O clarão da manhã me inspira. Penso presentear meus pais que já partiram. Então este órfão desce do ônibus com o presente construído, pronto, acabado. Assim:

Pai e Mãe

Minha mãe tinha inteligência mística
E o meu pai incapaz de perceber
O meu pai só pensava na logística
dos instintos naturais do viver

Meu pai era homem de ação
Minha mãe mulher de coração
Meu pai buscava Deus no conforto da oração
Minha mãe o encontrava no solo desértico da abstração

Meu pai era viril em tudo que tocava
Minha mãe era sutil em tudo que observava
Meu pai tinha visão prática utilitária
Minha mãe pupila crítica imaginária

Meu pai era afeito às coisas necessárias da vida
Sustentar a prole, trabalho, estudo, comida
Minha mãe tinha essência, natureza de artista
pintava quadros conversava com plantas
cativava pássaros contemplava beleza futurista

Meu pai carregava a sagrada
Superficialidade da sua cruz
Minha mãe considerava o sol parte da sua luz
Meu pai era uma igreja
Dogma bem compactado
Minha mãe uma incerteza
Mistério a ser revelado

Meu pai era displicente, relapso
diante de uma parábola
Minha mãe tinha talento
para criar e contar fábula

Meu pai lia o complexo vulgar livro do mundo
Minha mãe recebia a delicada poesia
do seu olhar profundo

Meu pai era clarão estonteante
Encandeando diminuta treva
Minha mãe frondosa árvore
Derramando sombra sobre a relva

Meu pai rio caudaloso força fúria
abrupta ruptura num dia de festa
Minha mãe água cristalina
oculta na densa floresta

Meu pai não somatizava nada
dormia o sono da criança mimada imaculada
Minha mãe era dotada de emoções refinadas
levava ao travesseiro suas inquietações sublimadas

Romero Falcão