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Ensaio - "Não se cala a liberdade com silêncio mas com o medo de usá-la.”por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

28/07/2025 -

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1. Preâmbulo — O ombro de mamãe

Minha mãe, Wandethe, era a mais danada entre os irmãos. Não por maldade, mas por inteligência sagaz — daquela que as crianças inventam quando percebem que o mundo dos adultos confia mais nos ouvidos do que nos olhos.

Ela tinha uma irmã mais velha, minha tia Valdisa, com quem vivia às turras — como toda boa dupla de irmãs que se ama implicando.

Mamãe adorava provocar. E tia Valdisa, ao ser chamada por um apelido que detestava, corria ao pai:

— Papai, a Wandethe me chamou daquele nome de novo!

Vovô, austero e atento à autoridade da palavra, que havia ouvido a discussão entre as duas, não contava conversa: Mamãe ia direto para o castigo.

Até que um dia, ela teve uma ideia brilhante — e perigosamente simbólica:

— Olha Valdisa, toda vez que eu suspender meu ombro direito duas vezes, estarei te chamando daquele apelido. Sem dizer uma palavra.

Naquele jantar, muitos filhos à mesa, meus avós à cabeceira. Mamãe sentada de frente para a irmã. Silenciosa, ergueu o ombro direito. Uma vez. Depois, outra.

Tia Valdisa se levantou indignada:

— Papai! Ela está me chamando daquele apelido de novo!

Vovô ergueu os olhos, sereno:

— Eu não ouvi nada. Agora é você quem está de castigo!

Aquela história sempre me divertiu. Mas hoje, ela me ensina mais do que nunca. Porque em 2025, no Brasil, a censura não grita — ela pisca o ombro. Não diz o que proíbe — apenas faz você pagar o preço de ser entendido demais.

A mais alta corte do país não cala as vozes. Apenas cria um ambiente em que falar se torna perigoso.

E como no tempo da infância de mamãe, quem ousa dizer o que compreendeu pode acabar sendo punido — mesmo sem ter dito nada. Basta que o gesto ou o silêncio seja entendido como delito pelo olhar subjetivo do ministro da Suprema Corte.

2. Introdução – O silêncio imposto por quem deveria proteger a palavra

Há momentos em que a história não grita — ela sussurra sob a mordaça. E, por isso mesmo, exige de nós mais atenção, mais lucidez e mais coragem.

O Brasil de 2025 assiste, sem o espanto necessário, à lenta normalização de um regime onde o direito de falar permanece intacto, mas o direito de ser ouvido passou a depender do humor do guardião supremo.

A imprensa não está, formalmente, proibida. O ex-presidente Jair Bolsonaro não está, tecnicamente, censurado.

Mas há uma sombra pairando sobre cada palavra proferida e sobre cada manchete escrita. Uma sombra que não vem da ignorância, mas da toga. E é essa sutileza perversa que torna tudo mais grave.

O Supremo Tribunal Federal, por meio de alguns de seus ministros, tem operado uma mutação institucional perigosa: transformou medidas cautelares — destinadas a preservar o devido processo — em instrumentos de controle subjetivo da linguagem, da imprensa e da narrativa pública.

Aquilo que, antes era exceção, tornou-se método.

E o que deveria proteger, passou a ameaçar.

A decisão recente, que permite entrevistas mas adverte que sua repercussão pode gerar prisão, é na minha humilde opinião uma obra de ficção jurídica e de severa desinformação institucional.

O novo texto decisório não corrige o abuso anterior. Apenas o disfarça com uma retórica ambígua, juridicamente sofrível e redacionalmente desastrosa.

Impõe-se desracar que se a imprensa aceitar isso como normal — estará renunciando ao seu papel histórico. E quando os jornais renunciam à palavra, é a democracia que perde a voz.





3. Mostrar a tornozeleira não é crime — e dizer-se injustiçado também não

A tornozeleira eletrônica, embora constrangedora, é um símbolo visível de restrição judicial. Mostrá-la em público pode causar desconforto, mas não configura, por si só, crime algum.

Não há no Código Penal, no Código de Processo Penal, nem na Lei de Execução Penal qualquer dispositivo que proíba um cidadão monitorado de expor sua condição ou manifestar seu sentimento diante dela.

Mais do que isso: a liberdade de expressão é um direito fundamental, inviolável e incondicional, previsto em cláusula pétrea da Constituição.

