
Cultura, Sobre a Diversidade de um conceito – 29 - Crítica da Nova Cultura Universitária 08/08/2025 Por Flávio Brayner
08/08/2025 -
Começo
Reconheçamos que a chegada de uma nova época sempre encontra fortes resistências das pessoas que se formaram e adquiriram o conjunto de suas convicções, seus hábitos de pensamento e de vida através das instituições (e seus sistemas de valor) que, agora, no alvorecer do novo tempo, começam a desabar.
Esta “crise” ganha sua mais relevante significação no fato de que os eventos do Novo Tempo não dispõem ainda dos conceitos e das categorias que os explicam, que os interpretam e lhes dão significado no conjunto de nossas experiências possíveis. Abre-se, assim, uma lacuna no tempo, tempo de desorientação para alguns (e de novidade para outros), em que as coisas não são
mais, mas também não são ainda!
* * *
Fui formado no interior de uma ideia de Universidade que vejo, agora, sofrer um processo de grande transformação e caminhando numa direção que, pessoalmente, não tenho interesse em compartilhar.
E mesmo sabendo que minha forma de resistência a estes “novos tempos” é insignificante e até mesmo irrisória –a única “arma” de que disponho é minha palavra- gostaria de deixar registrado o meu protesto contra as formas insidiosas ou abertas de construção de uma “nova universidade” em que nela antevejo o laboratório institucional onde se processa uma silenciosa experiência: a da derrocada do pensamento, a da transformação do homem em uma entidade supérflua (Arendt) e, finalmente, a construção da distopia tecnocrática.
Não cabe aqui perguntar se os agentes desta transformação –em geral situados nos centros de tecnologia, informação ou gestão, e mais raramente nos de ciências humanas e sociais- têm “consciência” das consequências de suas ações no presente: isto seria supor que eu sei sobre a história futura o que eles ignoram; que eu sei sobre a própria consciência destes agentes, o que eles mesmos não sabem, o que me colocaria numa cômoda (mas falsa!) situação: a de me tomar como consciência trans ou supra histórica, ou de me supor uma subjetividade transcendente, predicados que não creio nem possuir nem desejar possuir. Estou, a rigor, tão envolvido em minha época, disponho de elementos conceituais tão ou mais rasos e precários para avaliá-la ou julgá-la quanto qualquer daqueles agentes.
Pensar o contrário
Pensar o contrário seria aceitar como verdadeira aquela cena clássica do Barão de Münschausen em que, atolado num pântano com seu cavalo e tendo ido até o fundo escuro das águas, ele se puxa pelos cabelos e, não apenas se extrai do lodo como também... traz seu cavalo entre as pernas! Não posso nem pretendo me extrair de minha época para vê-la “de cima”, como se existisse um “acima ou além de sua época”.
Esta é uma posição “historicista”, mas prometo que minhas veleidades historicistas terminam por aqui!
Prefiro admitir que as condições do presente não determinam a história futura, que permanece uma aventura política aberta. Mas posso perceber o caminho que a história passada percorreu para chegar ao presente em que vivo e sou mesmo capaz de ouvir as vozes de um passado silenciado - e silenciado por aqueles que venceram e que querem, à fina força, fazer esquecer a existência daquelas vozes, calar e controlar sua lembrança e, ao fim, nos convencer de que a única direção que aquele passado poderia tomar é esta que culmina em nosso inevitável presente!
Meio
A universidade que não pensa Quando vemos ou ouvimos o discurso estridente e obsessivo ao nosso redor, a respeito de ranqueamento, inovação, competitividade, produtividade, gestão, governança, produção, negócios..., denotando e conotando com uma linguagem nova, a construção de uma outra realidade institucional (mudam-se as palavras para que o sentido que atribuímos às coisas possam também mudar) é porque algo de importante aconteceu e que não se trata simplesmente de “adequar a universidade às exigências dos novos tempos”: trata-se de criar este “novo tempo” e apresentá-lo, finalmente, como resultado de uma evolução natural.
Há, pois, uma revolução em curso: a que instalará a distopia do homem-recurso dispensável, a que eliminará do cenário universitário a resistência crítica, uma vez que ciência “objetiva e neutra” não é objeto de debate público! O que está em jogo é a simples eliminação do espaço público-decisório.
O que se esconde (se é que a ideia de que algo se esconde “por trás da realidade” faz algum sentido) nesta libido instrumental e de uma instituição brasileira que gostaria de ser igual a Harvard?
Receio que o que se “esconde” aqui é algo como o fazer do mundo algo mensurável, quantificável e ordenado segundo uma mathesis universalis (uma ciência da ordem universal): este foi o delírio utópico da ciência moderna, esta ciência que “descobriu” que Deus escreveu o universo em linguagem matemática (Galileu)!
Imaginar que todas as coisas podem ser medidas e quantificadas, e não digo apenas as ordens discretas, mas também o amor, a justiça, o ódio, a alegria, a amizade, o desejo, a revolta, a indignação, a dúvida, o pensamento, o julgamento, o querer e as emoções em geral (e as tentativas atuais de mensurar as chamadas “Competências não cognitivas” –“sócio-emocionais”-já apontam neste sentido), esta é a “Solução Final” do horizonte tecnocrático.
