
É Findi - Eleições em Araguana - Crônica, por Maria Inês Machado*
02/08/2025 -
O trabalho seguia intenso na casa de farinha. As bolandeiras roncavam sem parar, dando conta da moagem da macaxeira. Hora de parar. Dia de eleições. A farinha torradinha já esperava nos pratos dos eleitores do coronel.
Diziam por todo canto que o almoço seria farto. Duas novilhas haviam sido abatidas na casa grande. A fila se estendia, e quem se aproximava do banquete sentia os olhos dos homens de confiança, os capangas. Tudo acontecia sob carta marcada: governador, prefeito, vereador. Cada qual com seu preço. Silêncio e obediência ainda eram a melhor forma de seguir vivo.
Consciência política? Não fazia parte do vocabulário do sertanejo. Ninguém se atrevia falar nisso.
As eleições começavam dias antes, com os comícios no coreto da praça. Os coronéis surgiam imponentes no carro do ano, ladeados pelos candidatos. O povo se amontoava, sinal visível da força do partido dominante. Verdadeiro desfile de poder.
A suspeita na contagem dos votos pairava no ar. Inevitável. Qualquer tentativa de rebeldia, já sabiam, seria tratada com dureza. Os capangas sabiam ajeitar o caminho do jeito deles.
Naquela madrugada, o estrondo dos tiros sacudiu a cidade. Joaquim acordou assustado com a voz aflita da mulher. Estava preocupada com os botijões de gás no depósito. A casa, ela dizia, parecia estar pegando fogo.
Era muita bala. Melhor se jogar no chão, pensou ele. Chumbo grosso, desses que não perdoam.
A noite parecia não ter fim. Ninguém sabia ao certo quantos disparos foram feitos, mas todos perceberam a gravidade da situação. Pela manhã, os alpendres danificados mostravam as marcas da violência, enquanto cochichos pelas calçadas confirmavam o medo.
Fala baixo, comadre, alertavam. Ninguém queria se meter. Comentavam que Joaquim tinha provocado a discórdia, ao abrigar em casa opositores do coronel. Que ousadia. Justo em tempo de eleição. Aquilo era um risco que poucos estariam dispostos a correr.
Mas e a democracia? Voto livre, secreto? Livre, sim, sempre diziam isso. Mas todo mundo sabia: discordar podia custar caro.
A família Silva não largava o osso. Há décadas comandava Araguana. Quem tentasse mudar o rumo arriscava-se a enfrentar bala ou desgraça.
Para muitos, os Silva eram do bem. Era assim que diziam. O povo votava nos indicados, sem perguntar por quê.
E havia as benesses. Dentaduras, sacos de cimento, até um bezerro novo Joaquim já tinha recebido. Só a cadeira de professora da esposa é que não saiu. Zangaram-se. Trocaram de partido. E deu no que deu.
As promessas, logo bateriam à porta. Reforma na casa, sorriso completo na boca. Alguns já sonhavam com um fiozinho de ouro entre os dentes. Valia até o dente inteiro de ouro.
Iranilda, faladeira da localidade, vivia por dentro de tudo. Dava as notícias em primeira mão, como se tivesse nascido para isso. Agora andava empolgada, espalhando pelos arredores a grande novidade: o próteseiro estava chegando. Logo, logo, as dentaduras com obturações de ouro iriam brilhar nas bocas dos araguanos.
Araguana, no coração do sertão nordestino. Entre morros secos, veredas rasas e estradas de terra vermelha.
Próxima ao leito seco de um rio, cercada por caatinga brava, mandacarus espinhentos e açudes que ainda resistiam à estiagem.
Cidade boa de morar. Tem sol forte que esturricava o chão. Mas também sol de fazer ouro brilhar na boca.
*Maria Inês Machado é psicóloga, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental e em Intervenção Psicossocial à família. Possui formação em contação de histórias pela FAFIRE e pelo Espaço Zumbaiar. Gosta de escrever contos que retratam os recortes da vida. Autora do livro infantojuvenil 'A Cidade das Flores'.
