
Entre vozes e engrenagens: o Brasil que usa, silencia e descarta - Ensaio
05/08/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
1. A voz possível de Juscelino
Há textos que não exigem comprovação, apenas escuta. A chamada “entrevista psicografada” de Juscelino Kubitschek, publicada pelo portal O Poder, não precisa ser validada por registros históricos nem por doutrina mediúnica para provocar um reconhecimento silencioso — quase íntimo. O que se lê ali, mesmo sob o véu literário e simbólico, não soa estranho. Ao contrário: soa autêntico.
O que aquele “Juscelino do cárcere” diz não é absurdo nem deslocado. É perfeitamente plausível. Está em harmonia com o que ele disse em vida, com o que viveu em silêncio e com o que suportou sem perder a elegância.
Ali está, por exemplo, a confiança no voto — não como mecanismo, mas como mistério civilizacional. A serenidade diante da prisão — não como resignação, mas como lucidez moral. A crítica sem rancor. O perdão como força política. E, sobretudo, a fé inquebrantável no Brasil, mesmo quando este parecia duvidar de si próprio.
Entre os extremos da documentação e da imaginação, o texto ocupa uma terceira via: a verossimilhança moral. E é essa presença delicadamente construída que talvez explique por que tantos leitores sentiram, ao terminar a leitura, não uma dúvida, mas uma saudade. Saudade de um tempo em que era possível exercer o poder sem brutalidade, com elegância e grandeza democrática.
2. O preço de Brasília: contratos, poder e abandono
Juscelino não foi apenas o arquiteto de Brasília — foi também o mecenas involuntário de um novo Brasil empresarial. As grandes empreiteiras nacionais que hoje dominam a construção pesada nasceram ou se consolidaram sob os contratos bilionários do Plano de Metas. Foi JK quem lhes abriu as portas — mas não foi ele quem guardou as chaves.
À medida que cresciam, essas empresas ambicionaram estabilidade contratual, menos controle institucional e maior previsibilidade política. Encontraram isso — não na democracia —, mas no autoritarismo. Ao final de seu governo, romperam silenciosamente com seu criador e abraçaram o regime militar, que oferecia um modelo sem imprensa livre, sem CPI, sem prestação de contas. O ambiente ideal para uma aliança promíscua entre concreto e poder.
A perseguição a JK após 1964 teve causas ideológicas, sim — mas teve também razões econômicas. Ele passou a ser um obstáculo moral para um projeto que queria crescer sem ser questionado. Acusado sem provas, exilado sem julgamento, JK foi descartado não por falhar — mas por ter sido grande demais no regime errado.
E assim, como tantas vezes no Brasil, quem ajudou a erguer os alicerces do futuro acabou soterrado sob os escombros do presente.
3. Lula: de salvador fabricado a passivo político
A história não se move apenas por ideais — ela obedece, sobretudo, a interesses. Lula não foi libertado por um clamor popular espontâneo, tampouco por uma súbita conversão institucional à justiça. Foi libertado por conveniência — e por conveniência financeira de altíssimo calibre.
O calote dos precatórios promovido por Bolsonaro no fim de seu governo — sob pretexto de responsabilidade fiscal — afetou diretamente os maiores bancos e fundos de investimento, que haviam comprado esses títulos a preços aviltados. Com a inadimplência forçada, o valor de mercado desses precatórios despencou. Mas os grandes operadores não perderam — eles compraram ainda mais, e mais barato.
Lula, então, tornou-se a peça ideal para resolver esse impasse. Sua soltura foi menos um ato jurídico e mais um movimento financeiro. Ao assumir o governo, pagou bilhões em precatórios pelo valor de face — enquanto os bancos que os haviam adquirido com deságio embolsaram lucros monumentais. Além disso, esses papéis serviram como lastro para alavancagem de crédito, multiplicando os ganhos no sistema financeiro.
Ou seja: Lula não foi apenas um “vitorioso eleitoral”. Foi o instrumento escolhido para resolver um problema que Bolsonaro havia criado — e que os donos do dinheiro queriam que fosse solucionado com urgência, lucros e discrição.