Na nossa Universidade, enquanto os instrumentos para medir essas emoções não chegam, nos satisfazemos – por enquanto- em medir a ...”produtividade acadêmica” (número de patentes, de artigos, de recursos captados, de alunos virtuais, de professores deprimidos, de capítulos escritos, de citações, etc.).
Mas, se o pensar é exatamente aquilo que interrompe o continuum da vida, que nos retira da ordem imediata do mundo, dos automatismos ideológicos das respostas que antecedem às questões, do encadeamento causa-efeito..., para suspender, por um instante, nossas certezas habituais e, com isto, permitir o exercício do julgamento, só possível na presença partilhada ou confrontada com a pluralidade de outros pontos de vista, então, uma Universidade da mensuração e do ranqueamento é uma Universidade que não pensa mais.
Universidade unidimensional
A Universidade unidimensional Para entender o curioso percurso de uma instituição que começou sob os auspícios da Igreja medieval (fundar filosoficamente a racionalidade da fé), libertou-se dela através da crítica iluminista das agências normativas e tradicionais da autoridade intelectual, para oferecer à sociedade o distanciamento necessário para que ela pudesse digerir seus próprios preconceitos, refletir sobre sua própria forma de se representar, propor projetos (formar elites, lastrear a identidade nacional, construir um passado, preparar profissionais para o mercado, ou inovar os meios de relação com a natureza, etc.) e que, finalmente, retornou ao seu ponto de partida aceitando a dogmática vassalagem aos desígnios do mercado e do pragmatismo anti-transcendental (quero dizer com isto, sua incapacidade de imaginar outros modos possíveis de pensar, agir e viver), um percurso, como podemos constatar, que vai de um dogmatismo a outro, passando por um longo atalho “crítico”, para entender este curioso percurso, retomo, lanço mão de uma velha...tradição!
Tradição cara ao Romantismo alemão
Trata-se de uma tradição cara ao Romantismo alemão, que fazia uma distinção entre Civilização (Zivilisation) e Cultura (Kultur). A primeira correspondia ao mundo material da produção e circulação de mercadorias, onde vivemos o dia a dia de nossas vidas, o mundo, por assim dizer, “fático” e ordinário.
Românticos
Trata-se, para aqueles românticos, de um mundo opressivo, inautêntico e alienante. A Kultur representava o contrário disto: aqui o espírito podia se manifestar através da arte, da imaginação e da utopia.
A Kultur funcionava como um contraponto ou antídoto à alienação do mundo ordinário, ora como crítica, ora como esperança de sua modificação. Enquanto houvesse esta distância entre um e outro, estaria preservado o potencial crítico da sociedade.
Herbert Marcuse, num debate com Adorno em 1937, chegou mesmo a imaginar que numa sociedade que tivesse feito uma revolução social bem sucedida, onde os homens não precisassem mais da válvula de escape da imaginação e da esperança, nós não teríamos mais necessidade da Arte!
Alguns anos depois ele voltou atrás no que tinha dito: precisávamos, sim, da Arte não apenas porque não havíamos realizado nenhuma revolução bem sucedida, mas porque a reserva utópica que a Arte representava, a possibilidade de crítica e de distância do mundo fático tinha sido absorvida pelo mercado.
Ou, em outras palavras: a separação entre Kultur e Zivilisation não existia mais (Marcuse chamou isto de “unidimensionalidade” da sociedade). A utopia, a esperança, a imaginação tinham sido amplamente absorvidas pelo mercado.
Isto significava que o poder da crítica sobre os aspectos desumanos e “inautênticos” de nossa vida diária, a conservação de nossa capacidade de pensar (que exige aquele distanciamento: quando pensamos, nos distanciamos do mundo sensível), uma das reservas utópicas da sociedade, não passavam agora de simples mercadoria, como qualquer outra, feita para ser consumida e mediatamente substituída pela crítica seguinte, ao gosto do freguês e das modas intelectuais.
Quando um diretor de minha Universidade (UFPE) afirma que ao tríptico “Ensino, Pesquisa e Extensão” deve ser acrescentado um quarto -“Negócios”- é porque aquela ideia de uma Universidade como um lugar, ao mesmo tempo, perto e distante da vida ordinária (perto porque é dela, desta vida, que retira sua matéria reflexiva; distante, porque pensar e teorizar implicam distanciamento) se deixa invadir e colonizar pelo ambiente de negócios é porque a distância necessária para se “refletir sobre o quê nos acontece” (H. Arendt) foi suprimida.
O que reafirma a condição indesejável, a meus olhos, de uma Universidade que não pensa, uma Universidade unidimensional para ser mais exato. E mesmo que supostamente ela “pensasse”, este pensar teria perdido seu predicado essencial: a autonomia.
