
O dia em que virei "Kung Fu" para assustar a direita nas disputas da FDR na ditadura, por Natanael Sarmento*
30/07/2025 -
A tradicional Faculdade de Direito do Recife (FDR), a "Casa de Tobias Barreto, foi pioneira no Brasil, criada por Decreto Imperial de 1827, juntamente com a do Largo de São Francisco, São Paulo. Tem muita história.
Contaremos um episódio. Quase anedótico. Expressão de como resistir sem perder o humor aos anos de chumbo e seus filhotes violentos no ambiente acadêmico.
Nos anos 1970 o seriado Kung Fu fazia enorme sucesso na televisão brasileira. Aventuras do andarilho chinês, mal amanhado e aparência frágil e pacífica. Quando provocado, lutava como leão e destruía os inimigos com sua acrobática arte marcial.
Era o ano de 1973. Estudava no Ginásio Pernambucano e me preparava para o vestibular. Contudo, perambulava mais do que devia na FDR. Lá estudavam a irmã Dionary Sarmento e Leonardo Cavalcanti com os quais coabitávamos no Recife.
No panteão do corpo docente figuravam medalhões do mundo jurídico-acadêmico, Pinto Ferreira, Rui Antunes, Lourival Vilanova, Costa Porto, Rosa e Silva, Cláudio Souto, Vamirech Chacon, Marcos Freire, Roberto Magalhães, Marcos Vilaça, Margarida Cantarelli, Nilzardo Carneiro Leão e outros desta magnitude e nem tanto.
Bedéis coletavam as listas de presença. Turmas seriadas, divididas por anos, não havia ainda o sistema de créditos. Era comum corredores e pátio interno com movimento da agitação juvenil.
Da fauna estudantil da época, muitos se destacaram no mundo jurídico e fora dele: Pedro Américo Farias, José Nivaldo Junior, Fernando Magalhães Melo, Antonio Lavareda, Roberto Franca, Sérgio Longman, Pedro Eurico, José Arnaldo Amaral, Ronidalva Melo, Marcelo Santa Cruz, Ivete Nóbrega, Eneida Melo, Nancy Soares Lourenço, Maricel, Beny Lutterman, Raimundo, Janine, Sear Jasu, Custódio Amorim, Carlos Gavião e Tavares, o "Marquês das Caravelas", dentre outros cujos nomes agora escapam.
O Brasil atravessava momento agudo da ditadura, tudo proibido. Vigência do AI-5 e 477. UNE e DCE proibidos. Reuniões e encontro, proibidos. O advogado Barros Mello, áulico do regime, Diretor da Faculdade Direito de Olinda, exemplifica com sua peculiar pedagogia. Sabe-se lá por que mantinha um leão acorrentado na sua faculdade. Proibia reuniões estudantis de mais de 3 alunos até para festejar aniversários. Barros Melo deu mau exemplo. Sonegava direitos trabalhistas e não assinou nossa carteira de trabalho de professor contratado, isto em 1980. Fomos representados pelo advogado Paulo Azevedo do Sinpro-pe. O absurdo foi matéria no JC.
Citamos o caso para ressaltar os tempos de opressão e abusos.
Em 1973 o ditador Garrastazu Médici nomeava reitores e diretores da FDR. Hilton Guedes Alcoforado foi diretor da FDR com histórico de colaborador do regime. Enquanto isso, na sala das injustiças, sequestros, torturas e mortes. O Congresso, manietado. A imprensa, censurada. A cavalaria montada. Sobrou cassetete no Teatro Santa Isabel na apresentação da peça o 'Rei da Vela'. Ficava o feito, pelo não feito, e o dito, se desagradava, valia o pau-de-arara, a “pianola” máquina de choques usadas nas sessões de torturas e outras atrocidades.
Humanistas, sacerdotes, democratas, liberais, socialistas qualquer opositor tratado como inimigo e comunista. Do “Brasil, Ame-o ou Deixe-o” como se amar o Brasil fosse apoiar crimes de ditadores entreguistas serviçais do imperialismo Americano.
O clima de terror de Estado gerava desconfianças. Por toda parte, agentes infiltrados, bem disfarçados ou arapongas de 5ª categoria que só faltavam o carimbo na testa, do chapéu com peninha. Discutir política institucional do MDB marcava a oposição. Participar de organização ou partido clandestino, dureza mil vezes maior. O manual “Se fores preso camarada” do Álvaro Cunhal, roto de passar de mão em mão, serviu e às vezes não. Sabe-se de jacus que por trás das grades cantaram como sabiás ou falaram como papagaios.
Formavam-se grupos de amigos pelas “afinidades eletivas”, literárias, xadrez, chopp no Bier Hause, papos culturais. O campo da esquerda albergava pássaros de várias espécies, inclusive poucos comunistas e revolucionários.
Por ideia de um seleto grupo, criou-se o jornal 'Reflexo', na FDR. O panfleto, mimeografado, contou com cobertura do MDB. Mas era distribuído, semiclandestinamente. Porque não se submetia à censura e fazia denúncias contra a ditadura que a grande imprensa não podia ou não queria fazer. O 'Reflexo' batia forte.
Escrever, confeccionar e distribuir era trabalho voluntário e voluntarioso de poucos. Não se ganhava dinheiro e se corria risco. Pura convicção de fazer a coisa certa, os ignorantes em filosofia chamam de “idealismo”. Pelo sim, pelo não, o 'Reflexo' marcou época. Não foi coincidência, os seus três diretores, Leonardo, Dionary e Zé Nivaldo acabaram sequestrados, levados às masmorras do DOI/Codi, onde se torturava e matava os considerados inimigos do regime.

A piada
O Zé Nivaldo Junior ainda não tinha escrito o best-seller internacional 'Maquiavel O Poder - História e Marketing Político' e tampouco sonhava enveredar pela publicidade e marketing político. Mas o Zé tinha lido o florentino Nicolau. Sabia da importância da força da aparência. O jornal Reflexo estava pronto. A equipe de panfletagem andava tensa. Notícias do aumento da repressão no Nordeste. A turma do CCC e os reacionário estavam cada vez mais abusados. Agressivos. O pau andou cantando na própria Faculdade, até na diretoria, ou nos bares das proximidades. Diziam que iam interromper a distribuição do 'Reflexo' na porrada. O escriba, único secundarista cachorro pequeno metido no canil universitário de cachorros grandes, tem traços que lembram biótipos asiáticos, pela ascendência indígena.
O sempre espirituoso Zé Nivaldo, que era chamado de Hilário(expressão da época para cara engracado) pelos colegas, saiu-se com uma das suas: “Vamos espalhar que Natanael é faixa preta de Kung-Fu!! Ninguém encosta na gente!”. Risadas gerais. O boato foi espalhado. O 'Reflexo' circulou sem interferências.
Ainda bem que não foi preciso demonstrar as alardeadas habilidades de Kung Fu, que nunca tivemos.
Realmente, não sei se o boato foi a causa dos valentões reacionários baixarem o fogo.
Para não concluirmos com a expressão popular chula “quem tem...” fato é que o medo é uma emoção humana universal. Como diria João Grilo, " Só sei que foi assim".
*Natanael Sarmento é professor universitário e escritor. Dirigente Nacional do partido Unidade Popular Pelo Socialismo - UP.
