se hoje a instituição mais poderosa e perigosa sobre a terra. Trabalhei por mais de 50 anos em redações de jornais e revistas, embora registre, no meu histórico de profissional de Imprensa, passagem pelo Radio e pela Televisão. Não há como negar a minha ligação umbilical com o jornal impresso, com o antigo “matraquear” das velhas máquinas de escrever, com o barulho das rotativas despejando nas esteiras a edição do dia, pronta e acabada.
Visitei redações de grandes e importantes jornais, como o AsahiShibum, em Tóquio, por exemplo, com sua tiragem diária de 10 milhões de exemplares nos anos 80 do século passado, dos quais mais de nove milhões eram assinantes fiéis. Ou o The Science Christian Monitor, de Boston, com apenas 400 mil exemplares, mas que os norte- americanos diziam ser “o jornal que informa futuros presidentes”.
Portanto, se me perguntarem agora sobre “a morte do jornal impresso”, eu diria, quase compungido, mas com muito pouco receio de errar, que o veículo “jornal”, como
ainda existe hoje, e que me fez caminheiro às vezes solitário em busca da verdade, tem
poucas chances de sobrevivência.
Mais cedo ou mais tarde vai desaparecer – assim como desapareceram a “máquina de escrever”, a “caneta-tinteiro” e o “mata-borrão”, instrumentos indispensáveis aos escritores e jornalistas desde o século 19 até o final do século 20 – e que hoje dormem inertes nas salas frias dos museus.
Tempos tenebrosos
Vive-se hoje tempos tenebrosos, dos gabinetes do ódio, do culto às fake-news, das mídias sociais que espalham a mentira e o separatismo, da negação da ética, das opiniões vendidas e dos talentos maculados, da glorificação de anti-profissionais que, como disse Garcia Marques, “acreditam ser jornalistas, mas na verdade não o são”.
Os jornais impressos, como ainda existem, certamente vão acabar. Não há como sobreviver. Mas, o Jornalismo, não. O bom jornalismo, a informação correta e isenta, a notícia não tendenciosa vão se sobressair diante de tantas distorções que permeiam o mundo da comunicação. E hoje já dão prova disso. (Um parêntese: numa das reuniões da ANJ, realizada em São Paulo, quando começou-se a discutir o impacto da Internet sobre a imprensa escrita, e quando se recomendava que as empresas cobrassem caro
pelos anúncios no jornal impresso, mas oferecessem, temporariamente, de graça, pela Internet, todo conteúdo editorial, eu fui uma voz destoante diante dessa proposta. Tinha meus argumentos: se os “internautas” estavam recebendo, de graça, todo o conteúdo editorial dos jornais, não iriam querer, mais tarde, pagar por ele. Infelizmente, eu estava com a razão: até hoje há resistência dos leitores em pagar por informações em plataformas digitais – e quando pagam, é um valor quase insignificante).
Ninguém duvida mais que a Internet colocou o mundo na palma de nossa mão. Nenhum negacionista (e com o os há!) ousa minimizar a capacidade do seu alcance, para o bem ou para o mal. Para construir ou destruir. E quando destrói, nem sempre constrói valores novos.
No final dos anos 90 do século passado, registrava-se uma queda na circulação de jornais em todos os países do mundo, inclusive o Brasil. E isso assustava o setor. A partir do ano de 2003 e até meados de 2005, a circulação esboçou um pequeno crescimento, segundo pesquisas feitas pela AMJ - Associação Mundial de Jornais.
Naquela época, aqui no Brasil, a Associação Nacional de Jornais, associada à AMJ, contava com 126 jornais filiados de todos os Estados brasileiros, com uma tiragem diária superior a 5,5 milhões de exemplares. Ao mesmo tempo, havia um esforço conjunto para garantir a sobrevivência dos jornais, que já davam sinal de cansaço.
Hoje, grande parte desses jornais deixou de circular, a tiragem total não chega à metade daqueles números. Títulos lendários como “O Jornal do Brasil”, “O Correio da Manhã”, o “Diario de Notícias” e “O Jornal”, no Rio de Janeiro, que eram lidos em quase todos os Estados brasileiros, deixaram de circular.E já não são considerados “profetas do caos” aqueles que preconizavam o fim dos jornais, com o formato e o conteúdo que caracterizavam o veículo.. Vamos fazer aqui uma ligeira viagem a um passado recente.