Uma universidade que “pensa” através, a partir, em função do ou para o mercado, tomado como única realidade relevante, é uma universidade que chegou ao fim, é uma outra instituição para a qual eu, pessoalmente, não tenho muito interesse em contribuir e, aliás, não fui contratado para fazer “negócios” e não tenho vocação para caixeiro-viajante ou balconista... Sem preconceito: simples questão de “vocação”!
A universidade oligárquica
A universidade oligárquica Enquanto o conhecimento for considerado não apenas um valor aristocrático, mas também a instância elementar onde se assenta nossa “emancipação” (a noção comum de que só o conhecimento, em geral oferecido pela educação escolar, liberta), e reservado aos “melhores” (e aqui nós caímos sempre num truísmo: eles são melhores porque conhecem ou conhecem porque são os melhores?), a Universidade terá sempre sérias dificuldades com a democracia.
Não insistirei muito sobre a frase de Fernando Savater, filósofo espanhol, sobre esta relação: “_O grande temor da democracia são os ignorantes!”. A questão é saber, em primeiro lugar, quem nomeia os “ignorantes” e, em segundo, o quê eles ignoram e porque esta “ignorância” é supostamente tão danosa para a democracia.
Para a esquerda antidemocrática, o que os ignorantes ignoram é a determinação social de seu próprio pensamento, crenças ou ações, todos explicáveis pela base social (classe) onde se situam, todos tendo sofrido a ação oftalmológica de uma classe dominante (como se nós não fôssemos também cúmplices das formas veladas e intransparentes de dominação social) que dirige nosso olhar para as sombras do interior da caverna (alienação). Por isso é que os “ignorantes” precisam de “partidos revolucionários”, conscientes e condutores do processo histórico (é a posição do leninismo) que eles, na sua alienação, ignoram.
O medo dos ignorantes, neste caso, é o medo de sua “inconsciência”.
Para a direita antidemocrática, a política (o espaço público) é fonte de dissídia, de conflito e de divisão entre os homens. A boa sociedade seria aquela que tivesse abolido a política e entregado aos técnicos a palavra final sobre o social (entendida a técnica como algo acima dos interesses e ideologias sociais e, portanto, portador de um consenso intrínseco). Para estes, os ignorantes são os tecnicamente incompetentes, incapazes de adequar os meios aos fins (que eles também não sabem escolher!).
Para este caso, vai se aplicar o preceito seletivo do “Muitos serão chamados, poucos os escolhidos!”, onde pretendem fundar, evangelicamente, o princípio da “Meritocracia”.
O medo dos ignorantes, neste caso, é o medo de sua “incompetência”. Aliás, em seu rigor originário, a palavra Meritocracia deveria significar “governo do (ou pelo) mérito”, mas a etimologia não explica em que contexto o termo e a ideia foram gerados e, sobretudo, que contrabandos semânticos foram introduzidos no seu uso atual.
Em Condorcet ou Le Pelletier de Saint Fargeau (revolucionários franceses preocupados com a origem da escola republicana) a ideia de meritocracia sugeria a ruptura com o Antigo Regime: não seria mais o nascimento, o sobrenome, o estamento que determinaria nem a ocupação dos cargos públicos, nem a representação política, herdados da ordem aristocrática.
O mérito pessoal, avaliado pelo talento e pelas qualidades “naturais” de cada um, assentado no princípio do “individualismo” (e não no do pertencimento a uma ordem estamental) marcaria doravante o novo ordenamento republicano: eis o sentido, por exemplo, do concurso público.
Mas, se os talentos individuais são distintos e os valores com os quais os julgamos também (“fidelidade” ou “bravura” na ordem feudal; “etiqueta” na ordem cortesã; “virtude” [republicana] na ordem burguesa) seria preciso um instrumento social de correção das desvantagens e deficiências presumivelmente “naturais” de talento: eis a função da escola pública, laica, gratuita e universal após 1789, em que a medida de aferição do mérito se situaria doravante no talento individual (ou em termos modernos, na competência).
A universalidade da escola republicana (expressa em currículo igual, fardamentos iguais - o “uniforme”-, a avaliação ‘cega’ - até hoje, na França, se o aluno quiser, pode, dobrando e colando uma aba da prova, esconder a autoria do exame que só será conhecida no momento da entrega dos resultados-, livros didáticos gratuitos para todos, merenda única, etc.) e no acesso universal à escola, esbarrou, no entanto, no beco sem saída de toda meritocracia: o talento, a vocação ou a competência subjetiva tem um forte componente social (e de classe) e, assim, oferecidas as condições iguais de partida, se o indivíduo fracassa na chegada, a culpa é exclusivamente dele!
Isto faz lembrar os antigos e esquecidos “testes vocacionais”. Depois que se descobriu que crianças pobres tinham “vocação” para ser pedreiro, policial e motorista de ônibus, e filho de rico tinha “vocação” para ser médico, empresário ou engenheiro, constatou-se o óbvio: a vocação (e para nosso caso, o “mérito devido ao talento”) não são atributos unicamente subjetivos ou dependentes de um “esforço individual”.
