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Ensaio filosófico - O fruto e o mel: da brevidade do ser à permanência da obra

12/08/2025 -

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Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

1. Introdução — O espanto que funda o pensamento

Foi num dia qualquer, desses em que o mundo parece repetição, que minha amiga Dorotéia, ao comentar sobre o mamoeiro do quintal, soltou uma frase aparentemente banal:

— Depois que ele dá os frutos, leva nove meses para amadurecer.

Nove meses.
O mesmo tempo de gestação de um ser humano.
E, no entanto, o mamoeiro é uma árvore de vida curta, quase efêmera, que dedica cerca de um ano inteiro para que um fruto atinja sua doçura plena.

Esse dado singelo trouxe de volta à minha memória um diálogo de muitos anos atrás, quando Dudu, meu filho, tinha apenas quatro anos.

— Papai, as abelhas vivem pouco, não é?
Respondi que sim.
— E o mel que elas fazem dura muito, não é?
Assenti.
Ele, então, olhando para mim como quem abre uma porta sem saber o tamanho da sala, perguntou:
— Como é que um animal que vive tão pouco pode fazer uma coisa que dura tanto?

Naquele instante, compreendi que a filosofia cabe inteira na pergunta de uma criança. Porque ela nasce não da erudição, mas do espanto que é o verdadeiro ponto de partida da filosofia. É o que fazia Platão dizer que a admiração é a origem do pensamento.

2. A lógica do tempo e o paradoxo da brevidade fecunda

O mamoeiro cumpre o seu destino sem medir dias no calendário. Não apressa o fruto nem encurta a espera. Nove meses são o tempo necessário para que a polpa, o aroma e a cor se tornem aquilo que a natureza prometeu.

A abelha, por sua vez, vive poucas semanas — algumas nem chegam a dois meses — mas produz um mel que, se bem cuidado, pode atravessar décadas sem perder suas propriedades.

É como se a natureza, em sua pedagogia silenciosa, nos lembrasse que a grandeza de um ser não se mede pela extensão da vida, mas pelo alcance de sua obra.

Na história humana, o mesmo se repete:

Pedreiros anônimos erguendo catedrais que só seriam consagradas séculos depois, sabedores que sua tarefa era uma gota num oceano do tempo de conclusão da obra.

Monges copistas preservando manuscritos que salvariam a memória de civilizações inteiras.

Pais que, mesmo sem garantias de futuro, educam filhos para um mundo que certamente não verão.

A lição é sempre a mesma: a duração do ser não limita a duração daquilo que ele entrega.

3. Filosofia da duração — entre Aristóteles e a Cabala

Aristóteles distinguiu khronos — o tempo cronológico, medido pelos ponteiros do relógio — de kairos, o tempo oportuno, aquele em que o sentido floresce. O khronos mede a vida da abelha; o kairos, o momento em que o mel se completa.

Na Cabala, o Tikun Olam — reparar o mundo — nos ensina que somos responsáveis por continuar a obra da Criação. Não é exigido que a concluamos; é exigido que a avancemos.

Assim como a abelha não usufrui de todo o mel que produz, o justo não vive para aproveitar todas as consequências de seus atos: vive apenas para garantir que eles existam.

Buber lembrava que a relação Eu-Tu é a morada do sentido. O mamoeiro e a abelha, sem palavras, vivem na mais pura forma dessa relação: oferecem algo que não retêm, entregam-se a um outro que virá — humano, pássaro, geração futura.

4. A permanência como transcendência

Na pergunta de Dudu, percebi que a brevidade pode ser a moldura da eternidade.
O que permanece não é o tempo da vida, mas a qualidade daquilo que se deixa durante a travessia.

Uma abelha não produz mel para durar mais do que ela; mas, sem saber, produz algo que a inscreve no tempo para além de seu corpo.

Lao-Tsé, no Tao Te Ching, escreveu:

“O sábio planta árvores cuja sombra não desfrutará.”

Esse ato de plantar sem esperar colher é a expressão mais alta de transcendência: viver guiado por um bem que se projeta para além de si.

5. O que isso ensina sobre a nossa própria vida

Nós, humanos, vivemos como se o sentido estivesse preso ao khronos. Contamos aniversários, somamos décadas, como se fossem elas — e não nossas obras — que determinassem a medida de nossa existência.

Mas, no fundo, somos mais próximos do mamoeiro e da abelha do que de um relógio ou de um calendário riscado.

Nosso verdadeiro tempo é o tempo do legado:

Um gesto de bondade que floresce na memória de quem o recebeu.

Uma palavra justa que atravessa gerações na boca de quem a repete.

Um trabalho bem-feito que continua sustentando vidas depois que nos formos.

A permanência das nossas obras é a única resposta sólida à brevidade.

Não precisamos viver muito; precisamos viver de tal modo que o fruto ou o mel de nossa vida continue alimentando o mundo quando não estivermos mais aqui.