- Pois bem, no ano já distante de 2003, o então presidente da AMJ, Gavin O’Reille, que era também presidente do Grupo Independent News e Midia, com sede em Dublin, na Irlanda, e responsável pela edição de 165 jornais, mostrou, numa reunião da Associação Internacional de Publicidade, que o jornal, até então, ainda se caracterizava como o mais eficiente veículo de comunicação de massa. E fez uma longa apologia sobre o veículo.
Segundo ele, havia 10 razões pelas quais os jornais eram o melhor suporte publicitário do mundo: estava comprovado que cada consumidor em potencial recebia, por dia, cerca de 3 mil mensagens publicitárias, sendo a maioria delas de mensagens indesejadas. Essa massa de informações chegava paralelamente a uma fragmentação de audiência, especialmente os meios audiovisuais, incluindo-se a televisão e a internet.
Dessa forma, as empresas do setor já não conseguiam atingir uma parcela significativa do mercado, já não tinham a amplitude de antes, em função de mecanismos criados por elas mesmas. Havia, nesse processo, uma multiplicidade de opções na televisão e uma pulverização de mensagens na Internet. Enquanto isso ocorria, os jornais preservavam sua posição e suas características, responsáveis por uma fidelização do seu público.
E quais eram, então, as “10 Razões” citadas por Gavin, segundo as quais os jornais eram o melhor suporte publicitário do mundo? Numa época em que a Internet já existia e se expandia mundo a fora?
- À luz da realidade de então, “As razões” citadas por Gavin eram as seguintes:
- Primeira Razão – O meio jornal era eficaz. Estudos realizados na época mostravam que quando os jornais eram associados à publicidade televisual, a notoriedade da marca e, principalmente a propensão dos consumidores em adquirir o produto, aumentava de forma considerável. Em alguns casos, esse aumento de propensão de compra chegava a 400 por cento.
- Segunda Razão – Os jornais atingiam e influenciavam o público. Estudos da época realizados no Japão, revelaram que os consumidores, quando confrontados com diferentes mídias, colocavam o jornal como a mídia mais eficiente. Além disso, julgaram que os jornais ofereciam conteúdo mais amplo e de maior credibilidade, além de propiciar informações mais úteis na vida quotidiana.
- Terceira Razão – Os jornais desafiavam e atingiam os consumidores de maior poder
aquisitivo. O consumo de jornais crescia na razão direta da prosperidade das pessoas.
Seria o contrário do que acontecia com a televisão, onde o público cresce na mesma
proporção em que diminui o poder aquisitivo.
- Quarta razão – Os jornais geravam respostas para seus anunciantes. A preponderância
dos classificados e do varejo nos jornais mostrava a multiplicidade do alcance do veículo. No Brasil, os melhores exemplos da força desses dois vetores estavam nos jornais Estado de São Paulo, O Globo e Zero Hora, entre outros. Em Pernambuco, o Jornal do Commercio liderava esses dois segmentos.
- Quinta razão – Os jornais eram flexíveis em termos de custos e de formatos. O anunciante podia utilizar o veículo tanto para campanhas nacionais e internacionais, quanto para a propaganda local. Da mesma forma, atendiam desde os pequenos orçamentos, que contemplavam os Classificados, quanto os maiores, como a produção de Suplementos, por exemplo.
- Sexta razão – Os jornais eram um escoadouro para a eficácia e a criatividade publicitária. E essa eficácia era medida de duas formas. Primeiro, a eficácia do meio, em termos de custo e de alcance. Depois, a eficácia do próprio anúncio. Assim, como em qualquer meio, atingir sua audiência era apenas parte da equação. A execução criativa sempre foi um ponto-chave dos jornais e garantiam a necessária plataforma para se exibir a criatividade da mensagem do do design.
- Sétima Razão – Os jornais ofereciam, constantemente, inovações em sua busca por novos leitores. Em razão disso,permitiam a criação de plataformas publicitárias sempre enriquecidas.