Entre outras, isto significa que aqueles que rezam pela cartilha da meritocracia não suportam o atual sistema de cotas para a Universidade, que cumpre numa sociedade desigual e hierárquica como a nossa, a mesma função que o princípio meritocrático cumpriu na origem do republicanismo.
O problema é que na ordem pós-revolucionária, a meritocracia cumpria -como vimos- o papel (ilusório, claro, já que tratava os desiguais pelo mesmo metro!) de oferecer condições de partida semelhantes aos indivíduos.
Hoje o discurso meritocrático, esteio ideológico da “produtividade” acadêmica, cumpre o papel inverso: ele restaura hierarquias, qualifica e desqualifica pessoas em função de critérios não substantivos (qual a relevância social de minha pesquisa?), distribui privilégios, seleciona “talentos” e, no horizonte, reabilita uma ordem aristocrática e perversamente tautológica: os que merecem têm, os que têm merecem! Ai dos “sem- mérito”!...
A história da meritocracia universitária é, assim, aquela de uma curiosa restauração: imaginada para romper com a ordem aristocrática, sua função hoje é restaurá-la! Nossos meritocratas, no fundo, não conseguem disfarçar suas irresistíveis inclinações antirrepublicanas.
A universidade que “mede” o mérito Chegado a este ponto, todo o problema se situa em saber com qual “valor” medir-se-á o mérito ou, em outras palavras, a competência. E aqui as palavras-chave são: produtividade, produtos, resultados, metas, monitoramento, avaliaçãoque, a rigor, não são “valores”, mas índices, escalas: eles não têm substantividade teleológica com a qual pudéssemos avaliar (de ‘valor’) suas consequências sociais e morais.
É de extrema importância prestar atenção ao vocabulário. Tomemos as palavras/expressões “produtos” ou “resultados esperados”, por exemplo, que aparecem agora como itens quase obrigatórios em todos os projetos de pesquisa.
Um produto é o resultado final de um processo de produção, realizado por produtores, no interior de uma cadeia produtiva. Todo produto é o ponto final de um sistema onde se introduzem insumos, aplica-se uma tecnologia, adequa-se uma mão de obra e obtém-se algo que deve ser a aterialização de uma ideia ou plano original.
O resultado deve ser igual ao plano (o célebre “tirar do papel”!). A produtividade é o índice que mede uma relação num determinado momento de seu processo: uma relação que implica tempo-custo-materiais e mede se estes “insumos” são compatíveis com os benefícios.
A noção grega de escola (Skholé) significava “tempo livre”, lugar de repouso da alma. Ali, os homens podiam se afastar da vida cotidiana, vida marcada pela necessidade (sobrevivência, trabalho, produção) para experimentarem a liberdade de pensar, de criar, de imaginar, de discutir, de estudar. Quando a Universidade, esta escola de nível superior, se transforma em um lugar de produção e de resultados é porque ela deixou de ser lugar de liberdade (subjetivação cidadã) pra ser mundo de necessidade (subjetivação mercadológica).
Perdoem-me a observação de mau gosto, mas, neste sentido, vocês concordarão que as câmaras de gás de Auschwitz foram um grande sucesso de produtividade e de resultados!
A universidade que “quebra paradigmas”
Quando ouço meus colegas dizerem coisas como “Esta universidade é irrelevante!”, “Quem tem de dar respostas às demandas da sociedade é a Prefeitura!”, debocharem da “função social” da universidade, proporem que os Centros se transformem em OSIP’s com sistemas de contratação e demissão próprios e critérios particulares de aferição de produtividade, afirmarem diante do Reitor que esta é uma “Universidade de negócios” e, last bus not least, sugerirem a contratação de um especialista em captação de recursos no mercado para dirigir a instituição, de preferência vindo do mundo financeiro..., o conjunto desta “obra” (nos dois sentidos da palavra), aponta para o fato de que estamos “quebrando paradigmas”.
O problema é que se perguntarmos aos nossos “quebradores de paradigmas” o que é que eles entendem por isto – paradigma-, eles nos fornecem apenas sinônimos (modelo,referência, hábitos arraigados) ou resumem a questão numa frase de banalidade nauseante: “Quebrar paradigmas é sair da zona de conforto!”.
Além do mais, não custa perguntar, o que faremos com os cacos quebrados do paradigma?
Um paradigma é “quebrado” quando as respostas que oferecemos aos novos problemas que aparecem no horizonte da ciência (ou da filosofia, ou da arte) não dispõem mais do mesmo coeficiente de validade e, assim, quando os conceitos de que dispomos para dar essas respostas começam a se tornar insatisfatórios abre-se uma época de “ciência extraordinária” (Th. Khün).
O problema é que nossos “quebradores de paradigma” acham que tudo é um “problema de gestão” (aliás, são os gestores os usuários mais comuns deste vocabulário), como se ignorando os fins para se atacar os meios estivéssemos alterando os conceitos com que pensamos a realidade.