Mesmo réus — ou talvez especialmente eles — têm o direito de dizer-se injustiçados, humilhados ou perseguidos. O juízo subjetivo sobre a própria condição não é afronta à Justiça — é parte do processo democrático.

Punir alguém por exibir a tornozeleira ou declarar-se humilhado, sem que haja incitação à violência ou desobediência coletiva, é violar o princípio da legalidade penal:

“Não há crime sem lei anterior que o defina” (art. 5º, XXXIX da CF e art. 1º do CP).

É também negar o princípio da dignidade humana: suprimir o direito de verbalizar a dor, o desconforto ou a crítica diante de um poder que se diz justo, mas age como punidor sensível a qualquer opinião divergente.

Esse direito foi conferido a Lula mesmo depois de preso e o Brasil inteiro assistiu sua prisão somente acontecer depois de horas de discursos e mais discursos no Sindicato dos Metalúrgicos.

Ninguém impediu as manifestações de Lula. Talvez o atual censor do STF poderá dizer: "Mas eu ainda não estava aqui". Resta saber se ele realmente iria calar Lula e se ele receberia autorização para dar entrevistas como de fato ocorreu durante sua prisão.

Já no que diz respeito a Bolsonaro, a acusação implícita, velada, é de que este teria usado a entrevista para “burlar as cautelares” revela o grau de arbitrariedade que se instalou: burlar o quê, exatamente? A percepção de que a punição é injusta? A coragem de mostrá-la? O eco da repercussão espontânea?

Se o simples fato de falar já é interpretado como provocação, e se a dor já é tratada como insubordinação, então já não temos mais Justiça.

Temos apenas um teatro de legalidade onde o réu deve silenciar — não para preservar o processo, mas para não desmascarar o julgador.

4. A volta disfarçada da censura — do veto explícito à ameaça indireta

A censura, nem no passado remoto, jamais se apresentou como tal. Mesmo nos regimes mais autoritários, ela se vestia de outra coisa: segurança nacional, ordem pública, proteção contra o “discurso do ódio”.

No Brasil de 2025, ela voltou a se apresentar — não como imposição estatal explícita, mas como consequência jurídica subjetiva. E isso a torna ainda mais perigosa.

Tudo é feito em benefício da Presidência de Lula — e ele sequer precisa praticar ato algum. Nesse sentido, Lula performa o ápice da arte de manipular as estruturas de poder: deixa que atuem por si mesmas, como se fosse apenas um beneficiário passivo, quando, na verdade, é o maestro invisível da sinfonia institucional.

Por outro lado, quando Alexandre de Moraes decide que Jair Bolsonaro pode dar entrevistas, mas pune ou ameaça punir quem divulgar ou repercutir o que foi dito, ele não está garantindo liberdade.

Ele está construindo o caminho mais sutil — e mais eficaz — da repressão simbólica: a censura indireta, travestida de cautela judicial.

O que antes era uma ordem clara de bloqueio virou uma advertência nebulosa.

Mas a consequência é a mesma: se a imprensa hesita, se cala e se autocensura — não porque perdeu o direito, mas porque teme o castigo — todas as liberdades estarão em risco.

E junto com elas, o próprio meio de vida de quem sustenta a democracia com informação.

Esse fenômeno já é bem conhecido nos estudos de direito constitucional: trata-se do efeito inibidor (chilling effect).

Não é preciso proibir expressamente. Basta criar um ambiente de incerteza e ameaça suficiente para que os próprios jornalistas, editores e cidadãos recuem antes de falar.

É a lógica do “você pode dizer o que quiser — mas assuma as consequências”, quando essas “consequências” incluem prisão, bloqueio de contas, perseguição judicial e assassinato de reputações. Isso não é democracia funcional.

É um regime de exceção hermenêutica, em que a Constituição é reinterpretada conforme o destinatário e o impacto político da palavra.

A censura, portanto, não desapareceu.

Apenas reaprendeu a sussurrar.

E enquanto ela sussurra, a imprensa se silencia — e a liberdade, mesmo não revogada, deixa de existir na prática.






5. A insegurança jurídica e o português incerto das decisões judiciais

Nada simboliza melhor o colapso do Direito do que a perda de clareza em sua linguagem. Quando as palavras da Justiça deixam de significar o que dizem e passam a dizer o que convém, a lei já não é mais norma — é instrumento.

As decisões recentes do ministro Alexandre de Moraes não são apenas juridicamente frágeis — são mal escritas, hermeticamente ambíguas e perigosamente subjetivas. Sua estrutura gramatical oscila entre o tecnicismo difuso e o voluntarismo disfarçado. E sua linguagem já não serve à norma, mas à vontade do intérprete.