6. Conclusão — A filosofia que cabe numa pergunta de criança

Volto à imagem de Dudu, pequenino, segurando o peso de uma pergunta que muitos adultos nunca ousam fazer.
Se pudesse responder hoje, eu diria:

“Filho, há vidas que passam e nada deixam, e há vidas que transcorrem deixando algo que não passa. A medida de um ser não é por quanto tempo respira, mas quanto tempo permanece no mundo através daquilo que ele oferece.”

Talvez seja por isso que o mel das abelhas, o fruto do mamoeiro, a pedra na catedral ou a palavra que salva tenham um poder tão profundo: todos eles são testemunhos de que a vida, quando vivida para além de si mesma, encontra um jeito de tocar a eternidade.

7. Epílogo — O mel que herdei, o fruto que deixo

Às vezes penso que minha vida inteira é um diálogo contínuo com essa pergunta do Dudu.
Vivi o bastante para perceber que não somos senhores do tempo, mas apenas aprendizes do seu uso. Todos nós, de uma forma ou de outra, herdamos frutos que não plantamos e colhemos mel que não produzimos.

Meus pais, meus avós e bisavós — cada um à sua maneira — foram como abelhas e mamoeiros da minha existência.

Alguns viveram pouco, outros muito, mas todos deixaram algo que durou mais que sua própria presença: valores, histórias, gestos silenciosos que moldaram meu modo de ver o mundo.

Hoje, ao pensar no que deixarei, percebo que meu legado não estará apenas nos textos que escrevo, mas no que deles permanecerá na vida de quem os ler. Quero que minhas palavras sejam como mel guardado em jarros antigos: abertas no tempo certo, alimentando quem tiver fome de sentido.

Na Cabala, o Tikun Olam me lembra que reparar o mundo não é tarefa para ser concluída; é missão para ser assumida. E talvez essa seja a chave: saber que o fruto que amadurece ou o mel que perdura podem, no fundo, ser apenas o início de um ciclo que continuará sem mim — e que isso não é perda, mas vitória.

No fim, penso que meu epitáfio poderia dizer: “Fez o que pôde para que outros tivessem com o que se nutrir.” Do mamoeiro e da abelha aprendi a paciência que se faz doçura; dos meus ancestrais, a disciplina de servir sem alarde; de mim, o compromisso de prolongar a corrente: deixar, atrás de passos mortais, um fruto, um mel, um gesto que permaneça — ainda que o nome, um dia, se desfaça no vento.

Se um dia meus filhos, meus amigos, ou mesmo um leitor desconhecido encontrarem, em minhas ações ou palavras, algo que lhes sustente numa hora difícil, terei cumprido minha parte na obra.

Porque viver é breve.
Mas, se bem vivida, a vida deixa um sabor que transcende o tempo e se transforma em legado.


*Jorge Pinho é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.

Nota do Autor -

Este ensaio nasceu num domingo do Dia dos Pais, mas sua centelha veio de uma conversa casual com minha amiga Dorotéia. Ao me contar que um mamoeiro leva nove meses para amadurecer um fruto, ela provocou em mim uma cadeia de imagens que me levou de volta a uma cena de muitos anos atrás: meu filho Luiz Eduardo — o então pequeno Dudu —, aos quatro anos, perguntando-me como um ser que vive tão pouco, como a abelha, pode produzir algo que dura tanto, como o mel — mel esse que, se bem guardado, pode atravessar milênios sem perder sua essência.

Entre o breve e o duradouro, encontrei um caminho para falar do que realmente permanece de nós: não o tempo que respiramos, mas o que oferecemos ao mundo — um fruto, um mel, um gesto.

O texto é uma viagem entre a natureza e a filosofia, a memória ancestral e a vida contemporânea. Nele, procuro unir o silêncio pedagógico da criação com o rigor da reflexão humana, costurando Aristóteles e a Cabala, Buber e Lao-Tsé, a sabedoria estoica e a ternura de uma pergunta infantil que jamais perdeu sua força.

Para atender a diferentes ritmos de leitura e espaços editoriais, este ensaio será publicado em três versões:

Versão curta, com cerca de 1.500 palavras, no Jornal O Poder de Pernambuco, para quem prefere um mergulho breve, mas intenso.

Versão intermediária, com 3.000 palavras, no D24 AM, para quem aprecia uma reflexão mais ampla e detalhada.

Versão integral, com 6.000 palavras, enviada em formato Adobe pela lista de transmissão via WhatsApp, para leitores que, como eu, gostam de ir até o fundo do rio antes de voltar à margem.


Assim espero atender espartanos, atenienses e troianos: os que valorizam a disciplina, os que amam o debate e os que sabem resistir às tempestades. Afinal, cada um lê conforme a fome que traz — e meu papel é colocar à mesa um alimento que, como o mel e o fruto, possa atravessar o tempo.

Convido você a ler, refletir e compartilhar o material que está disponível nos links mencionados no início desta mensagem.

Boa leitura e fraterno abraço a todos,

Jorge Pinho

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