Nisto, nossos “quebradores” lembram o movimento inglês (século XIX) dos Luddistas, que quebravam as máquinas da indústria nascente (a culpa era dos “meios”, assim como “o problema é de gestão”!), como se com isto pudessem recuperar a situação social anterior à revolução industrial! Com a diferença de que se os Luddistas eram “passadistas”, os nossos quebradores são “progressistas”!
Em segundo lugar, nossos “quebradores” pensam que o paradigma adequado ao serviço público é aquele produzido pela empresa privada: não se quebra paradigma fazendo simplesmente migração de modelo de um campo para outro, do terreno privado para o republicano, sobretudo se as questões e conceitos que orientam as ações nas duas esferas (que são diferentes) não forem considerados.
Os privatistas são, para ser breve, “ideólogos dos meios”, cuja semântica é a da eficácia e da eficiência, que são modos de avaliar a relação meios-fins, mas sem se perguntar se os fins são legítimos ou eticamente aceitáveis.
No fundo, quando esta “migração” ocorre é porque as esferas pública e privada foram confundidas, suas fronteiras foram apagadas, suas lógicas internas dissolvidas. Ora, se recordarmos que o princípio fundamental do ideário republicano fora a separação entre o mundo público e o privado, sua confusão atual parece apontar para uma débâcle ou, no mínimo, para um forte descrédito na manutenção de princípios republicanos orientando a vida comum. Oligarquização, privatização, meritocratização, gestionarização universitárias fazem, assim, parte de um mesmo – e inconfessado-
ideário: um visceral e perigoso sentimento antirrepublicano!
A universidade como “problema de gestão”
Ninguém, em sã consciência e boa fé, defenderia uma instituição mal gerida, desperdiçando recursos financeiros e humanos, deixando de prestar os serviços a que se destina, sem oferecer as condições mínimas de funcionamento, burocratizada e intransparente.
O problema não se situa na defesa de uma administração eficiente e eficaz: está em considerar as instituições como um “problema de gestão”.
À primeira vista somos conduzidos a pensar, quando usamos o termo, na racionalização de processos, em planejamentos estratégicos, em resultados mensuráveis, em avaliações institucionais, em monitoramento de ações, metas etc., e perdemos de vista o fato de que entender a universidade como um problema de gestão faz parte da mesma estratégia ideológica sutil e pouco perceptível, que trataremos a seguir.
Perfeita consciência
Tenho perfeita consciência, no entanto, de que a “denúncia” de uma estratégia ideológica, quer dizer, a ideia de que alguém tenta nos esconder algo da realidade ou de que a crítica ideológica -a noção de que nossa razão pode se interpor entre o ideal desejável e o real condenável- nos forneceria munição emancipatória, talvez tenha algo de ingênuo: a época “cínica” em que vivemos é aquela que transformou o “Vocês não sabem o que fazem!” (que a crítica ideológica tentava “conscientizar”) no “Vocêssabem o que fazem e continuam fazendo!”.
O que significa que decifrar o enigma ideológico do “problema de gestão” não salvará Tebas! Mas, tentemos, ao menos como exercício de autoesclarecimento...
Chamo de “gestionarismo” este componente da Teoria Sistêmica, “um conceito aplicável à organização empresarial, onde a entrada (ou insumos) é a força ou impulso de arranque ou de partida do sistema que fornece o material, energia ou informação para sua operação. Saída, produto ou resultado é o fenômeno que supostamente produz mudanças, ou seja, é o mecanismo de conversão de entradas e saídas.
O processador –ou gestão- caracteriza a ação dos sistemas e define-se pela totalidade dos elementos empenhados na produção de um resultado”. Esta concepção supõe que todas as instituições e, na verdade, toda a sociedade, não passa de um sistema (de articulações autônomas e interdependentes), onde se pode calcular a entrada de insumos, submetê-los a um processamento técnico e prever a saída, o resultado.
No limite, trata-se de um antigo projeto (ou melhor, uma antiga distopia) de fazer do “social” (portanto desta imponderável e imprevisível teia de relações historicamente constituída) algo administrável.
Lembro apenas que a administração do social foi o sonho dos positivistas e, hoje, de sua vertente contemporânea radicalizada, os tecnocratas.
O pano de fundo do “processamento” ou gestionarismo é o de que existe um método “universal” aplicável aos casos particulares, e todo caso particular pode ser enquadrado nesse universal, não importando se se trata de coisas ou pessoas, todos compreendidos como “insumos” ou “produtos” e, assim, nada deve escapar ao olho vigilante da gestão, que “prevê para prover”: estamos no Reino da Equivalência Geral!
Que engenheiros, médicos, auditores do tribunal de contas ou economistas possam se tornar administradores de sistemas públicos de ensino, por exemplo, sem jamais terem lido uma única linha sobre educação, isto deixou de ser um problema.
Aliás, o problema está em deixar educadores gerirem a educação! Educadores “banhados em ideologias ultrapassadas e engessadas”, mais tendentes a seguir “éticas de convicção” do que de “responsabilidade” (M. Weber) e, claro, produzindo “resultados” pífios.