Termos como "instrumentalização simbólica", "potencial evocativo golpista", "fragilização institucional subjetiva" e "efeito político colateral" são expressões de uma retórica vazia, imprecisa e descolada da legalidade penal positiva.

Não se trata de doutrina — mas de juridiquês voluntarista, onde o conteúdo da norma é moldado conforme a intenção do julgador.

O princípio da legalidade, a tipicidade penal, o devido processo legal — todos sofrem quando o julgador não diz o que é, mas o que parece, o que pode, o que talvez....

E quanto mais vago o texto, mais ampla a margem para punir conforme a conveniência.

Além da dúvida jurídica, instala-se a dúvida semântica — e o medo se alimenta de ambas.

Uma decisão judicial mal fundamentada e mal redigida não é apenas um problema técnico — é um atentado ético contra a segurança jurídica.

Porque o cidadão não precisa apenas da Justiça que decide com justiça. Ele precisa da Justiça que fala com clareza, com precisão e com sobriedade — sob pena de cair no mesmo abismo que um regime autoritário disfarçado de legalidade.

O mau uso da linguagem jurídica não é um erro de estilo. É uma forma de dominação.

6. O papel insubstituível da imprensa — e o dever de não se calar

Toda vez que o Poder se torna opaco, é a imprensa que deve clarear.

Por outro lado, quando a Justiça se fecha em silêncio, é o jornalismo que deve perguntar — alto, claro e repetidamente.

Não há democracia onde a imprensa se comporta como vassala da institucionalidade abusiva.

E não há república que resista quando os jornalistas se calam para preservar sua própria pele, ou seus próprios contratos.

É preciso dizer com todas as letras: a imprensa brasileira continua sob censura velada na atualidade pois:

• Pode publicar — desde que o conteúdo não desagrade.

• Pode noticiar — desde que não viralize.

• Pode entrevistar — desde que ninguém escute.

Essa é a nova cartilha informal da liberdade de expressão: não fale demais, não destaque demais, não irrite demais.

É a lógica da contradição manipulada pelo poder — e não por acaso está no monólogo mais emblemático do filme O Advogado do Diabo, quando o próprio Diabo, sob o nome de John Milton, acusa Deus de impor ao homem uma liberdade ilusória:

“Prove, mas não engula. Toque, mas não sinta. Olhe, mas não se aproxime.”

A imprensa brasileira está, hoje, exatamente nesse ponto: autorizada a existir, desde que não viva; autorizada a falar, desde que não ressoe.

Mas o papel da imprensa nunca foi agradar os ministros da Corte. Seu papel é defender a verdade, a transparência e o direito do povo de saber o que está sendo feito em seu nome — mesmo que isso cause incômodo, desconforto ou desconstrução de narrativas.

Se a imprensa brasileira não enfrentar diretamente o arbítrio judicial de Alexandre de Moraes — e não apenas com editoriais ocasionais, mas com insistência argumentativa, coragem institucional e rigor investigativo — ela será cúmplice do silêncio.

Não se trata de defender Bolsonaro. Trata-se de defender o espaço público onde até os adversários têm direito de falar e ser ouvidos.

A censura só vence quando encontra cúmplices no medo. E o jornalismo que não honra a palavra perderá, em breve, o direito de usá-la.





7. Conclusão — Quem silencia diante da censura, já consentiu com ela

As instituições que deveriam sustentar a República parecem ter desaprendido seu próprio vocabulário.

A liberdade virou risco. A crítica virou ameaça. A imprensa virou ré. E o juiz — que deveria ser o guardião da neutralidade — passou a ser o protagonista da repressão interpretativa.

Não há mais dúvida: a censura no Brasil de 2025 não precisa mais se anunciar como censura.

Ela opera na sombra da ambiguidade, na opacidade das decisões, no terror difuso da punição sem regra clara.

Ela não proíbe — ela adverte. E nesse aviso camuflado, instala-se o medo.

Bolsonaro, como personagem, é secundário. O que está em jogo não é sua liberdade individual, mas o espaço simbólico que ainda resta à liberdade coletiva de expressão.

Se hoje é ele o silenciado — amanhã pode ser qualquer um.

Porque o critério não é mais a legalidade. É a conveniência de quem interpreta.

E se a imprensa, diante disso, se acomoda — não é mais imprensa.

