
Café frio, atestado e herança: o começo do fim - Crônica Satírica
05/08/2025 -
Por Emanuel Silva*
Dizem que os grandes sinais chegam discretos. E nada mais sutil do que um café frio servido nos muitos poderes espalhados pelo Brasil afora, inclusive em Brasília. O funcionário terceirizado entrega a bandeja sem arrumar, sem nem uma colherinha de prata para adoçar a tragédia. O café virou chafé: um líquido morno, com gosto de fim de festa. Quem vê ou prova sabe — tem algo mais sombrio no ar. É um recado velado, mas claro como a ausência de açúcar: o prestígio esfriou junto com o café.
O Atestado
Quando o prestígio começa a descer pelo ralo, especialmente em figuras já avançadas na idade, é comum surgir a pérola do prenúncio:
“Se tiver com a saúde bem, vou concorrer.”
Ora, ora... que humildade súbita daquele que já garantiu que viveria mais que Matusalém. 120, 150... 220 anos! Eu aumento, mas não invento — como dizia Nelson Rubens entre uma fofoca e outra.
A frase lembra aquele funcionário que passou o fim de semana “tomando todas” e na segunda aparece com atestado do pronto-socorro, alegando “indisposição”. A diferença é que, nesse caso, o atestado pode custar caro — pode custar uma eleição.
A Herança
É aqui que o bicho pega. Com o prestígio em baixa, idade avançada e a saúde em modo econômico, os herdeiros — especialmente os sem laço de sangue — já se assanham. A vitalidade agora depende de remédios e energéticos, e o velho comandante percebe que não basta querer: é preciso aguentar. E ele não aguenta.
Os “fiéis” de ontem já agendam reuniões discretas com futuros pretendentes. O espólio político — recheado de cargos, verbas, emendas e promessas ainda não pagas — virou banquete. O clima é de velório em vida. Cada herdeiro quer garantir sua parte da herança antes que a urna seja fechada e lacrada.
O Começo do Fim
Mas o pior de tudo nem é o café frio, nem o atestado furado — é a briga dos herdeiros. Ninguém mais tem paciência para esperar a leitura do testamento político. Já se empurram nos bastidores, nos corredores dos palácios tupiniquins, como se o poder fosse herança de família.
No fundo, todos sabem: um é bom, dois é tumulto, três já virou feira livre. O protagonista-mor, que se achava imortal, não preparou sucessores. E agora assiste, de camarote, a luta dos pretendentes pelo trono.
Porque por aqui, eleição não é só renovação —
é a mais suculenta das disputas de herança.
*Emanuel Silva é professor e cronista.
NR - As crônicas satíriricas não expressam a opinião de ninguém, nem dos seus autores. O cafezinho, a xícara e o garçom têm amplo espaço para manifestar suas versões.