O gestionarismo, como ideologia do social administrável, é a forma de impedir a emergência do imprevisível, da imaginação social instituinte e, por fim, uma forma de bloquear a novidade histórica. Aqui é necessário não confundir a “inovação” (em geralrestrita à tecnologia e à gestão, característica da modernização reacionária e da sociedade do hiperconsumo imediato) com o “novo” (o não pensado, o insólito, o inaudito), o que significa dizer que aliar quebra de paradigma e gestionarismo representa uma... contraditio in termini.
Tratando tudo como problema de gestão, onde todos os sistemas se equivalem porque podem ser administrados segundo uma Razão Gestionária Universal, é a diversidade, a pluralidade (de culturas, de ideias, de visões, de concepções de vida) que se vê submetida ao Império do Mesmo.
O gestionarismo é o nome do medo que temos da emergência do diferente, do inaudito, do inesperado. É a forma tecnocrática de conter a ameaça da incerteza que toda democracia comporta.
Universidade do “ódio aos professores
A universidade do “ódio aos professores” Na continuação do tema da universidade de negócios, ou da universidade que antecipa e inova (correlato ideológico do “quem responde às demandas sociais é a prefeitura”), podemos acrescentar o da universidade “escolão”: aquela, tradicional e conservadora, preocupada com “formação”, com “transmissão”, centrada fundamentalmente nesta figura, hoje ‘desnecessária e ultrapassada’ do professor.
Destinada a formar elites intelectuais e políticas, ou produzir teoria para alimentar o projeto nacional, tradicionalmente (entre nós!) instituição beletrista, retórica e academicista, nossa universidade teria se mantido distante da urgência do desenvolvimento econômico, da articulação necessária com as forças produtivas da sociedade produzindo resultados de pesquisa aplicáveis, palpáveis e mensuráveis.
Em uma palavra: sua indiferença ou desarticulação com o mercado gerou parte do atraso social que conhecemos, da pobreza de nossa capacidade inovadora e empreendedora, de nossa irrisória participação na produção científica mundial. Veio daí o que vou chamar, não sem uma nota de trágica ironia, de “ódio aos professores”.
Embora contratados para exercer funções pedagógicas (não há concurso, por enquanto, para pesquisador ou extensionista), a função do magistério se viu, de forma bastante acelerada, remetida a um patamar hierárquico inferior e desqualificante: não fazer pesquisa, não ter grupo de pesquisa, não produzir conhecimento, não publicar em revistas indexadas (mesmo que se trate de conhecimentos irrelevantes, pouquíssimo originais, irrefletidos) aponta diretamente para aquela desqualificação, mesmo que se trate de um excelente, erudito e comprometido professor.
Sobre a figura do velho professor parece recair a pecha de depositário da tradição, da herança cultural, da “transmissão”; não raras vezes dissociado da vida e das tecnologias contemporâneas; tendo no livro a base física de sua relação com a cultura letrada; frequentador deste santuário do passado que é a biblioteca; conhecendo línguas “mortas”; usando de sua palavra expositiva, de sua inteligência analítica e de sua sensibilidade judicativa para se relacionar com “alunos”; preocupado com a “construção” do saber pelo educando, mais do que com a sua simples transmissão ou ainda assentado sobre valores “humanistas”... eis, em resumo, o retrato caricatural desta quixotesca figura.
Penso que para interpretar esta transformação de uma universidade que amava e se orgulhava de seus professores para esta que os considera como figuras de um passado pedagógico a ser abandonado, caso eles não sejam outras, e muitas outras coisas, que “simples” professores (quando eles fazem “política” ou “sindicalismo”, a avaliação piora!) talvez seja necessário uma rápida reflexão sobre a modificação de nosso regime de historicidade, de nossa relação e percepção do tempo. É o que faremos a seguir.
A universidade “presentista”
Nós imaginamos sempre o tempo como uma instância vazia, neutra, contínua, sucessiva, linear, e dificilmente aceitamos que esta construção não seja “natural”! Nas culturas agrárias (Egito, Aztecas, Mesopotâmea) o tempo era visto como algo “cíclico”, em que as coisas “recomeçavam” ao fim de cada etapa (assim como as estações do ano, os dias e as noites, etc.).
A partir de Santo Agostinho, que praticamente inaugurou nossa concepção moderna de tempo (apesar de ele ter vivido no séc. V° d.C.), começamos a conceber um tempo tripartite (tempo da lembrança, da atenção e da espera), correspondendo ao passado, presente e futuro. Agora é o futuro que nos ilumina, e não mais o passado, como entre os Romanos. Futuro de reconciliação, de redenção e de salvação quando nos distanciaremos, com nossas ações presentes, do pecado original, situado num ponto matinal do passado.
O presente é uma passagem que exige atenção e ações que nos levem para o futuro com suas promessas. A ideia moderna de “revolução” guarda do agostinianismo a marca deste regime temporal em que um futuro nos ilumina e de onde esperamos, não mais o juízo final, mas a reconciliação entre os homens (fim da desigualdade e da exploração) prometida pelas utopias políticas (revolução).