É órgão oficioso de silêncio consentido.

É por isso que a responsabilidade maior agora recai sobre os jornais, as rádios, os portais, as revistas e os jornalistas honestos que ainda compreendem o valor de seu ofício.

Eles devem pressionar Alexandre de Moraes — diretamente, nominalmente, juridicamente e editorialmente.

Devem exigir que ele revogue os atos de censura anterior, reconheça os excessos cometidos e restabeleça os limites entre a cautela processual e o autoritarismo hermenêutico.

Porque, enquanto a imprensa se cala, a censura aprende a vencer. E quem silencia diante dela — já consentiu com ela.

8. Epílogo — O Despacho Totó e o relógio da censura

A decisão de Alexandre de Moraes de não decretar a prisão de Jair Bolsonaro, apesar de afirmar que houve “descumprimento” das medidas cautelares, não foi um ato de clemência, nem um reconhecimento da crítica jurídica. Foi, como em outras ocasiões, um cálculo de timing e conveniência.

Quem conhece os bastidores do poder sabe nomear esse tipo de movimento. Na Procuradoria Geral do Estado, chamávamos de Despacho Totó: aquele gesto solene, performático, mas que consciente de seus próprios limites, prefere recuar sem admitir.

A história era simples: um Dogue Alemão imenso, anunciado como massagista de pés, era chamado com toda a pompa. Mas diante do cliente, nada fazia. E o dono repetia: “Totó, esta é a última vez que eu vou te ensinar como se faz isso, hein!”

Moraes age do mesmo modo. Afirma sua autoridade — mas recua onde sabe que avançar seria perigoso.

Ele não prendeu Bolsonaro. Não porque faltassem argumentos ou vontade em sua lógica interna — mas porque sobram riscos políticos, diplomáticos e geoestratégicos.

Com os vistos americanos cassados, e sob a vigilância da Magnitsky Act, qualquer gesto mais drástico poderia acionar mecanismos internacionais de responsabilização inédita para um membro da Suprema Corte brasileira.

Mas há algo mais. Moraes tem um padrão: ele usa o tempo como arma.

No caso do IOF, convocou uma audiência pública apenas para dissipar a atenção da imprensa e legitimar o que já estava decidido. Esperou o momento em que o foco se voltava a outras crises — e então liberou o aumento do imposto.

Agora, com Bolsonaro, o roteiro pode se repetir. Primeiro, o alerta. Depois, a espera. Em seguida, uma mudança de pauta nacional — e então, talvez, a prisão.

Ou não. Talvez outra advertência. Talvez mais silêncio. Talvez um novo “Totó, essa é a última vez...”.

Tudo depende do contexto. Não é o direito que guia Moraes — é a oportunidade.

Por isso, é fundamental que todos os que defendem a liberdade, a legalidade e a imprensa independente estejam atentos aos movimentos do tempo e não apenas ao conteúdo das decisões.

Porque no Brasil de 2025, o risco não está no que o poder diz — mas no momento em que decide dizer.

E quando se percebe, o despacho já foi assinado — e Totó, mais uma vez, não cumpriu seu papel corretamente.

9. Pós-escrito — O juízo e o tempo: quando o arbítrio prova do próprio veneno

9. Pós-escrito — O juízo e o tempo: quando o arbítrio prova do próprio veneno

Há uma justiça que não é feita com toga, mas com tempo.

E há uma crueldade que não se expressa em penas, mas em privilégios — quando se escandaliza mais com o desconforto dos poderosos do que com o sofrimento dos esquecidos.

A jornalista Eliane Cantanhêde deixou escapar, nos bastidores, aquilo que já se cochicha nos corredores da elite togada: esposas de ministros — não ministras, como erroneamente disse — estariam aflitas com a possibilidade de não poderem mais visitar os Estados Unidos.

Teme-se o cancelamento silencioso dos vistos, o fim das viagens à Disney, das compras em Nova York. E, pasmem, Cantanhêde chamou isso de “um dado cruel”.

Mas não foi cruel manter Clezão preso até a morte, mesmo com o Ministério Público requerendo tratamento médico?

E arrancar Débora Rodrigues dos braços dos filhos pequenos, como se fosse uma terrorista?

E trancar cidadãos comuns em presídios e tornozeleiras, sem acesso à primeira instância, sem o devido processo legal, sem passaporte diplomático nem rede de proteção social?

