
O silêncio que grita das ruas Por Flávio Chaves 18/08/2025
18/08/2025 -
Na tela de um celular, a cena é curta, mas pesa como um livro inteiro. Antônio Abujamra, ator, jornalista e filósofo, empresta sua voz grave e seu olhar inquisitivo para registrar uma realidade que muitos preferem ignorar. À sua frente, um homem sentado, o rosto marcado por sulcos profundos, a barba mal cuidada, os olhos cansados como se carregassem o peso de um século. Quando revela sua idade, 57 anos, a surpresa é inevitável: a rua envelhece mais do que o tempo.
Perguntas e respostas
As perguntas de Abujamra são poucas, diretas. As respostas, curtas, quase secas. Mas cada silêncio entre uma frase e outra escancara uma verdade que não cabe em palavras: viver na rua é estar fora do relógio social, é assistir ao movimento do mundo como quem não tem direito de participar dele. O homem fala pouco, mas seu olhar diz muito, e nele há uma mistura de desamparo e dignidade que nenhum discurso político seria capaz de traduzir.
Ecoa
O vídeo ecoa porque revela aquilo que tentamos não ver. Não é novidade que milhares de brasileiros vivem hoje em situação de rua, mas quando um rosto, um corpo e uma história se colocam diante da câmera, a estatística ganha carne, ossos e sofrimento. E então percebemos que a pobreza não é apenas a ausência de dinheiro; é o efeito de uma engrenagem social que, bem azeitada para alguns, emperra para muitos.
Estrutura
A estrutura de poder, travestida de normalidade, não deixa que esses cidadãos saiam do lugar onde estão. Quem mora na rua não é apenas alguém “sem teto”: é alguém expulso sistematicamente de qualquer rede de proteção. Faltam políticas públicas consistentes, faltam oportunidades de trabalho reais, falta um Estado que olhe para além das vitrines iluminadas das grandes avenidas. E sobra criminalização, preconceito, indiferença.
Espelho incômodo
A entrevista conduzida por Abujamra é um espelho incômodo: ali está um homem, mas poderia estar qualquer um de nós se a vida tivesse dobrado em outra esquina. O rosto de 57 anos que parece muito mais denuncia não só a dureza da rua, mas também a falência de uma sociedade que naturalizou o abandono.
Grito silencioso
Mais do que uma conversa, o vídeo é um grito silencioso. Ele nos obriga a pensar que, enquanto não enfrentarmos as raízes da exclusão ,a desigualdade, o desmonte da assistência social, a indiferença coletiva, seguiremos contando histórias de homens e mulheres que envelhecem antes do tempo, sentados no chão frio da cidade, invisíveis até que uma câmera os torne temporariamente visíveis.
Grande lição
E talvez aí resida a grande lição de Abujamra: transformar a entrevista em espelho, o silêncio em filosofia, a rua em palco. Diante daquele homem, a câmera não registrou apenas a miséria, registrou a nossa incapacidade de amar como sociedade. Aquele olhar de 57 anos que parecia ser mais permanece: não como lembrança, mas como interrogação. O que faremos, enfim, para que a vida não seja apenas um ato cruel encenado nas calçadas?
Flávio Chaves é Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc
