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Reflexão sobre a democracia relativa: o caminho da tirania começa pela porta da retórica

26/07/2025 -

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Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

1. Preâmbulo — A semente verbal do autoritarismo

As democracias não morrem apenas por golpes de Estado — morrem pela linguagem. Antes que o poder seja usurpado, é a palavra que é sequestrada.

A tirania começa quando conceitos fundantes como “liberdade”, “pluralismo” e “voto” são esvaziados por dentro e recheados de sentidos convenientes ao poder. O autoritarismo não entra em cena com tanques, mas com metáforas.

Afirmar que o voto “não é suficiente” para garantir a democracia, por exemplo, não se trata de uma mera constatação histórica, mas de um enunciado performativo. Uma tentativa de reconfigurar a legitimidade política por critérios subjetivos, morais e ideológicos.

O que está em jogo, hoje, é mais do que retórica — é o esboço de um novo pacto simbólico que relativiza o sufrágio universal e insinua um poder acima do povo.

Essa lógica não é inédita. Como advertia Victor Klemperer, filólogo que sobreviveu ao nazismo, o totalitarismo começa quando se altera a linguagem cotidiana.

E como se sabe quem controla os símbolos controla o real. Ao afirmar que o voto apenas não basta, questiona-se não apenas o instrumento — questiona-se a soberania popular.

Abre-se a porta para que novos “curadores da verdade” decidam, por nós, quem deve ou não ocupar o poder. A palavra é o primeiro território ocupado. E, como em toda ocupação, a violência começa com o silêncio do invadido.



2. O voto como essência, não como ornamento

A democracia não é um ornamento civilizacional. É o reconhecimento de que nenhum poder pode se justificar sem o consentimento dos governados.

O voto, nesse sentido, não é um rito decorativo — é a espinha dorsal da soberania popular. Retirar-lhe a centralidade é colocar o povo na posição de súdito ilustrado: alguém que pode opinar, mas não decidir.

A tradição liberal, de Locke a Montesquieu, fez do voto a expressão última da liberdade política. Mais do que um direito, o voto é um escudo: protege o cidadão contra o arbítrio, pois permite a remoção pacífica dos governantes.

Substituí-lo por supostos critérios “éticos” definidos por elites morais é revogar o princípio da igualdade política. Não há democracia se alguém, em nome de um bem maior, pode desautorizar a escolha popular.

O discurso que diz que “o voto não basta” é sempre proferido por quem se julga superior à vontade da maioria. É o velho autoritarismo de toga ou de tribuna, agora mascarado de virtude.

Quando a legitimidade de um governo passa a depender do crivo de iluminados — e não da urna — a democracia já começou a ruir. E não por falta de voto, mas por excesso de tutela.

3. O espelho da História e a lógica invertida

A História já viu esse roteiro. Hitler ascendeu pelo voto. Chávez também. Erdogan, Orbán e Maduro usaram eleições legítimas para corroer as instituições por dentro.

A lógica é sempre a mesma: transformar o voto em salvo-conduto, e não em contrato revogável.

Eleger-se passa a significar imunidade, não responsabilidade. A vontade popular, sequestrada, torna-se um escudo para práticas antidemocráticas.

A verdadeira subversão começa quando se acusa a democracia de “formalismo burguês”, para então substituí-la por um regime paternalista e autorreferente.

É La Boétie invertido: o povo não ama a servidão, mas é convencido de que precisa ser tutelado por seu próprio bem.

A liberdade, então, é apresentada como ameaça — e o controle, como salvação. É nesse espelho deformado que a tirania se traveste de democracia.



4. A manipulação da linguagem como estratégia de poder

Toda tirania começa com o sequestro das palavras. Liberdade já não significa autonomia de consciência, mas “liberdade responsável” — condicionada à cartilha ideológica do regime.

Democracia não remete mais ao poder do povo, mas a um processo tecnocrático regulado por “especialistas” e tribunais. Justiça social vira senha para justificar censura, confisco e perseguição seletiva.

Quando os nomes deixam de refletir a essência e passam a ocultá-la, a linguagem torna-se o campo inaugural da opressão.

Orwell previu isso. Confúcio advertiu que, quando os nomes são corrompidos, as sociedades se desorganizam.

E é nesse ponto que o discurso político já não informa, mas performa. Já não representa, mas hipnotiza. É a substituição do Logos pela propaganda.

5. O projeto autoritário em curso

O relativismo simbólico foi o primeiro passo. Em 2023, o presidente brasileiro afirmou que “o voto sozinho não garante a democracia”, sem perceber que essa frase mina a própria ideia de soberania popular.

A democracia foi reduzida a um adereço institucional, um rito de aclamação sem povo. Ao mesmo tempo, alianças com regimes autocráticos se intensificaram — China, Rússia, Irã e Venezuela tornaram-se parceiros preferenciais, enquanto EUA e União Europeia foram tratados com desprezo ou ironia.

No plano interno, o cerco à liberdade de expressão ganhou roupagem jurídica e digital. Decisões judiciais opacas, algoritmos opressivos e censura seletiva passaram a controlar o fluxo da opinião pública.

O discurso sobre “combate à desinformação” ocultou a real meta: interditar qualquer dissenso.

Soma-se a isso a irresponsabilidade fiscal travestida de “inclusão social”, a criminalização da meritocracia e o uso da linguagem como arma de desorientação — onde “direitos humanos” não incluem os adversários e “justiça” é a mão do governo vestida com luvas ideológicas.

Externamente, a retórica antiamericana foi retomada com ares de Guerra Fria. Mesmo sob Biden, Lula hostilizou Israel, promoveu os BRICS como alternativa ao dólar e se aliou a governos que desprezam eleições livres.

Sob Lula, o Brasil se afasta dos valores do Ocidente democrático para se aproximar de um modelo personalista, centralizador e imune à crítica.

O projeto está em curso — e sua sofisticação reside no fato de que tudo se faz em nome da democracia.

Mas uma democracia sem voto soberano, sem crítica livre e sem alternância de poder já não é democracia — é apenas o espelho do autoritarismo revestido de verniz popular.



6. Conclusão — Resistir à tirania vestida de democracia

A tirania moderna não chega com tanques — chega com termos. Não suprime o voto, mas o reinterpreta. Não cala a voz, mas a corrige. Não fecha os tribunais, mas os torna uníssonos.

Seu método é a erosão lenta, simbólica e progressiva das garantias que tornaram a democracia possível. Por isso, o perigo já não é apenas o golpe clássico, mas a lenta reconfiguração semântica do próprio conceito de liberdade.

Como advertiu Karl Popper, a essência da democracia não é votar, mas poder destituir governantes sem violência.

Quando o sistema se fecha sobre si mesmo, censura o contraditório e transforma a crítica em crime, o voto torna-se ritual vazio.

A democracia, sem sua alma plural e contestadora, degenera em culto ao governante. É nesse ponto que a “defesa da democracia” se torna sua caricatura mais perigosa.

Não há democracia sem alternância, sem liberdade de imprensa, sem oposição legítima. Mas também não há democracia onde o povo é tratado como massa ignorante a ser “educada” pelo Estado.

A pedagogia da servidão voluntária é sempre embalada por boas intenções — e é isso que a torna tão sedutora. Afinal, nenhuma tirania dura muito sem o consentimento inconsciente dos governados.

A pergunta, então, persiste como punhal filosófico: o voto não basta — para quem? Para os que querem pensar por nós, falar por nós, julgar por nós e governar para sempre em nosso nome.

Para eles, o voto é um obstáculo — não uma garantia. E é exatamente por isso que resistir começa por chamar as coisas pelos seus nomes. A linguagem ainda é nossa trincheira mais sagrada.

(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.

NR - Os artigos assinados refletem a opinião dos seus autores. O Poder estimula o livre debate de ideias e o contraditório.
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