- Oitava razão – Ao contrário de um mito que então se difundia no mercado, naquele ano a circulação de jornais apresentava crescimento no mundo inteiro – graças a uma política de inovação e de marketing pró-ativo.
- Nona razão - os jornais se prestavam para ser utilizados, eficazmente, em combinação com outras mídias Numa simulação de públicos-alvo, contemplando os que têm maior e menor poder aquisitivo, era possível montar um amplo leque de combinações, onde se otimizava o alcance do anúncio no jornal.-
E finalmente, a Décima razão pela qual, mesmo com as primeiras ameaças das mídias digitais que começavam a incomodar: para atender a linguagem da WEB, os jornais deveriam ser considerados navegadores universais, dado a facilidade com que se podia acessar seu conteúdo.
E isso, graças a suas características peculiares: eram (e ainda são) altamente portáveis, convenientes para o tempo e o lugar desejados, criavam lealdade para com o título e não para com o meio (o Jornal do Commercio tinha seus assinantes fiéis, que não assinavam outros jornais), eram acessíveis em todo o mundo, tanto online quanto off-line.
Ricos em conteúdo
Eram disponíveis e ricos em conteúdo, não eram fisicamente perecíveis, permitindo que fossem consultados várias vezes – tinham preço acessível a todas as classes.
Deve ser dito que Gavin O’Reilly, o irlandês responsável por esse decálogo, não era nenhum curioso, não defendia o jornal impresso por diletantismo ou prazer: o Grupo de Comunicação comandado por ele editava jornais da Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul, num total de 165 títulos, mais de uma centena de emissoras de rádio, e empresas de out-door e internet.
Seus jornais, dos quais o mais conhecido era o TheIndependent, de Londres ,entre 2004 e 2005, chegavam a 13,5 milhões de exemplares por dia - com faturamento superior a US$ 2 bilhões anuais e um lucro líquido no exercício de US$ 260 milhões. Não há dúvidas de que o mundo e a realidade eram outros.
Fala-se muito e fala-se sempre que a Pandemia mundial,causada por um vírus misterioso – mudou pelo avesso a história da humanidade neste Século 21. Valores foram revistos. Conceitos foram reformulados.
Relação entre as pessoas ganhou dimensão diferente, houve exemplos reais de fraternidade entre os povos, medo, terror, arrependimento. No mundo das comunicações também houve mudanças - e não apenas nos métodos de produzir informação, quando a necessidade de isolamento social obrigou o trabalho à distância: muito se lutou no combate “ao vírus” da desinformação, e se falou de quanto a imprensa poderia aprender na guerra contra a proliferação de informações mentirosas.
Sobre essa realidade, o jornalista norte-americano Kyle Pope, editor-chefe e Publisher da Columbia Journalism Review, escreveu, naquela revista, um oportuno ensaio onde afirma: “Para que haja alguma esperança de transcendemos o manto sombrio da desinformação, devemos, todos nós, assumir a responsabilidade de entender a narrativa maior”. Ele lembra, por exemplo, que “milhões de americanos estão constante e ferrenhamente dispostos a acreditar no que é claramente falso e a descrer no que é obviamente verdadeiro”.
Brasil
E no Brasil? Quantas notícias mentirosas não percorreram e se multiplicaram nas redes sociais, louvando o “poder de cura” da cloroquina, quando a ciência afirmava que a droga era totalmente ineficiente no tratamento e produzia efeitos colaterais perigosos?
Quantas biografias limpas não foram maculadas via internet, sem que os responsáveis por esses crimes fossem punidos? E quantos fatos verdadeiros foram descartados como se fossem irreais?
Muitas batalhas que a humanidade trava não acabam nunca. Essa luta contra as fakenews não admite trégua. A mentira não pode prevalecer sobre a verdade.
Volto a Gabriel Garcia Marques: - “O jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade. Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la.
Palpitação sobrenatural da notícia,
Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca, no minuto seguinte”.
O resto é cabotinismo e pobreza de espírito.
Ivanildo Sampaio é (Diretor de conteúdo do Jornal do Commercio. Recife)