O problema é que nossa modernidade “iluminista” ao não mais aceitar as instâncias tradicionais (religião, autoridades) como tendo valor de orientação moral, passou a usar da crítica racional para orientar os homens no julgamento e condução de suas ações: o passado perdera sua amarra normativa.
Com o fim ou a decadência das utopias redentoristas (socialismo, por exemplo) é o futuro agora que não mais se apresenta como portador de promessas salvíficas: perdemos a confiança utópica que depositávamos no futuro (lembram-se do “No future”?) e ficamos, como diz um autor, “condenados ao presente”, como um cão mordendo a própria cauda!
Eis a razão deste doentio culto da eterna juventude, da ideologia da felicidade-aqui-e-agora-e-a-qualquer-preço, deste afastamento asséptico da morte, do temor dos adultos em assumir responsabilidades compatíveis com a idade (como simplesmente educar os filhos que colocaram no mundo!). É o fim de uma ética do dever (kantiana), que exigia sacrifícios, contenção, “poupança”, autocontrole... e a emergência de uma outra, a do prazer (hedonista), típica das sociedade do hiperindividualismo e do consumo.
Sai de cena a “Lei Moral dentro de mim” (Kant) e entra o “Meu umbigo como centro do universo”!
Penso que a desqualificação acelerada do professor (acompanhada do desprezo respectivo à profissão e aos profissionais), inclusive universitário, e a concomitante emergência valorativa do pesquisador “produtivo” corresponde a esta mudança de nosso regime temporal.
Nosso sistema produtivo é marcado pela obsolescência imediata (e até programada!) dos seus produtos, cujo tempo de duração ou de sedução é cada vez mais curto. O interessante, aqui, seria testar a relação entre regime de temporalidade e produtividade acadêmica.
Nossa experiência do tempo, hoje, uma vez finda a importância do passado e da tradição e terminadas algumas de nossas ilusões utópicas, recai sobre o presente, o que um autor chamou de “presentismo” (F. Hartog). Ora, como o professor era uma personagem social que fazia a ligação entre duas gerações, entre o que já passou e o que ainda não chegou (e que é apenas “promessa”: nossos filhos e alunos), a função que ele exercia, ligando duas temporalidades, duas gerações, fica comprometida: o imediatismo do presente terminará por condenar o professor a uma espécie de sem-sentido.
Por outro lado, o “pesquisador produtivo” escreve artigos (que podem ou não ter qualidade) como quem trabalha numa cadeia produtiva: artigos que são rapidamente consumidos e que, na pressa de já ir preparando o próximo, acrescentam às vezes pouquíssima coisa ao anterior, como se estivéssemos no mercado de telefones celulares, em que o último modelo pouco se diferencia do penúltimo e, ambos, parecem não cumprir mais a função original: permitir se comunicar numa época em que todo mundo acha que tem alguma coisa a dizer de “muito importante” e poucas parecem deter a capacidade judicativa de distinguir a importância dos conteúdos.
Como se nossos artigos não cumprissem mais sua “função original”: permitir a continuidade renovada de nosso pensar sobre a condição humana e as relações que ela alberga (ciência, arte, filosofia, história, educação).
Se o professor é esta figura de um passado em rápido processo de extinção (as tecnologias à distância o substituirão), o pesquisador produtivo é esta figura de um presente imediato, volúvel e condenado a se “desmanchar no ar” premido pela urgência da “inovação”.
Fim
Uma Universidade não pode ser senão “pública” O que faz com que algo se torne “público”?
É claro que uma instituição pode ser pública sem ser estatal. Algo é público na medida em que pode ser visto, partilhado, pensado, falado, discutido por uma pluralidade de pontos de vista 1 . Não cabe nesta pluralidade nenhuma desigualdade de origem: precisamos supor que todos são capazes de ver, partilhar, falar sobre (mesmo que haja falas mais apropriadas e fundamentadas, mas nenhuma é forçosamente detentora da “verdade”, que permanece aberta e sub judice).
Não estou falando nem de mérito, nem de competência, nem de consciência, e sim da inteligência comum a todos nós: a ideia de que todos são capazes de inteligir (do latim intellegere, intellegibilis, compreender ou que pode ser compreendido) , que todos podem chegar a um entendimento do mundo do qual, afinal, todos fazem parte.
Se abandonarmos esta premissa, precisaremos abandonar (por questão de coerência) as ideias de igualdade entre os homens, de direitos.Podem existir instituições estatais que não estão abertas ao debate público e são coordenadas por sistemas de mando e obediência, como as Forças Armadas.
É curioso como a noção de inteligência que era um fim a ser alcançado pelo uso da razão –inteligir era compreender algo- passou a ser um meio, um instrumento para se atingir fins e, como instrumento, mensurável: os testes de QI! Isto apenas reafirma a convicção de que nossa época é aquela em que os fins –thelos- se tornaram meios - techné). humanos, de isonomia e isegoria democráticas e, finalmente, deixar de crer que os homens são capazes de conduzir suas vidas e definirem que qualidades da subjetividade eles querem representar.