E não foi igualmente perverso convocar uma família inteira para ser conduzida pela Polícia Federal em um inquérito humilhante e manipulador, por terem sido acusados de importunar um ministro?

Não houve ali exagero, abuso, desigualdade?

Foram julgados na mais alta Corte do país — e só se livraram após pedirem formalmente desculpas, mesmo tendo sido ofendidos também, tanto física quanto verbalmente.

Mesmo as condenações pesadíssimas — muitas delas ultrapassando os dez anos de prisão para réus primários, desarmados e sem antecedentes — não foram tratadas pela grande imprensa como crueldade.

Nenhum espanto. Nenhuma indignação. Pelo contrário: enquanto silenciam diante da desproporção, preferem amplificar o coro ideológico dos que vociferam “Anistia Nunca Mais!”, como se justiça fosse vingança e liberdade fosse privilégio reservado aos seus.

No que concerne aos presos do 8 de janeiro, a maioria desses condenados jamais teve recursos para as benesses da elite. Nunca pisaram em Orlando — nem em Brasília.

Mas seus passos foram vigiados, suas palavras criminalizadas, suas vidas descartadas por um poder que se esconde atrás da toga e se protege com censura.

Nada disso foi tratado pela imprensa — que apoia os excessos contra as liberdades individuais — como crueldade.
Pelo contrário — quase sempre com o veneno velado de um “bem feito”.
E com ampla divulgação dos clamores dos poucos gatos pingados da esquerda que vociferam: “Anistia nunca mais!”

Agora, o arbítrio saboreia o próprio veneno —
e talvez, agora, a ideia de uma anistia ampla, geral e irrestrita volte a fazer sentido — não como indulgência, mas como reparação.

O silêncio de Barroso, no Ceará, evitando mencionar as sanções americanas, diz mais do que qualquer despacho publicado.

É o silêncio de quem compreendeu, tarde demais, que a autoridade perde sua aura quando se afasta da justiça.

A justiça divina não costuma chegar de sirene ligada.

Às vezes, ela entra pela porta dos fundos: um cartão bloqueado, um visto negado, um constrangimento diplomático.

E o poder que calou os outros agora teme não ser ouvido no check-in.

Há, portanto, duas balanças em jogo: A da toga, que se desequilibra conforme o prestígio do réu — e a do tempo, que pesa com silêncio, mas revela com justiça.

Enquanto uns temem perder o conforto das viagens à Disney, outros já perderam o direito ao socorro, ao trabalho, à palavra — e até à presença no próprio velório.

Eu vi isso de perto.

Em minha própria casa, a justiça chegou sem espetáculo. E foi ali que compreendi que o juízo mais verdadeiro não se faz com tribunais — mas com tempo e consciência.

Minha mãe, Wandethe, dizia que não nos daria trabalho. E assim foi: passou mal na quinta, operou na sexta, partiu no sábado.

Minha sogra dizia que não queria velório, nem determinadas presenças. E assim foi: morreu na primeira onda da Covid, sem flores indesejadas, sem hipócritas ao redor.

Mas meu pai, Jorge, teve outro destino — mais pedagógico, mais simbólico. Na juventude, atropelou acidentalmente uma jovem com deficiência mental.

Foi inocentado — mas a lembrança o acompanhou por toda a vida.

Anos depois, foi ele quem foi atropelado.
Atravessava fora da faixa, com pressa, quando um motoqueiro — também apressado — não conseguiu parar a tempo.
Meu pai, lúcido, disse apenas: “Você me matou, cara.”

Morreu uma semana depois.

Ao prestar meu depoimento, disse a verdade: ele atravessou fora da faixa. Talvez, de alguma forma misteriosa, também tenha sido responsável.

A Cabala ensina que os nexos entre causa e consequência são ocultos — porque se fossem visíveis, não haveria mérito no livre-arbítrio.

Obedeceríamos por medo, não por consciência.

A liberdade exige o véu do tempo para que o juízo tenha sentido. E o juízo verdadeiro não é aquele que condena — é aquele que revela.

“Deus julgará o justo e o perverso; pois há um tempo para todo propósito e para toda obra.”
(Eclesiastes 3:17)

O tempo é, pois, o mais sutil dos tribunais.

E a verdade, quando chega, não precisa gritar.

Quem humilhou, hoje se sente humilhado.
Quem abusou, hoje teme ser revistado.
Quem negou direitos, hoje se desespera por privilégios.

E quem sempre acreditou que aqui se faz e aqui se paga… talvez estivesse certo desde o início.

(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.

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