Agora, no entanto, a utilidade de Lula está chegando ao fim. Seus erros de política econômica, sua linguagem antiquada, sua incapacidade de governar com eficiência técnica e a corrosão institucional promovida por sua aliança com um STF fora de controle começam a ameaçar a própria máquina que o recolocou no poder. Tudo isso aliado ao desastre de sua atuação geopolítica, transformam Lula num verdadeiro estorvo radioativo.
Se a engrenagem não o descartar pelo voto, o fará pela erosão silenciosa. Não porque o odeia — mas porque ele já entregou o que devia e afora só contribui para o caos.
4. Bolsonaro: a pedra que o sistema ainda não conseguiu quebrar
Se Juscelino foi descartado por crescer demais sob os olhos dos militares, e Lula foi usado e premiado por interesses econômicos antes de se tornar novamente um fardo, Bolsonaro é o caso raro do político que, mesmo censurado, criminalizado e juridicamente acorrentado, continua resistindo — e crescendo.
Era o outsider tosco, o acidente eleitoral que não deveria ter vencido. A mídia progressista acreditava controlar a opinião pública, mas descobriu tarde demais que o povo já não habitava os salões da imprensa tradicional, mas os corredores digitais das redes livres. Bolsonaro não venceu por estratégia refinada, mas por representar um Brasil real, cansado, esquecido — e, sobretudo, indignado.
E é exatamente por isso que sua figura tornou-se insuportável ao sistema.
Mais do que um político, Bolsonaro tornou-se um catalisador. Sua simples presença unificou a esquerda, reagrupou o progressismo, mobilizou o STF como nunca antes e justificou rupturas institucionais impensáveis. Foi o inimigo perfeito. Serviu como álibi para censurar, prender, perseguir e legislar sem Parlamento. Mas, ao contrário dos planos, não desapareceu.
E há mais: tentaram silenciá-lo de todas as formas — até com sangue. A facada que sofreu em 2018, em plena campanha eleitoral, não comoveu o sistema. Foi, ao contrário, relativizada, desdenhada, e até tratada como farsa por Lula, que chegou a chamar o atentado de “fake news” — como se a dor, o sangue e o risco de morte pudessem ser rebaixados ao nível de uma peça de propaganda.
Assim como Juscelino morreu em circunstâncias nebulosas em 1976, com indícios ignorados por décadas e investigações inconclusas, Bolsonaro carrega no corpo uma cicatriz que o sistema jamais reconheceu como ferida legítima. A recusa em reconhecer a violência sofrida revela o que há de mais perverso: a tentativa de eliminar o adversário não apenas fisicamente, mas simbolicamente — como se nem sua dor fosse digna de registro.
Contudo, ao contrário de Juscelino — eliminado institucionalmente — e de Lula — hoje desgastado e com sua utilidade esgotando-se, Bolsonaro sobreviveu à máquina de moer reputações. Com todas as suas falhas e contradições, continua sendo o último símbolo popular capaz de conter o avanço autocrático da esquerda — não por mérito individual, mas por falta de alternativa legítima.
Agora, paradoxalmente, ganha respaldo internacional, justamente daqueles que antes o ignoravam. A possibilidade de sanções internacionais contra a censura no Brasil, a denúncia de perseguições políticas e o próprio desgaste de Lula e do STF colocam Bolsonaro não como uma peça removida, mas como uma peça bloqueada — viva, incômoda, mas impossível de ser encaixada ou descartada.
O que o sistema ainda não entendeu é que sua insistência em calar Bolsonaro pode ser a faísca que reacende a voz do povo, com mais força, clareza e legitimidade do que jamais se viu.
5. Conclusão – Entre a Repetição e a Resistência Real
O Brasil vive há décadas sob a lógica de uma engrenagem que gira indiferente aos nomes, aos feitos e às urnas. Quem serve, serve. Quem atrapalha, cai. Juscelino, Lula, Bolsonaro — três figuras, três símbolos, três destinos distintos — todos atravessados por uma estrutura de poder que se recicla para manter-se intacta, mesmo quando muda de rosto.