Dizer que a Universidade é um lugar de produção da ciência, não significa que ela encarna a verdade apodítica ou demonstrativa, verdades evidentes per si e não sujeitas à argumentação. Mas é isto o que a ideologia tecnogestionária quer nos fazer crer. Na Universidade, toda vez que entramos em sala de aula, em nosso laboratório, grupo de pesquisa, reunião de professores, orientação de trabalho..., nós colocamos algo sobre a “mesa”, algo que se coloca “entre nós” (inter homines esse) e que, neste ato mesmo, cria a sua dimensão pública, torna-se comum a nós. Este “algo” pode ser um livro, uma ideia, uma obra de arte, uma música, um autor, um acontecimento, o resultado de uma pesquisa, um corpo humano, uma pedra, uma planta, um inseto, etc.
Nós partimos sempre, nesta relação em que algo está entre nós e se torna público, da premissa de que todos os que estão ali são capazes de pensar, de dizer algo, de julgar, de se posicionar.
Bem ou mal, mas capazes. O que está em jogo é a possibilidade (o que não está determinado a priori, ou não seria uma “possibilidade”) de, nesta“partilha do sensível” (Rancière) pedagógico, dividir ou confrontar os significados que damos às coisas do mundo.
O que faz com que esta educação seja compreendida como “superior” é a crença que depositamos naqueles que passam por ali, de que eles sairão com uma qualidade melhor de seu falar, de seu pensar, de seu julgar, ou seja, serão capazes de submeter suas crenças e certezas já adquiridas (conhecimento instituído) ao crivo da suspeita e do descentramento (saber instituinte).
Há também a possibilidade, sempre presente, de que alguém introduza algo novo, não previsto pelo professor (uma ideia, uma experiência pessoal, uma leitura, etc.) que trará o desconforto de desacomodar as certezas magistrais de que somos vaidosamente portadores.
Ora, como o que está em questão é o conjunto das significações (científicas, filosóficas, ficcionais ou outras) a respeito de um mundo comum, privar as pessoas (aquelas que se interessam, sobretudo) da possibilidade de partilhar tais significações seria como dizer que o legado cultural do qual somos herdeiros não pode ser dividido com todos, quem quiser ter umpassado cultural tem que comprá-lo e, por conseguinte, quem quiser ter futuro terá que dispor de reserva fiduciária!
Ora, como o passado ou o futuro não são apropriáveis como bens privados ou pertencentes ao Estado (a não ser nos estados totalitários), uma Universidade privada é a tentativa de impedir as pessoas de possuir aquilo que o tempo nos dá: a lembrança (passado) e a esperança (futuro). Uma
universidade (assim como qualquer escola) privada é uma espécie de cassação do nosso direito comum (público) ao tempo e à história.
Assim, “público” não se refere nem a origem de seu financiamento, nem à forma de contratação de seus funcionários, nem ao fato de não visar lucro ou denão se configurar segundo uma ordem vertical, rigidamente hierarquizada, característica das empresas privadas.
O que ocorre no interior de uma Universidade é algo muito especial, que atinge e recobre o conjunto de suas atribuições (ensino, pesquisa e extensão. “Negócio” não entra aqui!): uma relação com homens e sociedades que não existem mais (passado), que não existem ainda (futuro), mas que estão presentes na “mesa”, uma apropriação de sua herança e a possibilidade de inovar este legado introduzindo algo inédito no mundo.
Sou contra uma Universidade privada (na verdade, contra a idéia de formação humana nas mãos de grupos privados, e sempre procuro compreender os interesses e razões dos privatistas, embora quase nunca concorde com eles) porque não posso aceitar que a pluralidade de opiniões que a educação proporciona e que faz o mundo e o torna significativo seja banida, ou que nossa memória comum e pública,que a educação também oferece, seja objeto de domínio particular ou, finalmente, porque eu não saberia, como professor que sou, dizer aos meus alunos que “Ex mercatus nulla salvat!”, que fora da relação de compra e venda eles não têm futuro!
Não teria como dizer-lhes que a aventura indeterminada e sempre inconclusa que representa a noção de “projeto” (pro jectum, lançar-se para frente) está completamente infectada pela ideia de sucesso, empreendimento, resultados, metas, monitoramento, indicadores... diante do que, eles teriam pouquíssima liberdade de escolha.
Uma Universidade assim representaria o fim de minha condição pedagógica, produzindo uma lacuna no tempo que separa a minha geração daquela que pretendo educar para um mundo que só pode ser reinventado se for, antes, apresentado a quem chega nele; significaria também, e principalmente, o fim de minha própria humaine condition (Montaigne), esta mesma que me dá a consciência de ter vindo de “lugar nenhum” e um dia ter de partir para “lugar nenhum”, consciência de ser transitório e que me faz travessia entre o que foi e o que ainda não é.
Flávio Brayner é Professor Titular da UFPE