Mas há algo novo neste ciclo. Ao contrário de Lula, que funciona como um câncer isolado — sobrevivente de si mesmo, e dependente de sua própria toxicidade para manter viva a máquina ao redor —, Bolsonaro não se esgota em si. Ele não concentra o movimento: ele o irradia. Está mais próximo de uma metástase do bem — não pela sua pureza, mas porque gerou ao seu redor uma rede viva de consciências que não se extingue com sua voz. E isso muda tudo.
Ao longo da história, o sistema sempre tentou eliminar o protagonista que ousa escapar do script: prendeu Juscelino, apagou Ulysses, matou reputações. Mas agora, mesmo censurado, ferido, juridicamente mutilado e aprisionado em sua própria pátria, Bolsonaro resiste — e, mais que isso, sobrevive no povo.
Talvez estejamos, enfim, diante da oportunidade histórica de não repetir a farsa como tragédia — mas de transformar o ciclo em libertação. Mas para isso, será preciso algo mais do que análise. Será preciso resistência verdadeira.
Steven Pressfield, em A Guerra da Arte, chamou de Resistance a força invisível que sabota todo impulso nobre — a voz mentirosa que paralisa a criação, a ação e o despertar. Já a Cabala, como ensina Yehuda Berg, dá à palavra "resistência" um sentido oposto e elevado: resistir é domar o ego, conter a reatividade, não ceder à escuridão.
Ambos, com sinais invertidos, falam da mesma guerra: a que se trava entre o ser humano e sua servidão interior, entre o chamado à grandeza e a covardia de se esconder atrás do medo.
Hoje, o Brasil vive essa guerra.
Não é apenas política — é espiritual, simbólica, civilizacional. E a pergunta que se impõe não é mais se Bolsonaro voltará, ou se Lula cairá. A verdadeira pergunta é: seremos, enfim, protagonistas conscientes de nossa história — ou continuaremos prisioneiros de uma resistência que mente, sabota e paralisa?
Porque, no fim, o risco não está no excesso de líderes, mas na ausência de cidadãos dispostos a assumir o destino comum.
E talvez, só talvez, tenha chegado a hora de trocar a repetição pelo despertar. E a reação automática pela resistência consciente.
6. Epílogo – O Chamado à Luz Conservadora
Não é mais tempo de temer a palavra “direita”.
É tempo de iluminá-la.
A direita conservadora — a verdadeira, não a caricatura feita pelos que a odeiam — é aquela que valoriza a liberdade com responsabilidade, a justiça com ordem, a tradição com abertura e a convivência com clareza moral. Ela não rejeita o diferente — apenas não se curva diante do autoritarismo disfarçado de tolerância.
Nosso tempo exige mais do que resistência: exige reconstrução. E, para isso, não basta apenas a coragem do enfrentamento. É preciso a sabedoria da construção.
Juscelino6 Kubitschek foi, nesse sentido, o arquétipo do que hoje nos falta: um líder de centro-direita democrático, conciliador, institucionalista, otimista e civilizacional. Governou com firmeza sem autoritarismo, com visão de futuro sem destruir o passado, com abertura ao diálogo sem entregar a alma da República. Sua ausência ainda pesa — não por nostalgia, mas por comparação.
O Brasil clama hoje por alguém que una o vigor popular da direita com a sensatez de quem sabe ouvir; que recuse tanto o delírio revolucionário quanto o caos institucional. Alguém que saiba que o povo quer ordem, mas não opressão; quer liberdade, mas não dissolução; quer justiça, mas não revanche.
A Cabala ensina que a Luz penetra quando a casca (klipá) é rompida com consciência. Essa luz não nasce do grito, mas do despertar. E o conservadorismo autêntico pode ser esse despertar: não como reação desesperada, mas como presença firme, clara e luminosa.
Chegou a hora de reacender essa chama — com um novo líder que não precise ser idolatrado, mas que possa ser confiado. Que não precise gritar, mas que saiba convocar. Que não deseje o trono pelo poder, mas pela responsabilidade de proteger a nação.
Porque o Brasil não precisa de um salvador.
Precisa de um estadista.
E talvez, ao chamar por ele, estejamos, no fundo, chamando de volta aquilo que ainda há de melhor em nós.
*Jorge Pinho é advogado, pensador e escritor. Ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas.
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